Por que tantas mortes?

Mesmo com vários esforços, número de assassinatos relacionados ao futebol dispara no Brasil em 2017

Guilherme Costa Do UOL, em São Paulo
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O Brasil é um país violento. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de assassinatos em solo nacional é superior ao da Guerra da Síria, por exemplo. E o futebol, é claro, não está alheio a isso. Em 2017, a despeito da adoção de torcida única em clássicos de pelo menos três Estados, disparou o número de mortes relacionadas ao esporte. Foram 11 assassinatos vinculados ao esporte até julho, quase o mesmo número de 2016 (13 mortes em 12 meses). A última vítima foi Leandro de Paula Zanho, palmeirense que se envolveu em briga numa borracharia no dia em que Palmeiras e Corinthians se enfrentaram no Allianz Parque.

Na conta do Ministério Público do Estado de São Paulo, essa morte não tem qualquer relação com futebol. O órgão, aliás, tem propalado a ideia de que a violência associada ao esporte arrefeceu no último ano. A principal razão seria a torcida única em clássicos – prática recorrente no Estado desde abril de 2016. Atualmente, também há veto a visitantes em Alagoas e Bahia.

Apenas em 2017, 500 torcedores foram presos ou afastados de estádios em São Paulo. Mesmo com isso e outros esforços, como cadastro de organizadas e punição aos clubes, houve pelo menos 17 conflitos em 16 rodadas do Campeonato Brasileiro e três mortes somente no último mês. Afinal, você se sente seguro?

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O que dizem os torcedores

André Azevedo, presidente da Associação Nacional das Torcidas Organizadas

Discordo totalmente de falar que 2017 foi um ano do estouro da violência no futebol. Sempre coloco que a violência do futebol é como a violência social. Parece que vivemos na Suíça e que o comportamento das torcidas organizadas difere do todo. Na verdade, as torcidas organizadas são retrato e reflexo da própria sociedade.

Como você vai separar o comportamento social das torcidas do cidadão brasileiro? Quem faz parte das torcidas é o cara que tem como base a nossa educação, o desemprego, a repressão em alguns sentidos. Quem faz parte é a sociedade que está roubando em farol e matando. Tem violência na praia, no trânsito. Olha a calamidade pública em que se encontra o Rio de Janeiro. O Brasil tem quatro ou cinco cidades entre as mais violentas do mundo. Como você vai querer que uma torcida tenha um comportamento diferente do restante da sociedade?

O aumento da violência no futebol em 2017 é comparável ao aumento da violência na sociedade. O país que é o país do futebol tem de ser essa merda que é. Não é o país da ressocialização, da educação ou da cultura. Está errado.

Especial Especial

O que dizem as autoridades

Paulo Castilho, promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo

Você sempre vai ter problemas porque é questão de violência urbana e social. Para nós, o importante é trabalhar em medidas repressivas e preventivas. Agora, se amanhã um marido palmeirense briga com uma mulher corintiana, a culpa é do futebol?

Os números de torcida única são fantásticos e incontestáveis. Você vê briga em todos os lugares que têm duas torcidas. Na verdade, deveríamos ter torcida única em todos os lugares com jogos no Brasil. Você teria evitado brigas como as que aconteceram em Coritiba x Corinthians, Vila Nova x Goiás, Sport x Palmeiras ou Vasco x Flamengo.

O Estado não tem o que fazer se você faz todo o planejamento de prevenção, mas um grupo de 30 ou 40 pessoas resolve combinar com outro grupo para brigar. Se eu e você combinarmos de ir ao shopping agora e brigar, isso é falha da polícia? É a mesma coisa, só que em número maior. 

ROBERTO VINÍCIUS/ESTADÃO CONTEÚDO ROBERTO VINÍCIUS/ESTADÃO CONTEÚDO

O que diz quem estuda o assunto

Mauricio Murad, sociólogo que estuda violência no futebol desde 1990

Ainda é cedo para concluir algo sobre 2017, mas parece que vai haver um número muito grande. Historicamente, no Campeonato Brasileiro, a partir da metade do segundo turno, os confrontos e as mortes crescem muito. E nós ainda não chegamos sequer à metade do campeonato. Portanto, a projeção é maior.

A primeira razão é que a violência aumentou muito no Brasil em geral, e a violência do futebol reflete esse aumento na sociedade. Tinha havido uma queda a partir de 2014 por causa de Copa das Confederações, Copa do Mundo e Jogos Olímpicos. Diminuiu em quantidade, mas aumentou em crueldade e aumentou muito o nível de organização. Não dá para comemorar isso.

Outro ponto é que cerca de 70% dos torcedores que deixam de ir ao estádio alegam como principal razão a violência. O torcedor do bem se afasta por medo, e os que querem conflitos, se você cria a ideia de que é um ambiente propício, se aproximam. Aí o estádio passa a ser ocupado efetivamente por um grupo maior e mais violento.

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O que o futebol brasileiro já fez para combater a violência

Pôs a mãe no meio

Em fevereiro de 2015, torcedores de Náutico e Sport tiveram uma surpresa quando chegaram para um clássico na Arena Pernambuco. Em ação idealizada pela agência de publicidade Ogilvy, havia no estádio um pelotão de seguranças formado por mães de pessoas que estavam nas arquibancadas. As genitoras estavam devidamente paramentadas, identificadas como se fossem oficiais, e não houve registro de violência naquele dia.

Apelou à comunicação

Ninguém pode dizer que times, federações e confederação não tentaram conversar. Em diferentes formatos, todo mundo no futebol brasileiro fez ações de comunicação com intuito de sensibilizar torcedores. Há exemplos como músicas, posts em redes sociais, times entrando de mãos dadas em campo, uso de mascotes e até a criação de um fórum para torcedores organizados debaterem o tema.

Tentou misturar todos

O Campeonato Gaúcho apostou em uma ideia que vai na contramão da torcida única. Desde 2015, clássicos entre Grêmio e Internacional têm um setor para torcida mista. Também já houve promoção de "compre um e ganhe dois ingressos", desde que o segundo bilhete fosse destinado a um torcedor rival. A tentativa de acabar com muros e grades remete a espaços como a geral do Maracanã e até agora funcionou.

Cadastrou torcedores

Após articulação com o Ministério Público, a Federação Paulista de Futebol criou em 2007 a exigência de cadastro para torcedores organizados entrarem em estádios de São Paulo. A Federação Pernambucana de Futebol também seguiu essa linha e lançou até aplicativo para ajudar a identificar os brigões. Saber quem eles são, contudo, não significa excluir: a despeito das informações, segue grande a lista de reincidentes em conflitos no futebol brasileiro.

Criou delegacias

Defendida até pela então presidente Dilma Rousseff em 2014, a criação de delegacias especializadas foi uma tentativa de autoridades brasileiras para agilizar os processos relacionados ao esporte. Neste ano, por exemplo, a conta do Ministério Público de São Paulo é que 500 torcedores foram presos e afastados do futebol no Estado. Também houve a criação de um juizado especial para acelerar o andamento de processos.

Puniu os times

Outra prática recorrente no Brasil é a punição esportiva por comportamentos inadequados. A ideia é que os brigões fiquem intimidados e se sintam mal pela possibilidade de prejudicar seu time. Serviu para coibir práticas como objetos arremessados em campo - os próprios adeptos passaram a ajudar na identificação de autores -, mas não erradicou ações violentas. O último punido foi o Vasco, que passará seis jogos longe de São Januário.

Torcida única: apareceu a solução?

A discussão sobre violência no futebol pode até ser recorrente, mas sempre ganha novos elementos. No Brasil, o assunto da vez é a adoção de torcida única, que o Ministério Público conseguiu implantar nos clássicos de São Paulo desde abril de 2016. Já foram 27 partidas disputadas sem a presença dos torcedores visitantes.

Segundo o MP-SP, os números desses clássicos são o maior argumento favorável à torcida única. A conta do órgão é que o público nos estádios aumentou, mas a demanda por policiais diminuiu e os confrontos entre torcedores tiveram queda de pelo menos 50%.

A confiança do MP-SP nas políticas de controle adotadas no Estado é tão grande que o órgão até aceitou rever outros pontos. Em reunião realizada na última segunda-feira (24), o promotor Paulo Castilho admitiu derrubar o veto a itens como bandeiras, instrumentos musicais e uniformes de torcidas organizadas. As contrapartidas para isso ainda serão apresentadas, mas é um caminho para que a festa não seja tão esvaziada.

“É um laboratório. A torcida que não se comportar a gente não tem nenhuma dúvida de retroceder. Se tiver um retrocesso, aí ficaria uma coisa quase definitiva. A torcida que não cumprir, esquece”, disse o promotor.

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Quem mais adotou torcida única no Brasil

Alagoas

No Campeonato Alagoano, a adoção de torcida única virou motivo para uma discussão política. O veto aos visitantes foi determinado pelo TJ-AL em abril e defendido pelo CSA, mas o CRB foi contra. A federação estadual ficou no meio desse conflito e optou por uma solução salomônica: manteve a torcida única, mas apenas para 2017.

Bahia

O Ministério Público também determinou torcida única para os clássicos do futebol baiano, e por lá a decisão foi igualmente polêmica. Um torcedor do Bahia chegou a acionar a Justiça para entrar em um jogo no Barradão, e as diretorias de Bahia e Vitória se posicionaram abertamente contra a medida. Até aqui, a pressão não funcionou.

Desempenho de mandantes cai com torcida única

Instituída em 2016, a torcida única já foi um elemento presente em 27 clássicos do futebol paulista. Nesses jogos, sem a presença de adeptos rivais, os mandantes angariaram 16 vitórias, cinco empates e seis derrotas. O desempenho é pior do que o registrado nos 27 duelos anteriores entre os mesmos times. Com os dois lados representados nas arquibancadas, os donos da casa haviam conseguido 18 triunfos, quatro igualdades e apenas cinco placares adversos.

Armando Paiva/AGIF Armando Paiva/AGIF

Por que o Rio de Janeiro não tem torcida única?

Em fevereiro, depois de um torcedor do Botafogo ter sido assassinado por membros de uma organizada do Flamengo antes de um clássico no Engenhão, o Ministério Público determinou a adoção de torcida única em jogos envolvendo as equipes mais populares do Rio de Janeiro. A medida foi o mote para uma união extremamente significativa entre diretorias de clubes, com participação até da Secretaria de Esporte e Lazer do Estado. No entanto, não foi por um acordo de convivência pacífica. O que aproximou todos esses nomes foi uma tentativa de vetar a iniciativa.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acatou recurso em março e liberou a presença de torcedores visitantes em clássicos no Estado. Foi uma vitória proporcionada, sobretudo, pela união entre diretorias de clubes – apenas o presidente do Botafogo, Carlos Eduardo Pereira, questionou a “falta de uma resposta à sociedade” e lamentou a queda do veto sem que houvesse contrapartida.

Com torcedores das duas equipes, porém, um clássico entre Vasco e Flamengo foi palco para cenas de barbárie em julho. Houve confronto entre torcedores da equipe da casa em São Januário, invasão de campo, choque com a polícia e até rojões disparados na direção de jogadores rubro-negros. O Vasco foi punido pelo STJD e terá de fazer seis partidas longe de seus domínios por causa do episódio. 

A gente tem de dar um basta. Não dá para pagar o preço de um jogo de futebol com morte! Não dá!

Tite

Tite, Técnico da seleção brasileira, ao Sportv

O futebol, que você aí e nós aqui amamos tanto, é nosso e não deles. Precisamos de providências urgentes

Galvão Bueno

Galvão Bueno, Narrador da TV Globo, no programa "Bem, amigos"

Gringo, o torcedor que comanda brigas de um presídio no RJ

Conhecido como Gringo, Vitor Portêncio da Silva está há mais de três meses no Presídio Cotrim Neto, na Baixada Fluminense (RJ). Ele é acusado de ter participado do assassinato de um torcedor do Botafogo em fevereiro, em clássico no Engenhão – Diego da Silva Santos foi morto na área externa do estádio, atingido por um espeto de churrasco. No entanto, segundo o Ministério Público, a reclusão não alijou Gringo da articulação de brigas e confrontos: de acordo com o órgão, é dele uma voz que convoca membros de uma organizada do Flamengo a armar uma emboscada na zona oeste da cidade no dia de uma partida contra o Vasco.

A convocação de Gringo foi distribuída em seis áudios e disseminada via aplicativo de mensagens WhatsApp. “Só os braço forte, mano. Só os amigos bons. [...] Vamo pra cima deles, rapaziada. [...] Sábado é dia do caô, mano. Vamo tomar o Gardênia”,  diz o torcedor preso. “Tô agarrado aqui, mas nada mudou”, completa.

A informação de que o MP acredita que Gringo é autor dos áudios foi divulgada pelo canal fechado Globonews e confirmada pelo UOL Esporte. Nas conversas, o torcedor também fez provocações a rivais e às autoridades. Ele ainda chama o grupo de “bonde do espeto”, alusão à arma usada para matar o botafoguense em março.

Torcida única é usada em outros esportes no Brasil

A adoção de torcida única é um tema mais recorrente em discussões sobre o futebol no Brasil, mas a modalidade não foi a única que recorreu a esse expediente para tentar coibir ações violentas de torcedores. Houve ações similares no basquete e no futebol feminino.

A FBERJ (Federação de Basquete do Estado do Rio de Janeiro) adotou torcida única para clássicos no Estadual da modalidade em 2016, mas isso não impediu a existência de conflitos. Numa partida entre Flamengo e Vasco, no ginásio do Tijuca, duas torcidas rubro-negras entraram em confronto. O caso motivou extensa batalha de bastidores porque o Vasco não aceitou disputar a decisão em arena sem público visitante. O Flamengo foi declarado campeão por WO, mas houve recurso.

Desde então, todos os clássicos do basquete carioca têm sido disputados com torcida única. Também houve ocasiões em que a Justiça determinou ginásio fechado e ausência total de público. O que sumiu de vez foi a arquibancada dividida.

A adoção de torcida única ainda foi uma tentativa do futebol feminino. Por orientação do Juizado Especial Criminal, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) seguiu o que já vinha sendo feito no masculino e excluiu o público visitante nas partidas entre Corinthians e Santos.

Se for para ter violência, prefiro que seja torcida única

Willian

Willian, Atacante do Palmeiras, em entrevista coletiva

No mundo inteiro, futebol não é coisa para pobre. Torcida dividida e entrada a preço de banana estragada só existem no Brasil

Alexandre Kalil

Alexandre Kalil, Prefeito de Belo Horizonte e ex-presidente do Atlético-MG, ao "El País"

Argentina tem torcida única desde 2013. E não funcionou

Em 2013, depois de uma briga entre torcedores de Boca Juniors e San Lorenzo ter terminado com duas mortes, a Argentina passou a adotar torcida única em clássicos. A experiência do país vizinho é mais um motivo para o Brasil ter dúvida sobre o efeito desse modelo. Desde então, os hermanos registraram 44 mortes relacionadas ao futebol.

O site “Salvemosalfutbol.org” tem um levantamento com todas as mortes na Argentina que podem ser vinculadas ao futebol. Foram 321 desde 1922 e cinco apenas neste ano. O último foi Omar Alcides Verón, 44, vítima de um disparo de rifle de ar comprimido em maio, quando saiu à rua para celebrar um triunfo do Rosario Central.

O que outros países tentaram para combater a violência

O exemplo inglês

Em qualquer discussão sobre violência no esporte, o contraexemplo pronto é o que aconteceu na Inglaterra. Depois da tragédia de Hillsborough, em 1989, o país instituiu um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como "Relatório Taylor": reformou estádios, obrigou a instalação de cadeiras e câmeras de segurança, instituiu mecanismos para identificação de arruaceiros e intensificou as ações preventivas.

Homens barrados

O modelo da Premier League estabeleceu um novo paradigma para o combate à violência no futebol europeu. Isso foi replicado, com algumas adaptações, em países como Alemanha e Espanha. Na Turquia, em 2011, autoridades tentaram algo ainda mais extremo: baniram temporariamente os homens e limitaram os estádios a mulheres e crianças. O efeito foi apenas temporário, e houve duelos quando homens voltaram.

Transformar em esporte

Na Rússia, um dos países que mais têm registros de comportamento violento por parte de torcedores, um deputado ultradireitista chamado Igor Lebedev deu sugestão inusitada em 2017. A ideia foi a regulamentação de brigas relacionadas a futebol e a transformação disso em uma espécie de modalidade, com 20 pessoas para cada lado e regras como veto ao uso de armas.

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