Explosão de intolerância

Estudo do Observatório Racial aponta aumento de 72% em casos de racismo no futebol brasileiro

Felipe Pereira Do UOL, em São Paulo

O futebol brasileiro teve quase um caso de racismo por semana no ano passado. Durante toda a temporada, foram 43 episódios registrados. O número é 72% superior ao registrado em 2016. Os dados fazem parte do Relatório Anual da Discriminação Racial do Futebol, que será divulgado nas próximas semanas. O UOL Esporte teve acesso ao estudo antecipadamente. O trabalho é produzido pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O relatório é feito com base no monitoramento da imprensa nacional e internacional e começou a ser produzido em 2014. As notícias publicadas nos veículos de comunicação são compiladas e os casos somados. Os pesquisadores ainda acompanham os processos para saber qual o desfecho. A punição não é uma regra.

O estudo também verificou outras formas de preconceito e descobriu que no esporte mais popular do país também há machismo, xenofobia e LGBTfobia. O organizador do relatório fala que não deseja vingança, mas pede Justiça. Afinal, racismo é crime.

Mais racismo e mais denúncias

Os crescimento de 72% nos casos de racismo ano passado é consequência de dois fatores na avaliação do organizador do estudo, Marcelo Carvalho. “Costumo dizer que não dá para afirmar se houve aumento de casos ou aumento de denúncia. Acho que aconteceram as duas coisas.”

O estudioso também acredita que o meio do futebol está mais atento ao racismo e a sociedade, mais inclinada a discriminar. “Além do aumento da conscientização de atletas e da imprensa, há uma tendência mundial de aumento da intolerância”.

Na comparação com 2014, primeiro ano de publicação do relatório, o crescimento do racismo foi de 115%. Um trecho do relatório sinaliza que o cenário pode ser apenas uma fração do problema. “Suspeitamos que há um grande número de casos que não são denunciados pelas vítimas e/ou pela imprensa”.

Estádio é lugar de racismo

O relatório aponta que em cada três casos de racismo no futebol brasileiro, dois ocorrem em estádios – 29 em 43 ocorrências. A maneira mais comum de agredir uma pessoa por causa da cor da pele é chamá-la de macaco ou fazer sons ou gestos imitando o animal, em direção à vítima. Dos 29 episódios de racismo ocorridos em estádios, 23 foram assim.

A prática de chamar um negro de macaco não faz distinção de classe social, tamanho do clube e nível do campeonato. Aconteceu com Felipe Melo, do Palmeiras, na Copa Libertadores da América, diante do Peñarol. Com a família de Vinícius Junior, do Flamengo, contra o Botafogo, pela Copa do Brasil. Com Léo Mineiro, do São Luiz/RS, contra o Avenida, pela segundona do Campeonato Gaúcho.

Os intolerantes também combinam termos referentes a raça negra com adjetivos negativos. “Preto sujo” e “negrão vagabundo” foram palavras ditas em estádios brasileiros em 2017. Quem não tem sangue de barata e reage, precisa estar preparado. Pode acabar sobrando para vítima.

Zidane brasileiro

Guaraci era o cara do meio de campo do CRAC encarregado de proteger a zaga na partida contra o Atlético GO em fevereiro do ano passado. Era um jogo do Campeonato Goiano, um palco era bem menos glamouroso do que a final da Copa do Mundo de 2006 em que Zinedine Zidane deveria ter brilhado. A menção ao craque francês é porque ambos perderam a cabeça pelo que ouviram em campo.

Zidane, em plena final, foi expulso ao dar uma cabeçada no zagueiro italiano Marco Materazzi depois de ouvir impropérios sobre sua família. Guaraci, ao ouvir um insulto, deu um tapa em um jogador rival.

“O lateral-direito Jorginho chegou conversando comigo com atos raciais. Isso não pode acontecer de forma alguma. 'Preto' e 'sujo' foram as coisas que eu ouvi. O resto não consegui ouvir muito bem”, disse o atleta na época ao Globoesporte.com.

O presidente do time classificou a reação como “ridícula” e “uma pouca vergonha”. O detalhe? Ele estava se referindo a Guaraci, o ofendido, não a Jorginho, que ofendeu. Após sofrer a agressão racial, então, o volante acabou demitido do CRAC.

Como o caso Guaraci mostra, campo de futebol é lugar de preconceito. Um em cada três episódios de crime racial em estádios ocorre com jogadores xingando jogadores. A ideia de que atletas respeitariam companheiros de profissão é irreal na avaliação de Marcelo Carvalho, organizador do Relatório Anual da Discriminação.

“Vale lembrar que somos uma sociedade racista. Não importa a profissão da pessoa. Tem racismo nas famílias. Se sou racista, eu vou cometer [atos racistas], independentemente de ser colega de trabalho”.

Ele também não concorda com o argumento que pessoas ligadas ao futebol usam para justificar o racismo: dizer que é uma maneira de desestabilizar o adversário. A alegação de que são palavras que não traduzem os valores dos boleiros não convencem o estudioso. “Se não tem tendência racista, vai tentar desestabilizar de outra maneira”, afirma Carvalho.

Como não podia deixar de ser, outro espaço de manifestações racistas são as redes sociais. Há 11 casos originários na internet. Agora, são os torcedores a maioria dos autores dos crimes. O ritual é sempre parecido: usar um perfil para xingar jogadores ou torcedores adversários. Mais uma vez, o termo macaco é empregado, mas ele divide o protagonismo com expressões como “negro de m...”, “comedor de banana” e outros xingamentos.

O curioso é que a internet também serve de tribunal onde racistas são espancados em praça pública. Marcelo Carvalho atribui o comportamento nas redes sociais aos negros sofrerem racismo contínuo e não poderem levar os criminosos à delegacia. “Quando conseguem dar rosto e nome a uma agressão, a gente lembra de todas as situações anteriores. Colocamos o alvo nesta pessoa. Ela vira a personalização do racismo”.

O organizador do relatório ressalta que não deseja vingança. O estudioso defende que seja feita justiça até o final. “Não quero resolver com um pedido de desculpas. Até porque precisa de exemplos [de punição mais dura] porque, no imaginário das pessoas, racismo não dá em nada”.

Vítima não denuncia, diz jurista

Desde que o levantamento passou a ser feito, em 2014, o Observatório Racial constatou 123 casos de racismo. O número de condenações na Justiça Desportiva está muito abaixo: foram somente 15 condenações – 12%. O baixo índice tem uma série de motivos:

“Um processo começa com árbitro escrevendo algo na súmula ou o ofendido fazendo denúncia. Precisa ser provocado. Nem sempre chega ao nosso conhecimento. Se chegar, a gente julga”, afirma Luiz Roberto Martins Castro, auditor do pleno da Federação Paulista de Futebol, última instância da Justiça Desportiva no estado.

O jurista diz que os jogadores ficam batendo boca na imprensa e não fazem as denúncias. Outro ponto é que a regra do Direito determina que, na dúvida, a decisão é pró réu. Luiz Roberto declara que precisa do máximo de informações para tomar a decisão correta. “A gente repudia qualquer tipo de racismo, mas tem que preservar a Justiça. Não pode julgar qualquer pessoa com a palavra da outra.”

Quem denuncia fica marcado

O organizador do estudo afirma que a grande questão para a impunidade é a falta de iniciativa dos jogadores em denunciar o racismo. “Vem do medo de assumir um posicionamento. Fica no imaginário a situação de alguns atletas que se posicionaram e acabaram no ostracismo. O Aranha se posiciona, fica um tempo sem clube e é tido como jogador problemático”, lembra Carvalho.

Ele acrescenta que também falta apoio dos clubes aos jogadores vítimas de racismo. O estudioso declara que os times não compram a questão e, desta maneira, desencorajam as vítimas a buscarem justiça. O pesquisador conta que, nestas situações, dirigentes costumam alegar que não toleram racismo e citam uma ação passada, como entrar com uma faixa no gramado, como prova de que estão agindo.

Apesar de dizer que os jogadores não denunciam, o organizador do estudo reclama que os tribunais ficam dentro das federações. “Não deveriam, mas eles têm sede nas federações. Existe a questão de punir um afiliado da entidade”.

Preconceito de todos os tipos

O futebol não desperta apenas racismo. Os estádios e as redes sociais são palco, também, de LGBTfobia, machismo e xenofobia. O preconceito mais comum deste trio é contra a orientação sexual. Nem mesmo com a Fifa punindo os gritos de “bicha” (quando o goleiro chuta um tiro de meta) afastou o xingamento dos jogos da seleção brasileira.

A diferença entre pessoas LGBT e mulheres se dá no grau de aceitação. A elas é permitido frequentar os estádios, mas devem se comportar daa maneira que os outros torcedores delimitam. Não seguir o script resulta em preconceito. Quem é LGBT sequer é autorizado estar no estádio.

Machismo e arrependimento

Um caso que mostra esse cenário aconteceu com a repórter do Grupo RBS Kelly Costa. Ela fez uma pergunta ao então treinador do Internacional Guto Ferreira em julho do ano passado. A resposta foi grosseira. “Desculpe, eu não vou fazer essa pergunta para você porque você é mulher e de repetene não jogou".

Antes mesmo de deixar a zona mista, o técnico procurou a jornalista para se desculpar e estendeu o pedido a todas as mulheres. Ele também aceitou participar de um programa de TV e se desculpou publicamente em rede nacional. “Acho que fui mal e, por isso, estou aqui pedindo desculpas”, declarou.

O episódio rendeu a Kelly manifestações de solidariedade de pessoas que vestem a camisa dos dois grandes clubes do Rio Grande do Sul, Grêmio e Internacional. A jornalista escreveu que agradecia o apoio de torcedores. Apesar da retratação, outras jornalistas disseram que isto não é o suficiente para quem enfrenta, todos os dias, o machismo.

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