Legado de Dener

Craque morto há 23 anos "vive" para os filhos no YouTube e deixa memória afetiva entre São Paulo e Corinthians

Bruno Freitas Do UOL, em São Paulo
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Uma batida de carro a 60 km/h na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, colocou fim a uma das trajetórias mais meteóricas dos gramados brasileiros. Dener Augusto de Sousa dormia no banco do carona no momento do acidente, morrendo estrangulado pelo cinto de segurança, aos 23 anos. Ali, em 18 de abril de 1994, o futebol perdia um craque que prometia arrebatar o mundo. O ídolo do Vasco chegou a ser tratado como um "novo Pelé" e teve uma arrancada de carreira parecida com a de Neymar. Para três crianças de São Paulo, no entanto, era o pai quem estava partindo.

Dêniz Henrique, Felipe Augusto e Dener Matheus cresceram sem a figura paterna, percorrendo infância e adolescência acompanhados somente pela lenda em torno do craque de dribles desconcertantes. Os filhos do camisa 10 criado na Portuguesa não contaram com o pai em momentos chave do amadurecimento e precisaram se apoiar sobretudo na força da mãe, Luciana Gabino.

Os três jovens tentaram seguir os passos do pai no futebol, mas uma ou outra circunstância acabou frustrando a continuidade do legado esportivo do gênio do Canindé. Hoje, graças ao YouTube, os herdeiros conseguiram acabar com curiosidades triviais a respeito do progenitor – por exemplo, como era a sua voz. É pela internet que os Gabino de Sousa se relacionam com a memória de Dener e exercem o direito ao saudosismo. O ídolo vive através do afeto dos filhos.

Descobrindo a voz do pai na internet

Reprodução e arquivo pessoal Reprodução e arquivo pessoal

Amava o São Paulo, mas sonhava com o Corinthians

Dois filhos de Dener torcem para o São Paulo, e o outro é um integrante da Fiel corintiana. Não restou aos herdeiros nenhuma ligação afetiva significativa com os clubes que o ex-jogador defendeu, nem com a Portuguesa onde o ídolo se criou. Mais do que a vida profissional do antigo "menino de ouro" do Canindé, pesou para os jovens as histórias de infância do pai que não conheceram.

Dener cresceu na Vila Ede, Zona Norte paulistana, como um torcedor fanático do São Paulo. Quando jogava futsal pelo Colégio Olavo Bilac, o aspirante a craque chegou a ser convidado para atuar no clube do coração. No entanto, o habilidoso adolescente não se adaptou, ficou só uma semana no Morumbi e depois acabou parando no infantil da Portuguesa.

Já a ligação com o Corinthians se deveu ao fanatismo do avô materno, Seu Zé, apaixonado pelo time da Zona Leste. O sonho de Dener era jogar no Timão para homenagear o parente, e o namoro entre as duas partes chegou a acontecer em alguns momentos – mas a Portuguesa resistiu ao assédio e preferiu emprestar sua joia a clubes de outros estados, Grêmio e Vasco.    

"Todo mundo fala que ele era são-paulino doente, mas o sonho dele era jogar no Corinthians, por causa do meu bisavô", conta Dêniz Henrique, filho mais velho que acabou virando corintiano. "Por causa do meu bisavô e pela torcida", endossa Felipe Augusto, que é são-paulino.

"Desde que eu soube que ele era são-paulino, eu sou também e nunca mudei", diz Dener Matheus, tricolor de coração, assim como o irmão Felipe Augusto.

O mais próximo de Pelé?

O Dener tinha quer estar ontem em Paris [em amistoso da seleção], e não dando trombada no Rio. Merecia ter tido mais chance na seleção. Foi o jogador que mais se aproximou de Pelé, em relação a talento

Pepe

Pepe, ex-jogador de Santos e seleção e ex-técnico de Dener na Portuguesa (em depoimento à Folha de S. Paulo, publicado na edição de 20 de abril de 1994)

Reprodução/Folha de S. Paulo

O adeus precoce

Por que foi um craque inesquecível

Nenhum dos filhos virou jogador

Nunca foi fácil para um filho de craque tentar repetir os passos do pai. Com os herdeiros de Dener não foi diferente. Os três tentaram jogar futebol, inclusive vestindo a camisa da Portuguesa, que tanto marcou o ídolo da família. No entanto, nenhum deles conseguiu chegar ao profissionalismo.

Hoje Dêniz Henrique (27 anos) trabalha como consultor bancário. Felipe Augusto (24) também é representante bancário. Por sua vez, Dener Matheus (23) estuda Direito e trabalha num escritório de contabilidade e advocacia.

Fernando Donasci/Folha Imagem Fernando Donasci/Folha Imagem

A pressão social para os filhos virarem jogadores

Atacante canhoto e veloz, Felipe era o craque da casa. O herdeiro de Dener tentou emplacar em clubes em oportunidades diferentes, mas teve o caminho sempre interrompido. Assim, a pressão do legado do pai acabou transferida.

"As pessoas falavam: 'meu, vocês são filhos do Dener, alguém tem que virar'. Aquilo começou a despertar um negócio em mim. Vou tentar", relatou Dener Matheus, um ex-aspirante a lateral direito, de jogo simples e boa marcação.

Com Dener Matheus na Lusa, Felipe voltou a tentar a carreira pelo clube. Adiante, também passou pela Portuguesa do Rio. Atualmente, os filhos de Dener colocam a paixão pela bola em prática só em partidas na várzea.

Reprodução/TV Record Reprodução/TV Record

Dureza na Lusa: "alguns meninos tinham raiva"

"Pelo meu pai ter jogado lá, viam a gente de uma outra forma. Os meninos... alguns tinham raiva. Ou porque a gente estava lá por causa do meu pai, ou porque a gente tinha mais atenção que os outros. Mas muito pelo contrário, a cobrança era maior, e a pressão era para mostrar mais do que eles", comentou Dener Matheus, que ainda teve passagens por Rio Branco-SP e Avaí.

"Às vezes vinham diretores, traziam água, e os outros meninos tinham que ir na bica. Começaram a ficar meio assim com a gente. A gente ia para o CT, e eu e o meu irmão Felipe, meio isolados e tal. Depois a gente se entrosou com os meninos, ficou um clima bom", contou Dêniz Henrique, ex-atacante da base da Lusa.

Eu tentei bastante jogar bola. Confesso que hoje em dia eu me arrependo de ter tentado tanto, não ter feito outras coisas, porque está muito difícil de jogar bola hoje. Por mais que você tenha talento, ainda assim você precisa ter muita sorte. Não gosto nem de falar tanto, acabo ficando chateado. Gosto muito, queria muito ter sido jogador de futebol

Felipe Augusto Gabino de Sousa

Felipe Augusto Gabino de Sousa, atacante com passagem pela base da Portuguesa

Zeca Guimarães/Folhapress Zeca Guimarães/Folhapress

Mágoa com Portuguesa e Vasco

Durante muitos anos a família batalhou na Justiça para receber as indenizações referentes à morte de Dener, previstas em lei. Quando contratou o jogador por empréstimo em 1994, o Vasco não fez seguro de vida – acertou apenas seguro por acidente de trabalho. O acordo entre as partes para o pagamento saiu finalmente em 2007, mas a quitação do espólio do atleta veio a acontecer de fato em 2015 (só com Eurico Miranda no poder). 

Apesar da pendência jurídica com o Vasco, que se arrastou por anos, a viúva do jogador teve mais contato com a Portuguesa após a morte de Dener, durante a década de 90. Nos primeiros anos o clube paulista arcou com a incumbência de ceder à família um pacote de benefícios que incluía salário mínimo, cesta básica e auxílio de transporte.  

"Tenho um carinho com os clubes que ele passou, nem tanto com a Portuguesa. Minha mãe sofreu, teve muita decepção com aquele clube. Com o Vasco também, que muitas vezes atrasou os pagamentos", relatou Dener Matheus, terceiro filho do jogador. "Por muitas vezes ela teve que ir lá (Portuguesa) implorar, muitas vezes demoravam meses para dar. E quando davam não davam certo. Tenho um pouco de mágoa", acrescentou.

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No Direito esportivo: para seguir o pai

Assim como os irmãos mais velhos, Dener Matheus tentou a vida no futebol, de certa forma pressionado pela missão de manter vivo o legado da família em campo. No entanto, a despeito do nome e da semelhança física com o pai, o jovem não repetiu o destino como jogador. Mas eis que a presença no mundo do esporte hoje se faz possível por uma via alternativa.

Não consigo viver sem jogar, mesmo na várzea. Queria estar no meio, de alguma forma. Primeiro pensei em ser técnico ou preparador físico. Mas no meu primeiro emprego passei a trabalhar na área jurídica e tomar gosto. Vi que o Direito Esportivo era uma área em expansão. Tudo a ver com o que eu gosto

Dener Matheus Gabino de Sousa, filho de Dener

Quando eu comecei me encantei. Antes não gostava muito de ler. Mas me identifiquei de cara. Soube da possibilidade de que a carreira direcionasse ao futebol. Quero fazer pós em Direito Esportivo para estar na área, seguir um pouco o que o meu pai fez a vida inteira, até morrer

Dener Matheus Gabino de Sousa, filho de Dener

No aniversário de Dener

No aniversário dele normalmente eu fico muito mal. Tem dias que eu não consigo nem levantar da cama. É a data em que eu mais lembro dele. Antes de dormir eu já oro, oro por ele. Quando eu acordo, acordo com aquela tristeza. É uma data que não marca só a mim, mas a todos de casa

Dener Matheus Gabino de Sousa

Dener Matheus Gabino de Sousa, filho de Dener, sobre a data de 2 de abril

J.F.Diorio/Folhapress

Os amigos do futebol

César Itiberê/Folha Imagem César Itiberê/Folha Imagem

Filho de Pelé ajudou a família

Nos primeiros anos depois da morte de Dener, a família contou com o apoio do goleiro Edinho. O filho de Pelé foi um dos melhores amigos que o craque da Portuguesa fez no futebol. Passou o dia do velório com a mãe do jogador, Vera Rodrigues de Sousa, em prantos. Depois, o então atleta do Santos manteve proximidade de viúva e órfãos e prestou solidariedade. "Minha mãe conta que o Edinho vinha visitar a gente sempre, vinha saber como a gente estava", conta Dêniz Henrique.

Rodrigo Corsi/FPF Rodrigo Corsi/FPF

Parceiro de Lusa é segundo pai

Tico foi um atacante veloz e voluntarioso da Portuguesa no começo dos anos 90. Ao lado de Dener, era um coadjuvante do time campeão da Copa São Paulo de 1991. Mas, sobretudo, o melhor amigo do craque. Após a morte do parceiro, o ex-ponta se esforçou para suprir algumas das incumbências paternas. "Como se fosse meu pai, um cara para quem eu conto segredos meus. Amo de coração", diz Dêniz. "É muito presente na nossa vida, um pai mesmo, que dá conselhos", endossa Felipe.

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Marra "salvou" golaço contra o Santos

Dener tem dois golaços que ficaram para a posteridade, mas o segundo deles por pouco não aconteceu. O craque estava mal em campo na partida contra o Santos, em 1º de maio de 1993, em compromisso válido pelo Paulista. Pepe, então técnico da Portuguesa, ameaçou substituir o atleta no intervalo. A história foi perpetuada aos filhos graças ao relato do amigo Tico.

Depois de estar perdendo por 2 a 0 até o começo do 2º tempo, a Portuguesa virou para 4 a 2. Dener participou de dois gols – o último deles, a "obra-prima", passando por três santistas. 

Acabou o primeiro tempo, o técnico chegou no vestiário falando que ia substituir ele. A torcida estava xingando muito, o time perdendo. Mas aí meu pai falou: 'eu não vou sair, vou voltar e acabar com o jogo'. O Tico conta que todo mundo no vestiário ficou sem entender, ele não estava bem no jogo. Aí ele voltou e virou o jogo, acabou o jogo. No fim, meu pai falou para o Tico: 'eu falei, eu sou o Dener. Eles têm que entender que eu sou o Dener'

Felipe Augusto Gabino de Sousa, filho de Dener

Interação com craques

Paulo Giandalia/Folhapress Paulo Giandalia/Folhapress

Gozação com Viola

Alguns dos melhores 'boleiros' dos times de São Paulo no começo dos anos 90 cortavam o cabelo com o barbeiro Eddie Murphy, no bairro da Casa Verde. Dener era um cliente assíduo e, um dia, encontrou com Viola no salão. No papo descontraído ficou uma provocação ao corintiano: "Vou te dar uma caneta". Não deu outra, o craque da Portuguesa logo cumpriu a promessa do drible. Depois, quando soube que Viola estava cuidando do corte, Dener foi correndo até o salão de Eddie Murphy só para tirar sarro do adversário.

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A reverência de Maradona

Diego Maradona estava magro e entusiasmado em 21 de janeiro de 1994, em preparação pessoal para disputar a Copa do Mundo. Mas, naquele dia, o antigo melhor do mundo foi coadjuvante de Dener. Um amistoso de pré-temporada em Rosario acabou com o placar de 0 a 0. No entanto, o camisa 10 do Vasco infernizou a defesa do Newell's Old Boys e foi aplaudido de pé após uma jogada na lateral, marcada por uma incrível série de dribles. Até Dieguito foi flagrado pela transmissão de TV impressionado com o rival.

Reprodução/Folha de S. Paulo Reprodução/Folha de S. Paulo

Alemanha era o destino

A Portuguesa havia fechado verbalmente a venda de Dener ao Stuttgart dias antes da morte do jogador. A transferência foi acordada em US$ 3 milhões, além de direitos referentes a um quadrangular, planejado para agosto de 1994, envolvendo as duas equipes, além de Barcelona e PSV Eindhoven.

"Acertamos a negociação na noite de sábado, quando jantei com o representante do Stuttgart", relatou Manuel Pacheco Gonçalves, então presidente da Portuguesa, em entrevista à Folha de S. Paulo, publicada na edição de 20 de abril de 1994.

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Colunista da Folha tinha campanha por Dener na Copa de 94

Meses antes da morte de Dener, o jornalista Matinas Suzuki Jr. se posicionou a favor da convocação do jogador de Portuguesa e Vasco para a Copa de 1994, nos Estados Unidos. O então colunista do caderno de Esporte da Folha de S. Paulo entendia que a adição do driblador poderia ser uma cartada para oferecer um pouco de "fantasia" ao estilo pragmático que Carlos Alberto Parreira lapidava para a sua seleção. Foram vários textos publicados com esta campanha.

Na edição que tratou da morte de Dener, o jornalista da Folha de S. Paulo dedicou uma coluna tocante ao jogador, voltando à ideia do ataque com cinco homens.

"O Edmundo, o Bebeto, o Romário, o Muller, órfãos da nossa estrela de cinco pontas, perguntam: por quê, Dener? (...) Eu, que quis a 10 para você, murmuro: por que não, Dener?", escreveu Matinas, hoje diretor-executivo da editora Companhia das Letras.

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Biógrafo crava: "maior do mundo após 1990"

A breve obra do craque do Canindé como jogador de futebol foi imortalizada através de um livro, chamado "Dener – o Deus do drible", lançado pela Editora Pontes no final de 2016. Para o autor, Luciano Ubirajara Nassar, a trajetória do meia-atacante foi curta, mas suficiente para equiparar seu legado ao dos maiores do futebol mundial.

"O Dener foi muito maior que vários campeões do mundo. Pela criatividade, velocidade, improviso. Não precisou ter jogado no Palmeiras, São Paulo ou Santos. De 1990 para cá ninguém fez isso. Ele é o maior jogador do mundo de 1990 para cá. Maior que Zidane, Romário, Ronaldinho, Ronaldo Fenômeno. Melhor que Neymar, que Messi. Eu vi Pelé jogar, sei o que estou falando", comentou Luciano Ubirajara Nassar.

Recentemente, o escritor teve a chance de entregar um exemplar da biografia a Gabriel Jesus. Na oportunidade, o jovem atacante da seleção relatou já ter ouvido muito bem a respeito de Dener.

"Ele teve a vida curta, mas provou muito. Cumpriu sua missão na Terra ao mostrar uma arte pura e nobre. Foi um cometa", analisou o autor do livro. 

Além de seus dribles e golaços famosos, Dener conquistou três títulos na carreira: Copa São Paulo de Juniores (1991), com a Portuguesa, Campeonato Gaúcho (1993), com o Grêmio, e Taça Guanabara (1994), com o Vasco.

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