O que os olhos não veem

Palco de rebelião e tragédia vira campo de futebol para meninos cegos

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo
João Racy/CPB/MPIX

Às margens da rodovia dos Imigrantes, em São Paulo, atletas de várias modalidades treinam e competem em um moderno centro de treinamento para atletas paraolímpicos. No mesmo terreno, até 1999, funcionava uma unidade da Febem (Fundação Para o Bem-estar do Menor) que foi palco de uma das rebeliões mais violentas da história da instituição, hoje extinta. A seguir o UOL Esporte conta essas duas histórias, que compartilham o mesmo palco, mas contrapõe formas diferentes de tratar crianças e adolescentes. 

#PraCegoVer: na foto de abertura, três jogadores cegos dão as mãos durante um treino da seleção sub-15 de futebol de cinco.

Rodovia dos Imigrantes, 2018

De olhos vendados, formam uma fila indiana e esperam a ordem de um adulto. Quando escutam a ordem, ouvem a bola rolando e a dominam com a banda interna do pé. Trotam na direção que o nariz aponta, a bola tilintando e rebatendo entre os pés, até que alguém grita. Chuta! E eles chutam.

Foi gol ou não foi? Às vezes, eles não têm certeza.

Correm à lateral do campo e esperam a bola ser atirada em sua direção novamente. Quando percebem sua presença, vão procurá-la, tentando interpretar seus sinais. Voltam ao fim da fila para começar tudo de novo. Se tiverem feito algo errado, encontram um adulto no meio do caminho e ouvem dicas, orientações de como chutar uma bola. Se não entenderem essas dicas, os adultos vão sentar no chão, segurar suas pernas e fazê-los repetir o movimento correto.

Eles são sete meninos entre 11 e 15 anos. Mesmo nessa idade, já passaram por coisas que a maioria das pessoas não passou. Vêm de lugares tão distantes, como São Luís, no Maranhão, ou Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Nessa tarde quente em São Paulo, acreditam que estão vivendo o começo de uma etapa nova na vida.

Todos sonham ser jogadores de futebol. Estão no final da primeira semana de treinos da seleção brasileira sub-15. Acham que dá para, um dia, chegar na principal. Vão fazer tudo que puderem para chegar lá. Mesmo que não tenham uma coisa básica que a maioria das pessoas tem.

Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem

Rodovia dos Imigrantes, 1999

A mensagem foi espalhada rapidamente e causou medo. Os monitores ameaçavam entrar em greve e disseram que, se isso acontecesse, a Febem seria dada de bandeja à tropa de choque da PM. Eles odiavam a tropa de choque da PM. Temiam as pancadas, as balas de borracha e as bombas de gás.

As quatro alas tinham sido projetadas para menos de 400, mas ali havia mais de mil. As denúncias de tortura estavam na imprensa, mas ninguém parecia se importar com eles. 

Mais tarde, a mãe de um deles diria aos jornalistas que a rebelião estava sendo gestada há vários dias. Em um sábado alguém deu o sinal, e a Febem virou. Cerca de cem foram a uma das alas, que estava em reforma, e se armaram do que encontraram. Puseram fogo em colchões e explodiram botijões de gás. Invadiram uma sala onde alguns monitores se escondiam e os fizeram de reféns. Encharcaram lençóis em álcool e envolveram os reféns nos lençóis, ameaçando tocar fogo neles se suas reivindicações não fossem atendidas.

A polícia cercou o prédio, mas o governador Mario Covas (PSDB) não autorizou a invasão, temendo um massacre. Eles subiram no teto de uma das alas e reivindicaram a remoção de uma parte dos internos para outras unidades. Enquanto não eram atendidos, descontavam nos monitores. Bateram e bateram. E atiraram os monitores do telhado.

#PraCegoVer: Acima, foto em preto e branco mostra internos da Febem ameaçando um funcionário com algo que parece uma faca durante rebelião em 1999. Policiais observam de longe.

Daniel Zappe/CPB/MPIX Daniel Zappe/CPB/MPIX

Rodovia dos Imigrantes, 2018

Kauã estava na sala de aula quando sentiu os olhos doerem. A professora achou melhor levá-lo ao hospital. Lá, seus pais descobriram que ele tinha uma inflamação grave chamada uveíte, além de catarata. Kauã foi operado na esperança de reverter um problema que podia lhe tirar a visão. A operação não funcionou.

Até hoje, quando algum menino pergunta como ele ficou cego, Kauã conta a mesma história: sempre jogou bola, mas sem poder enxergá-la, virou café-com-leite nos jogos na rua de casa, em São Bernardo do Campo. Por influência do pai, acabou virando corintiano e começou a passar todas as suas tardes na frente da televisão, ouvindo programas esportivos.

Por causa das mesas redondas, tornou-se aquele tipo de torcedor que sabe tudo o que acontece no esporte. Sabe em que jogo aquele atacante do Palmeiras estreou, quem fez os gols e que horas a partida começou. Conhece as idas e vindas do mercado de transferência melhor do que muitos jornalistas. Reconhece por nome, sobrenome e timbre de voz os narradores e os repórteres do rádio.

Mas o que ele queria mesmo era ser goleiro.

#PraCegoVer: Com uma venda nos olhos, jogador da seleção sub-15 chuta bola durante treino. Ele veste colete amarelo, calção azul e chuteira verde. 

Rubens Cavallari/Folhapress Rubens Cavallari/Folhapress

Rodovia dos Imigrantes, 1999

A rebelião durou dois dias. Quando os monitores conseguiram escapar, os rebelados se voltaram para os internos rivais. Começaram a perseguir os acusados de estupro e os delatores. Um deles foi pego para cristo. Considerado informante de monitor, foi espancado pelos líderes do motim na frente das câmeras e da própria mãe. Gritou de dor diante de uma tortura que seu corpo não estava preparado para absorver.

Os jornalistas assistiam a tudo atônitos, e a polícia, impotente, tentava conter o desespero dos pais, que ameaçavam invadir a Febem para salvar seus filhos. Os amotinados começaram a jogar telhas sobre a polícia, em uma tentativa de intimidá-los. “Não temos nada a perder”, disse um deles, de acordo com um jornal da época. “É matar ou morrer.”

De repente, a polícia viu voando do telhado algo diferente. Os adolescentes atiravam algo diferente. Dessa vez não era uma telha.

Era a cabeça de um deles, separada do corpo em um ato bárbaro.

#PraCegoVer: Na foto acima, seis internos se penduram em grade da Febem. Eles têm a cabeça coberta. Um deles grita.

João Racy/CPB/MPIX João Racy/CPB/MPIX

Rodovia dos Imigrantes, 2018

No futebol de cinco, a modalidade paraolímpica para cegos, existem cinco jogadores em cada time. O goleiro é o único que pode enxergar. Kauã conheceu o esporte quando tinha nove anos depois que o pai, taxista, conheceu um cliente que era cego. Foi convidada a assistir a um jogo em uma instituição. Ganhou uma bola com guizos para que pudesse ouvi-la rolando e aprendeu as regras. Dois anos depois, chegaria à seleção sub-15.

“Ele está super empolgado”, disse Ozeas da Silva, o pai. “Quando a gente pergunta se ele preferiria voltar a enxergar, mas deixar de ser jogador, ou ficar como está agora, ele diz que prefere estar jogador agora, mesmo sendo cego.”

A ideia de criar uma seleção sub-15 de futebol de cinco veio para dar a possibilidade de renovação para o time principal, tetracampeão olímpico da categoria. Em um moderno e confortável centro de treinamento às margens da rodovia dos Imigrantes, construído no terreno onde até 1999 havia uma unidade da Febem, os garotos sonham com uma carreira no esporte.

Ao redor deles, centenas de outros atletas paraolímpicos treinam para conseguir o mesmo. Sentados em círculo em um tatame, explicam o que sentiram quando perderam a visão. Ryan, 14 anos, da Bahia, ficou cego no ano passado. “Fiquei muito triste no começo, mas passou.”

“Do que você mais sente falta da época em que enxergava?”, pergunta o repórter. “De ver o rosto das meninas”, ele responde.

Samir, de 15 anos, sente mais falta das luzes pisca-pisca das árvores de Natal. Marquinho, de 14 anos, gostaria que houvesse mais aplicativos de celular para facilitar a vida. Adrian, também de 15, queria que as ruas tivessem mais sinalização tátil no chão. “É uma bagunça, não dá para andar direito.”

#PraCegoVer: Atacante cego da selecão sub-15 chuta a bola com a direita. O goleiro se prepara para tentar defender. Dois adultos atrás do gol, os chamadores, gritam para o atacante saber onde chutar.

Paulo Giandalia/Folhapress Paulo Giandalia/Folhapress

Rodovia dos Imigrantes, 1999

A rebelião da Febem foi contida, mas deixou quatro mortos – um decapitado e dois carbonizados. Acusado de um dos assassinados, um garoto de 18 anos disse que cortou a cabeça do colega com uma machadinha porque a vítima tirava sarro por ele não ter a mão esquerda e dois dedos da mão direita, perdidos quatro anos antes após um acidente com fogos de artifício. Três das quatro alas foram completamente destruídas. Centenas de adolescentes fugiram e os que não fugiram foram removidos para outras unidades.

Alguns chegaram a ir para cadeia comuns, o que era completamente ilegal.

O governador passou os meses seguintes tentando explicar o que havia dado errado. Covas chegou a culpar o Poder Judiciário, que dificultava a criação de novas unidades da Febem e fazia com que as existentes ficassem superlotadas.

#PraCegoVer: Na foto acima, internos da Febem caminham de mãos dadas e cabeças baixas. Um policial armado com um fuzil faz a escolta.

Daniel Zappe/CPB/MPIX Daniel Zappe/CPB/MPIX

Rodovia dos Imigrantes, 2018

Os meninos formam mais uma fila, tocam o ombro do colega na frente e se preparam para ir ao alojamento, um prédio bem conservado parecido com um hotel. Um dos treinadores vai guiando. O sol a pino faz o grupo suar, mas eles não se importam. Os meninos caminham cantando e contando piadas. De repente, o treinador para o grupo e descreve a paisagem: “Aqui ao lado tem muitas árvores e uma flores muito bonitas. Vamos ficar em silêncio um pouco para ver se escutamos um passarinho.”

Eles param e viram o rosto em direção à mata. E então um passarinho começa a cantar, um pio alegre e divertido, como se a pequena ave estivesse pulando em algum lugar escondido entre os galhos. “Cadê, cadê?”, procura o treinador. E então descobre.

O pio do passarinho vinha dos lábios de Marquinhos, o mais gaiato do grupo. “Dessa vez você me pegou!”, diverte-se o adulto, bagunçando o penteado do mais novo.

#PraCegoVer: Treinador da seleção sub-15 segura um apito e orienta seu atleta, que sorri.

Dado Junqueira/Folhapress Dado Junqueira/Folhapress

Rodovia dos Imigrantes, de 1999 a 2018

Logo depois da rebelião mais violenta da história da Febem, o prédio da rodovia dos Imigrantes foi demolido, e os internos, transferidos para outras unidades. No terreno, o governador Geraldo Alckmin, tucano como Covas, usou dinheiro estadual e federal para construir um centro de treinamento para pessoas com deficiência.

O Comitê Paralímpico Brasileiro venceu uma concorrência para ocupar o espaço, transferiu sua sede de Brasília para São Paulo e ofereceu as instalações para seus atletas de elite e suas categorias de base.

Em São Paulo, os adolescentes em conflito com a lei são hoje internados na Fundação Casa, criada em 2006 após a extinção da Febem. Na sede do Comitê Paralímpico Brasileiro, onde antes havia uma unidade da Febem, passaram quase 13 mil atletas apenas no ano de 2017.

Muitos com menos de 18 anos.

#PraCegoVer: Acima, foto mostra internos da Febem atrás de grades.

#PraCegoVer

A hashtag que você viu ao longo dessa reportagem é uma campanha de inclusão para possibilitar a compreensão do conteúdo apresentado para quem não enxerga. Cegos que acessam a internet usam aplicativos que reproduzem em áudio os textos publicados. O #PraCegoVer é sempre acompanhado da descrição da imagem postada, incluindo identificação dos personagens, movimentos apresentados e as cores presentes.

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