Morre um Dom Quixote

Idealista como o famoso personagem, Bebeto de Freitas foi a voz solitária pedindo a mudança no esporte

Do UOL, em São Paulo
Marlene Bergamo/Folhapress

A morte de Bebeto de Freitas aos 68 anos tirou do esporte brasileiro uma de suas figuras mais importantes. Sua postura vanguardista incorporou métodos profissionais e conceitos inovadores ao vôlei e ajudou a transformá-lo no segundo esporte mais popular do país. Mas isso não foi feito sem resistência.

Idealista como um Dom Quixote, costumava dormir e acordar pensando em esporte e sua gestão. Mesmo vice-campeão olímpico com a seleção brasileira, não se furtou de fazer críticas ao que considerava desmandos dos cartolas à frente da Confederação Brasileira de Vôlei, em especial a Carlos Arthur Nuzman, seu antigo aliado.

O desconforto em relação ao autoritarismo virou raiva quando ele soube dos desvios e enriquecimentos, com os quais nunca concordou. Suas críticas incomodaram o sistema e, perdendo espaço no esporte, precisou deixar o país. Enquanto Nuzman transformava a seleção de vôlei em uma máquina de fazer dinheiro, Bebeto lutava para fazer do esporte um meio de inclusão social e democratizá-lo.

Morreu na terça-feira (13), vítima de uma parada cardíaca. Suas ideias e estilo irascível permanecerão marcados na história.

Moreira Mariz/Folhapress Moreira Mariz/Folhapress

Inovou para competir com estrangeiros

Atleta profissional nos Estados Unidos, depois de ser 11 vezes campeão estadual pelo Botafogo, Bebeto de Freitas começou cedo a vida como treinador. Tinha apenas 31 anos quando assumiu o compromisso de levar uma seleção, que viria a ser conhecida como a "Geração de Prata", para os Jogos de Los Angeles. No elenco, muitos eram seus ex-companheiros. 

Foi ele quem criou a escola brasileira de vôlei

É o que diz Montanaro, uma das estrelas do time que colocou, para sempre, o país no mapa do vôlei mundial. "O Bebeto revolucionou o vôlei brasileiro, a forma de treinamento. Ele colocou a filosofia de trabalho dele e apostou todas as fichas nesse sistema", diz o jogador, um dos muitos a lamentar a morte do antigo mestre.

Os treinos passaram a ser sempre em dois turnos. "Se o japonês treinava saque três horas por dia, vamos treinar cinco. Se o russo treina bloqueio duas horas por dia, vamos treinar quatro. Foi essa a filosofia que levou aquela geração tão longe", comenta Paulo Roscio, diretor do documentário "Geração de prata - O divisor de águas do vôlei brasileiro", de 2007. "A repetição é que faz o campeão", completa Bernard Rajzman. O time foi vice-campeão mundial (em 1982) e olímpico (em 1984).

Jorge Araújo/Folhapress Jorge Araújo/Folhapress

Defendia força aos clubes e inclusão social pelo esporte

Bebeto de Freitas acreditava que a Superliga de vôlei tinha condições de ser a NBA do vôlei, mas a falta de visão dos cartolas impedia que o esporte atingisse o potencial existente. Ele passou décadas martelando que o modelo criado por Carlos Arthur Nuzman drenava todos os recursos para a seleção e deixava os clubes à míngua.

A principal reclamação é que a própria CBV canibalizava os times ao atrair para si os patrocinadores. Bebeto de Freitas comentava que havia mais retorno em investir na seleção e a confederação não se interessava em promover os clubes para ficar com a maior fatia do dinheiro.

Mas o homem que profissionalizou o vôlei nacional queria mais que medalhas. Sonhava com esporte como meio de educação. Juca Kfouri conta das horas de trabalho que ambos dedicaram a um projeto.

“Nós participamos de uma proposta de política de esporte, fizemos umas 12 reuniões de seis horas cada uma, a pedido do Lula antes de tomar posse. Esse programa não tinha uma linha de alto rendimento, era tudo pensado como fator de inclusão social. No final o Lula engavetou.”

Frases que marcaram a vida de Bebeto de Freitas

Ele (Nuzman) foi muito bem no início, mas depois foi mordido pela cobra e passou a privilegiar situações pessoais em detrimento do esporte

Bebeto de Freitas, ao UOL Esporte em 2012

O esporte brasileiro ainda vive nos anos de chumbo. Da ditadura militar ao MDB, ao partido do Collor, ao partido do Itamar, ao PSDB e ao PT, a única coisa entre eles é o presidente do COB

Bebeto de Freitas, ao "Globo" em 2014

Não trabalhei pra ele ser preso. Trabalhei pra c... pra esse vôlei do Brasil. Essas coisas perduram por culpa nossa, daqueles que não tiveram coragem do botar o dedo na ferida e falar

Bebeto de Freitas, ao "Globo" em 2017 após prisão de Nuzman

Toni Pires/Folhapress Toni Pires/Folhapress

"Era sanguíneo, intenso. Não conseguiria ter uma vida longa"

O jornalista Juca Kfouri conheceu Bebeto no fim dos anos 1970. A relação que começou profissional se transformou em amizade e admiração intelectual. “Ele tinha uma percepção da injustiça e uma revolta com a injustiça que é um traço da família Saldanha”, disse Juca. Bebeto era sobrinho do técnico João Saldanha, que preparou a seleção brasileira para a Copa de 70.

Não sou médico, mas era tal a intensidade em que ele vivia que olhando agora a essa morte precoce, não era uma pessoa pra ter vida longa

“Cada vez que ele me telefonava, eu tinha certeza que não ia demorar menos de 40 minutos. Eram longos desabafos, raivosos, sobre os esportes olímpicos, sobre o Botafogo. Ele era uma cara de peito aberto e pagou um altíssimo preço por isso.”

Mesmo após décadas de uma amizade próxima, Juca não consegue apontar temas de interesse de Bebeto que não tenham relação com o esporte. “A cabeça dele era toda voltada para isso.”

Se eu pudesse usar uma palavra para defini-lo, eu diria indignado. Ele não media as consequências, e era uma voz solitária."

Juca Kfouri

Juca Kfouri, amigo desde os anos 70

Títulos e feitos

  • Estaduais

    Como jogador, 11 títulos cariocas

  • Montreal-76

    Participou da Olimpíada como atleta

  • Mundial 82

    Vice-campeão como treinador

  • Geração de prata

    Vice-campeão em Los Angeles-84

  • Itália

    Campeão da Liga Mundial em 1997

  • Campeonato Mundial

    Vencedor com a Itália em 1998

  • Hall da Fama do vôlei

    Membro do grupo desde 2015

  • Botafogo

    Presidente do clube de 2002 a 2008

Paulo Cruz/Agif/Folha Imagem Paulo Cruz/Agif/Folha Imagem

Depois de mudar o vôlei, foi salvar o Botafogo

Bebeto de Freitas é peça fundamental na trajetória de sucesso do vôlei brasileiro. Não bastasse levar a seleção à prata no Mundial de 1982 e nas Olimpíadas de 84, serviu de inspiração para Zé Roberto Guimarães e Bernardinho.

O conhecimento que transformou o esporte no Brasil foi adquirido depois de uma passagem no vôlei americano no fim da década de 1970. Quando voltou para o Brasil, retirou o país do esquema amador de treinamento. em vez de treinos três vezes por semana, trabalho diário em dois turnos. Foram montadas comissões técnicas completas com médico e assistentes. O resultado foi o despontar de nomes como Renan Dal Zotto, Montanaro, William, Bernard, Amauri e o próprio Bernardinho.

Ele abandonou o vôlei para salvar o futebol do Botafogo numa época em que o clube estava na segunda divisão e devendo 18 meses de salário. Ficou envolvido com o futebol até sua morte. Uma pena porque nunca escondeu que desejava encerrar a carreira como treinador de vôlei, a modalidade que sempre amou.

Referência de uma geração

Ele foi o meu ídolo, minha referência como jogador, acreditou em mim e me fez o seu capitão. Foi o divisor de águas do vôlei brasileiro, o mentor da Geração de Prata. Fez do nosso vôlei um esporte popular e respeitado mundialmente

Bernardinho

Bernardinho

Um técnico a frente do seu tempo: ideias, pensamentos, treinamentos de vanguarda. Sempre foi extremamente profissional. Quando eu era assistente, ele disse 'crie, inove, invente, não copie o que outro treinador faz'. Isso ficou marcado

José Roberto Guimarães

José Roberto Guimarães

Vai deixar uma saudade incrível, realmente irreparável. Bebeto também era um dos profissionais mais admirados na Itália. Vai deixar uma saudade muito grande. Ele foi um dos caras que mais me inspiraram como atleta e treinador

Renan Dal Zotto

Renan Dal Zotto

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