Dia do goleiro negro

Dia 26 de abril comemora a profissão mais ingrata do futebol. Só que ela é muito pior para quem não é branco

Lucas Pastore e Luiza Oliveira Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL

Esporte de brancos, trazido ao Brasil por uma elite abastada que estudou na Inglaterra e não via com bons olhos a popularização do jogo, o futebol demorou duas décadas para de fato se abrir aos negros. O racismo, porém, não acabou com a miscigenação em campo. Em 1920, a seleção brasileira disputou dois amistosos em Buenos Aires e viveu isso na pele. 

“Os clubes locais se negaram a jogar contra os brasileiros por terem negros na delegação. O Brasil virou chacota na Argentina onde fizeram charges retratando os brasileiros como macacos ou ‘macaquitos’”, conta o doutor e pesquisador de história da USP, Marcel Tonini. No ano seguinte, o Sul-Americano seria disputado em solo argentino e o então presidente da República, Epitácio Pessoa, se reuniu com diretores da antiga CBD para pedir que apenas jogadores de pele clara fossem convocados, no intuito de levar uma ‘boa imagem’ do país para fora.

Um século de conquistas depois, Pelé puxa uma longa fila de craques que marcaram seu nome de forma definitiva na história. Da zaga ao ataque, a noção de superioridade branca foi tirada à força do imaginário coletivo. A exceção está debaixo das traves. Em 2018, ainda há quem acredite que arqueiros negros não são confiáveis. Desde 1976, 26 de abril é o dia do goleiro. Seguindo o Guia dos Curiosos, a inspiração para a homenagem é Haílton Corrêa de Arruda, o Manga, ídolo histórico de Botafogo, Inter e Sport que esteve com o Brasil na Copa de 1966. 

Manga é um dos maiores goleiros da história do futebol brasileiro. Manga é negro...

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AFP AFP

O mito de Barbosa e por que o gol é para brancos

O racismo deixou marcas mais profundas na figura do goleiro e um deles virou o símbolo dessa perseguição. O gol de Ghiggia decretou o título do Uruguai sobre o Brasil na Copa de 1950 e emplacou Barbosa como o grande vilão do futebol nacional, como ele mesmo eternizaria décadas depois. A frase repetida por ele tantas vezes é ainda mais cruel se você pensar que ele morreu, em abril de 2000, ainda sem a esperada absolvição. 

A pena máxima por um crime no Brasil é 30 anos. Eu pago por aquele gol há 50

Ativista, historiador e professor no Movimento Uneafro-Brasil, Douglas Belchior diz que a existência da lenda só é possível em uma sociedade racista. “Fosse Barbosa um goleiro branco, não haveria mito. Não se usaria as características raciais do sujeito para justificar aquilo que foi considerado um erro naquele momento”, conta. Ele e outros especialistas ouvidos pelo UOL Esporte vão mais a fundo na questão. Historicamente, existia a ideia racista de que o gol, por ser um setor que representa a confiança do time, seria mais adequado ao branco.

“É uma posição em que você precisa de segurança, seriedade, concentração. O que se espera de uma posição de defesa são elementos racionais e cerebrais associados mais aos brancos. Os negros são colocados em desconfiança. Por isso, jogam em posições ofensivas em que são sobrevalorizados outros atributos: o improviso, o que engana mais, o mais malandro. O futebol reproduz essa lógica”, conta Douglas Belchior.

"Não tem negro técnico. A ideia, o que está subjacente, é que o negro vai bem onde o talento prevalece, e não quando tem técnica e racionalidade envolvidas"

Dennis de Oliveira, , colunista da Revista Fórum

Será que essa resistência não é com as posições de responsabilidade do Brasil? Quantos CEOs ou presidentes de bancos são negros? Quantos governadores?

Carlos Thiengo, analista de desempenho da CBF e doutorando em Pedagogia do Esporte pela Unicamp

Temos de tomar cuidado para não reforçar o racismo. Falar sobre capacidade maior, criatividade, reforçar o negro no espaço do lúdico... São essas coisas que vão fazer ter divisão dentro do esporte

Pedro Borges, cofundador do site Alma Preta

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THIAGO BERNARDES/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO THIAGO BERNARDES/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Goleiro negão sempre toma um gol

Edilson

Edilson , ex-jogador, no Fox Sports, ao comentar sobre Jailson

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Dylan Martinez/Reuters Dylan Martinez/Reuters

Racismo não se apoia na ciência

Não há indício científico que mostre que o corpo do negro seja menos adequado à posição de goleiro que o de um branco. Carlos Thiengo, analista de desempenho da CBF e autor de estudo sobre a preparação de goleiros em seleções brasileiras entre 1958 e 2002, descarta qualquer tipo de argumentação do tipo.

O "mito" da aptidão é comumente usado de muleta no esporte. A suposta "propensão genética", por exemplo, explicaria a superioridade dos negros no atletismo. Por terem membros inferiores mais desenvolvidos, eles seriam superiores aos brancos, que por sua vez são melhores na natação por terem corpos mais gordurosos. Uma análise do tipo faria com que o corpo de Usain Bolt, alto para os padrões dos velocistas, fosse considerado inadequado para corridas de alta velocidade.

A "aptidão", em geral, tem a ver com uma questão de oportunidade. É mais fácil ter acesso a uma pista onde se possa praticar atletismo ou a uma piscina olímpica? "Antes de discutir vantagem biológica, é preciso discutir o acesso. Será que sem os mesmos acessos, é possível ter as mesmas oportunidades?", diz Thiengo. 

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Dida e o tabu de décadas na seleção

O Dida não era negão não. O Dida era pardozinho

Edilson

Edilson, ex-jogador, explicando por que Dida "não se aplica" ao mito do goleiro negro

Juca Varella/Folha Imagem Juca Varella/Folha Imagem

A lógica da sociedade racista: "Quanto menos negro, melhor"

A frase de Edilson segue a lógica "quanto menos negro, melhor", de que trata o colorismo. A tentativa de graduar negros de acordo com a tonalidade de sua pele é recorrente em discursos racistas e se dá porque o padrão de beleza da sociedade é baseado em homens e mulheres brancos. Quem se aproxima desse padrão, sofre menos preconceito.

“Aquele que tem mais melanina, menos mistura, que tem o nariz mais largo e lábio mais grosso, é alvo mais explícito de todas as desigualdades próprias do racismo”, analisa o ativista Douglas Belchior. Na visão dele, o Brasil desenvolveu um racismo baseado no fenótipo, diferentemente dos Estados Unidos, em que a origem tem mais peso. Na prática, as pessoas mais visadas pelo preconceito são as que trazem na aparência física as marcas mais explícitas da ancestralidade africana. 

O colorismo faz com que muitos negros tentem fugir de suas origens e se assemelhar mais aos brancos. “É tão perverso que isso estabelece vantagem para quem é mais miscigenado ou traz menos marcas da ancestralidade. Algumas pessoas negras poderem escolher que lugar vão ocupar porque ‘se eu posso ter vantagens sociais sendo considerado branco, por que não vou fazer?’. Na família negra brasileira é recorrente pedir para alisar o cabelo, não se vestir como negro, diminuir sua postura... Quanto mais perto disso, menos sofrimento”, diz Belchior.

Pedro H. Tesch/brazil photo press/estadão conteúdo Pedro H. Tesch/brazil photo press/estadão conteúdo

Aranha e os "outros Barbosas"

O vilão de 1950 é o maior, mas não o único exemplo de goleiro negro que sofreu no futebol brasileiro. De Barbosinha, apelidado assim pela semelhança com Barbosa e execrado do Corinthians nos anos 1960 após uma falha, a Veludo, eterno reserva de Castilho no Fluminense que nunca conseguiu grande espaço no time titular. Sempre envolto em questões "técnicas", o racismo segue impedindo goleiros de brilharem. Exceções, como Dida e Jaílson, só confirmam a regra. 

Em 2014, Aranha entrou em campo com uma série de outros jogadores negros do Santos. Foi ele, no entanto, o alvo das várias ofensas racistas dos torcedores do Grêmio. "Macaco" e "preto fedido" eram alguns dos xingamentos flagrados pelas câmeras de TV. O goleiro protestou, o time gaúcho acabou eliminado da Copa do Brasil e ele ficou marcado para sempre pela postura. 

Já ouvi várias vezes que estava me aproveitando da situação para me colocar como vítima. Em alguns casos, quem sofre injúria racial no Brasil é visto como culpado

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