Batman uruguaio

No pior ano do São Paulo, Lugano foi o herói que o clube precisou, não o que ele merecia

Bruno Grossi Do UOL, em São Paulo (SP)

Um jogador é barrado e não se conforma. No treino, balança os braços como quem está indignado, mesmo diante de câmeras de TV e repórteres. Com o time em crise e duramente ameaçado de rebaixamento, outro atleta, incomodado com a situação, treina mal, sem fazer muito esforço. 

O torcedor são-paulino não viu Diego Lugano muitas vezes em 2017, mas se está livre da ameaça da Série B, deve também ao uruguaio. Em situações como essas descritas acima, é ele quem assume a liderança do vestiário. Com a voz grave, olhos arregalados e a postura de quem não tem dúvidas do que está fazendo, cobra até os mais próximos para que todos estejam em sintonia. Em um ambiente de tensão permanente, com diversos fios desencapados, a paz que ele buscou a todo momento foi fundamental.

Lugano não marcou gols e desarmou poucos rivais, mas nunca deixou de defender o São Paulo. E, acredite, fez muita diferença. 

AP Photo/Fernando Vergara e Arte/UOL

Cavaleiro das Trevas Ressurge

Super-heróis costumam esconder suas reais identidades. Máscaras, capas, mutações e, no inexplicável caso de Clark Kent, o Superman, apenas um óculos. Outros tentam levar uma vida normal, salvando o mundo nas horas vagas vestido de Homem-Aranha, como o fotógrafo Peter Parker. Mas há o tipo que prefere a discrição, as sombras, o silêncio. Figura intocável para o público, mas agindo sem exigir nada em troca, deixando seus feitos em total mistério. Como o Batman.

Diego Alfredo Lugano Moreno, de 37 anos, jogador de futebol. Não mora em nenhuma mansão, muito menos em Gotham City. Não há - pelo menos não se sabe - nenhuma bat-caverna ou bat-móvel em nome do zagueiro. Filantropo, sim, como mostram as dezenas de ações sociais com sua marca espalhadas pelo Uruguai. Inimigo dos poderosos, como têm sentido os dirigentes e empresários que comandam o futebol do país natal. Fiel a seu povo, como orgulham-se os celestes e são-paulinos. Um herói que nunca teve grandes recursos técnicos e habilidades para enfrentar os adversários, mas que sempre perseverou pela força e inteligência.

Sempre tentar ser parte da solução, nunca do problema. Sempre tentar unir, jamais dividir

Diego Lugano

Diego Lugano

Reprodução/DC Comics Reprodução/DC Comics

Bat-caverna

O território sagrado e secreto dos vestiários

O vestiário é um local sagrado para Lugano. Assim que voltou ao clube em janeiro de 2016, o zagueiro se mostrou assustado e incomodado com as câmeras da própria TV do São Paulo e com a presença de conselheiros, aspones, amigos, convidados... Para ele, o vestiário é um santuário para os jogadores se concentrarem, discutirem, desabafarem, chorarem e festejarem.

Não à toa, é no vestiário que Lugano costuma abordar aqueles atletas que saem da linha. Seja por uma reclamação pública por falta de chances, seja por um treino ou jogo com pouca entrega. Sem alarde, sem carnaval, o uruguaio é severo e ganha respeito dos companheiros, que sabem que o grupo todo será cobrado da mesma forma e sem exposição.

Neste ano, a bronca de Rogério Ceni em Rodrigo Caio pelo caso de fair play com Jô e a história da prancheta que atingiu o volante Cícero vazaram e deixaram Lugano irritado. Os jogadores entenderam a importância de preservar aquele ambiente, o clube atendeu o pedido e deu mais privacidade ao grupo. Menos imagens gravadas, menos pessoas periféricas vigiando.

Ele sempre é sério quando joga. Qualquer um que brinque na frente dele, ele senta a madeira, chega junto. Isso mostra a autoridade dele em campo

Paulo Boia, atacante do São Paulo

Paulo Boia, atacante do São Paulo

Lugano é sensacional, é líder. É capitão mesmo. Briga, fala, é o estilo uruguaio. É um cara que fala no momento certo, brinca bastante, e sabe o momento certo de falar

Jucilei, volante do São Paulo

Jucilei, volante do São Paulo

Rubens Chiri/saopaulofc.net e Arte/UOL

Vigilante fora da lei?

Se os métodos de Batman para combater o crime eram muitas vezes questionados no início de suas ações em Gotham, Lugano também já foi tratado como um possível problema. A comissão de Dorival Júnior temia que o tamanho do ídolo pudesse causar danos, já que não o enxergava como opção para o esquema e para o momento do time. A situação poderia fazer com que o zagueiro fosse a público reclamar, respaldado pela relação com a torcida e pela história no São Paulo.

O que se viu, entretanto, foi uma reação completamente diferente. Lugano, que com Edgardo Bauza e Rogério Ceni gostava de ressaltar que tinha totais condições de estar em campo, deixou de falar sobre o tema. Entendeu que o momento do clube era de altruísmo. Era preciso dar o exemplo para evitar que outros jogadores se rebelassem. E se era para ser espelho, "Dios" levou a sério a missão.

Chegou mais cedo aos treinos, ficou mais tempo em campo, pegou mais pesado na academia. Viajou com o time mesmo quando machucado ou cortado da lista por opção técnica. Tentava transparecer diariamente a satisfação por mais um dia de trabalho no CT da Barra Funda. Os demais jogadores se impressionaram, aceleraram o passo para acompanhar o ritmo e confessavam entre eles: "Se o Lugano faz dessa forma, por que nós não vamos fazer?".

Atendendo ao bat-sinal

  • Entrevistas

    Mesmo sem jogar frequentemente com Ceni, o zagueiro era escalado ou pedia para conceder entrevistas coletivas após derrotas ou eliminações.

    Imagem: Marcelo D. Sants/Estadão Conteúdo
  • São Paulo x Avaí

    O time havia caído da Sul-Americana para o Defensa y Justicia e estreado com derrota no Brasileirão para o Cruzeiro. No primeiro jogo em casa, Ceni escalou Lugano, acalmou a torcida e viu o time ganhar com atuação aguerrida.

    Imagem: Rubens Chiri/saopaulofc.net
  • Corda no pescoço

    Os três últimos jogos de Ceni, quando já se suspeitava dos riscos de demissão, foram com Lugano entre os titulares. Era uma última tentativa de fortalecer o espírito do grupo para uma reação antes de a diretoria agir.

    Imagem: Armando Paiva/AGIF
  • Dom da palavra

    Uma comissão de torcedores organizados e influentes nas redes sociais convocou uma reunião com elenco e diretoria. Lugano pediu a palavra e pediu apenas críticas gerais, sem escolher bodes expiatórios.

    Imagem: Newton Menezes/Futura Press/Estadão Conteúdo
Rubens Chiri/saopaulofc.net Rubens Chiri/saopaulofc.net

Meninos prodígio

Além das cobranças aos que saem da linha, Lugano exerce seu poder de liderança de forma discreta ao se misturar com os mais jovens. Está com os garotos de Cotia nas rodas de bobinho ou altinha - quando tem imunidade a petelecos na orelha em caso de erro -, conta histórias e os procura em momentos mais reservados para falar sobre o São Paulo, sobre a carreira de jogador de futebol. Os alvos mais frequentes nesta temporada foram Brenner, que o chama de "Paizão", e Paulinho Boia, justamente os mais novos do elenco.

"Poder treinar com Lugano foi bom demais para mim, uma experiência incrível com um cara que fez muita história no São Paulo e no futebol mundial. Um cara que me ajudou muito quando subi da base para o profissional. Ajudou demais, é companheiro e parceiro. Tem uma autoridade incrível e sabe conversar bem com as pessoas. Foi uma experiência maravilhosa", festeja Boia.
 

Lugano no dia a dia é sempre o mesmo cara. Chega cedão no CT, vai para a academia fazer os preventivos dele, fala com todos, é amigo de todos, é parceiro acima de tudo. É um verdadeiro capitão

Paulo Boia, atacante do São Paulo

Paulo Boia, atacante do São Paulo

Os "mordomos Alfred"

  • Alfredo "Tota" Lugano

    Seu pai também foi jogador de futebol e é sempre citado por Lugano como formador de seu caráter e da relação estreita com a cultura uruguaia. Entre os celestes, herdou ainda o apelido de "La Tota".

  • Marcelo Portugal Gouvêa

    O ex-presidente do São Paulo, que morreu em 2008, pinçou Lugano no modesto Plaza Colonia em 2003. O cartola apostava tanto no sucesso da contratação que o jogador passou a ser chamado de "zagueiro do presidente".

  • Óscar Tabárez

    O Maestro, como é chamado o técnico mais longevo de uma seleção na atualidade, comanda o Uruguai desde 2006. Fez história com o 4º lugar na Copa do Mundo de 2010 e no título da Copa América de 2011.

  • Marco Aurélio Cunha

    Foi superintendente, até 2010, e diretor-executivo de futebol, no fim de 2016, do São Paulo. Hoje, cuida das seleções femininas do Brasil, mas mantém contato constante com o uruguaio.

Rubens Chiri/saopaulofc.net e Arte/UOL Rubens Chiri/saopaulofc.net e Arte/UOL

Corte das Corujas

A "Corte das Corujas" é uma organização secreta com as famílias mais ricas e influentes de Gotham City, inserida pelas histórias em quadrinhos mais recentes sobre Batman e também no seriado "Gotham", exibido no Brasil por Warner Channel e Netflix. A corte atrai Bruce Wayne com discurso de tornar a cidade mais justa, livre de criminosos, mas manipula o herói a atropelar seus princípios.

Foi assim que Lugano se sentiu quando percebeu uma mudança de comportamento de alguns dirigentes do São Paulo entre sua chegada, em janeiro de 2016, e o processo de renovação em junho deste ano. O uruguaio sabe que cartolas o taxam como "sindicalista" por brigar pelos direitos dos atletas e não queria ser massa de manobra por mais popularidade entre torcedores. Por isso, foi mais duro ao negociar o novo contrato. Rejeitou festa de despedida ou qualquer ação pomposa.

Essa postura combativa aos poderosos se dá também no Uruguai. Lá, é um dos líderes de uma revolução armada pelos atletas por melhores condições de trabalho nos clubes e por uma federação nacional mais transparente. Principalmente nos contratos de direitos de transmissão da liga nacional e de fornecimento de material esportivo na seleção. O grupo "Más unidos do que nunca" é uma espécie de Bom Senso FC dos uruguaios e conta com mais de 700 membros, incluindo estrelas mundiais como Luis Suárez, do Barcelona, e Diego Godín, do Atlético de Madrid. Por esses compromissos, Lugano chegou a pedir liberação de treinos do São Paulo ao longo da temporada.

Divulgação/CC Divulgação/CC

O filantropo

A cidade de Canelones, a 50 quilômetros de Montevidéu, é o refúgio de Lugano. É lá onde moram seus parentes e amigos mais próximos, onde passa férias e onde tenta proporcionar um futuro melhor para quem tem menos oportunidades. O dinheiro que suas transferências ao longo da carreira girou já serviu para construir quadra, piscina climatizada e salão de festas. Além disso, Lugano mantém unidades da ONG "Buscando Miradas", que cuida de crianças e jovens com espectro autista.

"É comovente e um aprendizado conviver com mães e pais incansáveis na busca pelo melhor por seus filhos. E é difícil entender como às vezes quem mais necessita e merece não tem nada, ou custa a conseguir a mínima e indispensável atenção para viver", desabafa Lugano.
 

Bruno Grossi/UOL Esporte Bruno Grossi/UOL Esporte

Santo sucessor, Batman!

Os zagueiros do São Paulo têm Lugano como ídolo. Rodrigo Caio, que ainda cresceu no clube, e Aderllan dividem a admiração como atletas e torcedores do Tricolor. Arboleda, mesmo nos tempos de futebol equatoriano, colocava o uruguaio como uma referência para a carreira. "Aprendo muito. Gosto muito de ver a postura dele dentro e fora de campo, a personalidade que tem para jogar. Espero estar aprendendo boas coisas com ele para no futuro poder demonstrá-las", conta Arboleda.

Bruno Alves foi o último reforço a chegar ao Tricolor. Veio do Figueirense, desconhecido, mas logo furou a fila de opções de Dorival Júnior para substituir Rodrigo Caio e Arboleda nas emergências. O que poderia causar um problema pelo peso de Lugano acabou sendo um facilitador para o novato: "Estou convivendo e aprendendo com um ídolo. Antes da minha estreia, ele me passou muita confiança. É um bom líder no elenco, um cara que ajuda muito o grupo sempre e procura passar sua experiência aos mais novos e aos que têm pouco tempo de clube".
 

Lugano é um cara sensacional, já o admirava como torcedor e, agora, como companheiro, só aumentou meu respeito pelo profissional e ser humano que ele se mostra

Bruno Alves, zagueiro do São Paulo

Bruno Alves, zagueiro do São Paulo

Rubens Chiri/saopaulofc.net e Arte/UOL
Rubens Chiri/saopaulofc.net Rubens Chiri/saopaulofc.net

Liga da Justiça Tricolor

Se o lema de Lugano é "sempre tentar unir, nunca dividir", é importante mostrar que o São Paulo contou com outros heróis no auxílio ao uruguaio para escapar do rebaixamento no Campeonato Brasileiro. Dono dos poderes mais variados e incríveis, Hernanes foi o Super-Homem na Liga da Justiça do Tricolor. Com velocidade e bom humor, Marcos Guilherme vestiu o traje de Flash. Pratto, com o dom de comandar seus aliados e mergulhando de cabeça no resgate ao clube, fez as vezes de Aquaman. Jucilei não se deu por vencido, se reinventou para voltar ao time ainda mais forte e assumiu o papel de Ciborgue.

Os Super-Gêmeos Militão e Arboleda fecharam o lado direito e transformaram a defesa frágil do São Paulo em uma estrutura mais sólida. Cueva, de mente brilhante e comportamento imprevisível, foi o Caçador de Marte. A resistência e as injeções de energia no grupo fizeram de Petros o Capitão Átomo. E, na comissão técnica, ainda foi possível contar com a força da Mulher Maravilha: em trabalho invisível, a psicóloga Anahy Couto laçou os jogadores para mantê-los unidos e ajudou a rebater a pressão para longe do CT da Barra Funda.
 

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Lugano Begins

Lugano protege o São Paulo. Mesmo mergulhado nas sombras, foi decisivo para salvar o Tricolor do rebaixamento. Deu força aos combalidos, reconheceu que sua era estava perto do fim e atraiu outras lideranças. No campo de batalha, pouco poderia fazer. Em volta dele, foi super-herói. Até nas horas de lazer, como na festa à fantasia em que apareceu vestido como Homem-Morcego - e com o argentino Julio Buffarini trajado de Robin.

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