O rei está triste

Reinaldo faz 29 anos nesta sexta-feira, mas não haverá festa: "É o dia mais triste da minha vida"

Bruno Grossi, Felipe Pereira e José Eduardo Martins Do UOL, em São Paulo
Marcio Komesu/UOL

“Meu pai faleceu em 2011. Foi em um 28 de setembro. É o dia do meu aniversário, mas para mim é um dia muito triste, sabe? Lembro até hoje: eu voltei para minha cidade para enterrar meu pai. É o dia mais triste da minha vida. Todo ano meus irmãos falam: ‘queria que o pai tivesse vivo para ver o seu sucesso, onde você tá jogando’.

Eu nunca falei isso para a imprensa, mas é um desejo que está dentro de mim. Queria que meu pai me visse jogando num clube igual ao São Paulo. Foi dele que começou tudo”

Reinaldo, lateral do São Paulo

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Amor incondicional

A sexta-feira é de anticlímax. Não tem bolo, balões ou fotos no Instagram. Daiana, a esposa, pede para Reinaldo esquecer um pouco, mas não adianta. Ele fica isolado nos cantos lembrando do pai. Mas Reinaldo sabe que tem sido um bom filho.

“Meu pai se chama Petrúcio e eu tenho certeza que, de onde ele estiver, está me vendo e está muito orgulhoso deste filho que ele tem”, afirma, usando o verbo no presente.

A certeza da aprovação é muito importante porque o amor de Reinaldo é incondicional. Ignora facetas difíceis de passar por cima. Petrúcio morreu de cirrose. O estilo de vida não colaborava com a manutenção de um casamento, mas não abalou a relação pai e filho.

“Eu meio que via algumas brigas deles. Quando minha mãe me chamou [para contar da separação], eu fiquei muito triste, chorei muito. Mas eu preferi ir com minha mãe porque meu pai saía muito para beber, essas coisas. Mas eu mantive uma relação muito boa com ele. Sempre visitava, dormia na casa dele. Nunca deixei de amar meu pai por causa da separação”.

Assista: Reinaldo prefere lembrar do pai ouvindo brega

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Vida em família na fazenda

A família de Reinaldo esteve unida enquanto viveu na Fazenda Canaã. A propriedade fica na parte rural de Porto Calvo, no interior de Alagoas. Tinha cerca de 5 mil habitantes e pertencia a uma usina de cana-de-açúcar onde Petrúcio trabalhava. Cada funcionário recebia uma casa que não era grande coisa. Nem energia elétrica havia. E estamos falando da década de 1990. O começo da vida de Reinaldo foi de privações.

“Meu pai trabalhava na usina, meus irmãos também. E sempre atrasava [o salário]. Não tinha onde comprar porque já devia na mercearia. Mas nunca faltou comida. Faltava um arroz, faltava uma mistura, faltava um feijão. Mas sempre tinha o que comer para não passar o dia com fome”.

Às vezes, levava tempo para a mistura aparecer no prato. “Quem mora em fazenda sempre tem galinha. Para não matar a galinha, a gente comia só o arroz. Deixava a galinha reproduzir, os pintinhos crescerem. Depois a gente se alimentava”.

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Faltavam brinquedos, mas não brincadeiras

Reinaldo morava na frente de um campo de futebol. Foi lá que viu o pai e os irmãos jogando bola e sonhou ser jogador profissional. Mas até bola faltava. Ele improvisava recheando sacolas de plástico. E não era só no futebol: latas de óleo viravam carrinhos e noites de lua cheia eram celebradas.

“A gente sempre jogava bola à noite. E torcia para a lua sair porque clareava o campo, por incrível que pareça. A gente ficava brincando até a hora de dar o sono”.

A comida era sem mistura, os brinquedos eram improvisados, mas Reinaldo não ligava. Ele sente saudade daqueles tempos. “Falo que foi uma infância muito feliz que vivi na fazenda. Sempre que vou até lá vejo a casa, o pé de manga, o de goiaba, em que eu subia e caía. Quebrei um braço uma vez caindo do pé de goiaba. Até passa um filme na cabeça”.

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A primeira mudança de CEP

A vida na fazenda acabou com a separação dos pais. Reinaldo seguiu com a mãe porque era o melhor para sua vida. “Com 11 anos, eu queria crescer e estudar numa escola boa. Lá na fazenda não tinha. Minha mãe tinha vontade de ir para cidade grande”. Cidade grande, para quem morava numa fazenda, era Porto Calvo, que hoje tem 24 mil habitantes. Quando Reinaldo se mudou para lá, tinha ainda menos.

A rotina de correr atrás da bola continuou, mas a idade trouxe obrigações. O Reinaldo urbano precisava ajudar os irmãos a colocar comida em casa. “Tinha um que trabalhava num frigorífico e o outro era pedreiro. Sempre que podia, ajudava levando um dinheirinho para dentro de casa. Nas horas vagas, eu jogava bola e andava com os amigos”.

Quando não estava virando massa ou degolando galinhas, Reinaldo se juntava a outros adolescentes na frente do Banco do Brasil. Ficavam de papo. Estes dias em Porto Calvo viraram tatuagem. Ele escolheu o lugar onde jogava bola para colocar na pele.

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“Fiz no ano passado uma tatuagem no meu braço. Tem a igreja, os degraus e embaixo tem um lugar plano. A gente fazia as travinhas e ia brincar de bola. Fiz a escadaria com um menino embaixo olhando a igreja. Esse menino sou eu”.

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Fábrica de jogadores

Reinaldo não é o único boleiro de alto nível que Porto Calvo produziu. Essa também é a cidade natal de Willian José, ex-Santos, São Paulo e Grêmio, hoje atleta da Real Sociedad, da Espanha. A dupla é amiga desde os tempos de escola. Willian era da turma que se reunia na frente do Banco do Brasil, mas dava as caras depois dos outros. “Brincava muito com ele porque ele sempre chegava ‘só um pouco atrasado’.  Os irmãos dele e os meus irmãos são todos da mesma turma”.

Eles viraram amigos de verdade quando Reinaldo mudou para a cidade. Calhou de estudarem na mesma escola. Como eram de salas diferentes, os jogos interclasses colocavam os dois frente a frente. “Na minha sala, os garotos não gostavam muito de jogar bola. Gostavam mais de estudar. Minha equipe sempre perdia”.

A dupla conversa até hoje no grupo de WhatsApp dos amigos da cidade. Marcam de se encontrar nas férias e organizam a programação dos dias de descanso. “Na parada da Copa, a gente estava lá e teve um joguinho. Sempre é legal rever o Willian e a família dele. A gente começa a conversar e relembra os velhos tempos”.

Assista: Reinaldo queria jogar no São Paulo desde jovem

Agarrando a chance

Os últimos anos em Porto Calvo incluíram viagens para jogar bola. Com 16 anos, Reinaldo jogava no meio dos adultos e alimentava o sonho de ser profissional. Era chamado com frequência para visitar a vizinha Matriz de Camaragibe, onde havia um time com sub-17 e sub-20.

“Eu ia lá jogar e me davam a passagem e um dinheiro. O cara que trabalhava no fórum da cidade também ajudava. Ele dava mais um dinheiro e eu sempre ia no fórum pegar a cesta básica que ele dava. Minha mãe ficava feliz e economizava o dinheiro da feira”.

Willian José foi o primeiro a sair da cidade para tentar ser jogador, pelas mãos de um empresário. Reinaldo ouviu que o dele estava guardado. “Ele chegou pra mim e disse: ‘Sei que você tá passando a sua idade, mas fica tranquilo que vou te levar’. Eu continuei jogando e ele me ligou certo dia, chamando para vir para São Paulo. Eu falei com meus amigos, familiares, amigos da minha mãe para comprar passagem. Vim de avião morrendo de medo. Misericórdia!”

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Nunca duvidou

Depois que o avião aterrissou (e Reinaldo comprovou que Santos Dumont estava certo ao dizer que um veículo mais pesado que o ar é capaz de voar), ele se viu numa cidade gigante.

“Quando cheguei, fui para Santo Amaro, que é um lugar meio pesado. Tinha muita polícia, muita gente errada. E tava muito frio quando vim. Não tava nem jogando, fui para casa do cara que me trouxe. Primeiro, fui para Sorocaba e não deu certo. Daí fui para Penápolis, que é bastante quente, cidade pequena. Ali eu me adaptei muito bem”.

Mas ele ignorou a metade vazia do copo. Ser humano tem poder de escolha e Reinaldo focou no sonho. “Passava em frente aos estádios e o cara [empresário] falava ‘é o estádio do São Paulo, este é o estádio do Palmeiras’. E eu pensando: ainda vou jogar nesses estádios. Eu, quietinho, era muito tímido na época, mal falava. Pra mim tava tudo certo, eu vim para jogar”.

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O sonho da casa própria

As coisas se arranjaram e uma carreira de jogador profissional se encaminhou. Ele cresceu vendo a dificuldade da família em juntar o dinheiro para conseguir pagar o aluguel e sabia muito bem o que fazer com o primeiro salário.

“Quando eu estava no Paulista de Jundiaí, falei com meu empresário para comprar uma casa para minha mãe com o primeiro salário que ganhei. Ela até chorou por telefone. Falei: ‘Não chora, mãe. É só o começo. Agora a senhora pode contar comigo para tudo. O que a senhora pedir, eu vou fazer o maior esforço para te dar’. Isso eu repito até hoje”.

Reinaldo diz que a casa está longe de ser uma mansão, mas, para os padrões de Porto Calvo, é uma casa boa. Maria das Graças, a mãe do jogador, já avisou que não quer outro lugar para morar. “Minha mãe tem a humildade dela. Se fosse um barraco, eu tenho certeza que não ia querer sair também. Ela já me falou que só sai de lá quando falecer. Foi a primeira casa dela. Essa ela não vende por nenhum dinheiro”.

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Realização está nas pequenas coisas

Todo mundo sabe que Reinaldo venceu na vida. A metamorfose das vaias em aplausos criou Kingnaldo. Mas, para ele, o sucesso é permitir ao filho os mimos que não teve. “Eu procuro dar o que não tive. Se ele pede um brinquedo, e eu gosto ou lembro que sonhava com um igual na infância, compro outro”.

Tão satisfatório quanto marcar dois gols em um clássico contra o Corinthians, no Morumbi lotado, é se transportar ao chão de terra da Fazenda Canaã, ao lado do filho, com um brinquedo que saiu dos sonhos para virar realidade.

“Era um carrinho tipo uma caçamba. A gente sempre brincava de botar terra e sair carregando. Tinha até estradinha que a gente fazia na terra. Eu comprei uma caçamba para ele e dei agora. E ele sempre chama para brincar na terrinha e sair carregando”.

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