Cinco guerreiras

A saga das torcedoras que viajaram 50h para seguir seu time na Libertadores

Renata Mendonça e Roberta Nina Do blog Dibradoras, especial para o UOL
Renata Mendonça/Dibradoras

Quando seu time passa de fase em uma competição eletrizante como a Copa Libertadores, a euforia que vem com a classificação é inevitável - e muitas vezes vem acompanhada por pesquisas e mais pesquisas pela internet na ideia de acompanhar aquela loucura fora de casa. Você pesquisa passagem, hospedagem, ingresso, faz as contas, pensa em como conseguir uma folga no trabalho.

Mas, se você é mulher, pensa e repensa algumas vezes se deveria mesmo fazer isso.

No Brasil, a decisão de ir a um jogo sozinha já é um desafio. Num jogo fora do país, as ponderações são ainda maiores. Os números mostram um pouco dessa realidade. Em pesquisa realizada com suas torcedoras, o São Paulo constatou que 59% delas já sofreram assédio nas arquibancadas e 74% não se sentem seguras para ir ao estádio - 73% já viram mulheres passando por situações constrangedoras ou de violência na arquibancada.

O Bahia também fez uma pesquisa parecida e descobriu que mais de 42% das suas torcedoras viram alguma situação de assédio com outras mulheres no estádio e outras 43% nunca foram sozinhas a um jogo. A maioria delas, por medo. Qualquer torcedora, de qualquer time do Brasil, pode confirmar que, se uma pesquisa assim fosse feita em seus clubes, o resultado não seria diferente.

Imagine, então, em um jogo de Libertadores, fora de casa, em um lugar desconhecido, com um ambiente ainda mais hostil? Em um lugar como a Bombonera, em Buenos Aires, por exemplo? Pois é, há um tempo imaginávamos isso. E fomos até a capital argentina para acompanhar algumas torcedoras nessa aventura.

O desafio foi seguir o Cruzeiro nas quartas-de-final da Libertadores. E nossa primeira dificuldade foi encontrar as personagens para essa história.

Demian Alday/Getty Images Demian Alday/Getty Images

A viagem: uma decisão que não é só delas

Quando começamos a buscar torcedoras, imaginamos que, entre as torcidas organizadas, não seria tão difícil encontrar uma mulher que fosse viajar em caravana. No entanto, até a véspera da viagem, não tínhamos a confirmação de nenhuma torcedora que fosse a Buenos Aires.

Recebemos o contato de Samanta Nascymento, uma cruzeirense fanática que faz parte da Torcida Jovem, quando ela já estava fazendo as malas para subir no ônibus na segunda-feira pela manhã – o jogo foi na quarta. A viagem deveria durar pelo menos dois dias. Conversando com ela, entendemos o motivo da dificuldade de encontrar torcedoras: é que as vagas nas caravanas para viagens como essa são abertas para os homens primeiro.

A prioridade dos jogos fora de casa é para os homens. Alguns jogos são considerados ‘jogos de guerra’ e aí esses são vetados para mulheres”

Samanta Nascymento, que faz parte da organizada há um ano.

Quando sobram lugares, aí, sim, as mulheres são convidadas a participar. Para Buenos Aires, a caravana da torcida cruzeirense tinha três ônibus. Eram aproximadamente 150 pessoas. E apenas cinco mulheres entre elas.

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Quem são as cinco guerreiras

Somente um dos ônibus da caravana reunia as cinco guerreiras que toparam o desafio de viajar mais de 50 horas de Belo Horizonte até Buenos Aires para acompanhar o Cruzeiro. Elas não se conheciam, mas logo se identificaram por representar uma minoria ali.

“Quando a gente se encontra nesse tipo de ambiente, que é um ambiente hostil, se sente um pouco deslocada. Aí você vê uma outra mulher ali também e surge uma identificação. A gente se uniu. Uma ficava na porta pra olhar o banheiro porque eles não respeitam. Dividíamos comida umas com as outras. Enfim. É até um pouco de instinto materno, protetivo. Todas são mães, exceto eu, então elas tinham muito essa coisa do cuidado”, contou Samanta.

O perfil das integrantes do quinteto era bem diferente, mas todas tinham em comum a forte paixão pelo Cruzeiro e a coragem para ocupar lugares em que as mulheres nem sempre são bem-vindas.

Samanta Nascymento, 29 anos

Samanta é pedagoga e faz pós em Gestão Educacional. É membro da Torcida Jovem do Cruzeiro desde agosto do ano passado. Hoje, faz parte da diretoria e conta que enfrenta vários olhares desconfiados. “É muito raro ver mulher em diretoria de torcida. Isso não é bem-visto. Então, os homens das outras torcidas sempre olham para mim com desconfiança, ficam falando que eu mal entrei e já sou diretora, que isso está errado, e tal”, diz.

Ela não se deixa abalar. Cruzeirense desde que nasceu, sempre enfrentou os preconceitos e nunca abaixou a cabeça para quem dizia que “futebol não é coisa para mulher”. Aliás, se existe uma certeza em sua vida é que ela nunca vai abandonar seu time - não à toa, já terminou um relacionamento de seis anos por conta dele. “Meu namorado disse que se eu fosse no jogo do Cruzeiro naquele fim de semana, eu nem precisaria aparecer mais porque a gente iria terminar. Aí eu disse: então não precisa nem esperar o fim de semana. Podemos terminar agora porque eu vou ao jogo”, conta.

Wérika Lisboa, 34 anos

Wérika começou a torcer para o Cruzeiro na adolescência, aos 14 anos, e faz parte da Máfia Azul desde os 28. “Há cinco anos eu sigo direto com a torcida, vou em todo jogo que consigo”, contou. Ela diz que ser mulher em uma torcida organizada nem sempre é fácil, mas que é possível encontrar seu espaço também ali. “Eu acredito que é um ponto pra mulher vencer uma barreira a mais, é uma barreira a mais que a mulher tem que vencer.”

Luana Santana de Souza, 33 anos

Luana tem dois filhos e uma filha. Divide um negócio próprio com o ex-marido. Ela deixou as responsabilidades com ele por uma semana e foi viver um sonho seguindo o Cruzeiro até a Argentina.

“Eu sempre viajo em caravanas, mas há algum tempo eu só ia ao Mineirão. Recentemente, retomei as viagens. Foram dois dias bem cansativos, dois dias e meio de viagem, poucas paradas. Mas no final deu tudo certo”, contou.

A experiência de viajar com dezenas de homens em uma caravana de organizada é sempre peculiar para as mulheres. “É meio complicado. Uns respeitam, outros fazem brincadeira, mas eu consigo sair fácil dessa situação”, disse ela, que, em breve, pretende levar a filha, de 14 anos, em caravanas para fora de Belo Horizonte.

Elisângela Taffner, 38 anos

Elisângela é da Torcida Pavilhão Independente e viajou para Buenos Aires ao lado de marido e filhos. Ela está acostumada com caravanas e diz que a experiência de viajar em família para acompanhar o Cruzeiro é sempre cheia de boas histórias para contar. “A gente viaja sempre junto e é muito interessante poder viver essas experiências com eles”, afirmou.

Lúcia Fernandes Mariano, 61 anos

Lúcia era a personagem mais peculiar da viagem. Aos 61, se aventurou em um ônibus numa atitude que os próprios filhos chamaram de “loucura”. Mas foi a sua mãe, de 97 anos, quem a incentivou a ir para Buenos Aires realizar um sonho antigo.

“Eu sempre acompanhei o Cruzeiro aqui em Belo Horizonte e viajei algumas vezes para o Rio, mas nunca em caravana. Eu tinha esse sonho de conhecer a Bombonera e de ir a um jogo do Cruzeiro em outro país. Minha mãe é cruzeirense roxa, ela me incentivou muito a ir”, contou.

Mas é claro que não foi uma decisão simples. Ela não conhecia ninguém que embarcaria na caravana e estava com receio de ir sozinha. Até que alguns vizinhos a convidaram e Lúcia foi com a cara e a coragem.

“É muito cansativa uma viagem assim. Imagina para mim, com a minha idade, enfrentar uma coisa dessas. Um ônibus lotado só de jovens. Mas levei tudo na esportiva e foi uma experiência maravilhosa”, relatou.

“Um filho meu ficou assustado, disse que era complicado. O mais novo falou pra eu ir. E para o outro eu nem falei, ele levou um susto quando viu no Facebook. Minha nora contou que ele não acreditava quando viu que eu estava lá. Mas valeu a pena”.

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As regras

A torcida organizada é um ambiente à parte da sociedade. Nela, há uma série de regras que reservam à mulher um lugar longe do protagonismo. Elas não chegam a ser proibidas de fazer parte, mas precisam adaptar sua conduta. Algumas organizadas chegam a determinar até mesmo detalhes sobre as roupas das torcedoras. Um short um pouco mais curto não é bem visto.

As funções dentro da torcida também são limitadas. São raras as organizadas que permitem que elas ocupem cargos de liderança. Algumas também não permitem que elas toquem na bateria ou balancem o bandeirão no estádio.

“As funções que normalmente são designadas para as mulheres são ligadas ao social. Uma ação beneficente, arrecadação de alguma coisa, doação de sangue. Esse é o tipo de coisa que em geral fica a cargo de mulher. Mas falar sobre liderança, sobre sede, sobre viagem, quem resolve é homem. Deslocamento de patrimônio (bandeirões e afins) também só pode ser feito por homem”, explicou Samanta.

Na Jovem, ela ainda diz que o presidente incentiva a participação de mulheres. Algumas fazem parte da bateria e também balançam bandeirão no estádio. Mas a própria Samanta, na viagem para Buenos Aires, não levou consigo nenhuma bandeira da torcida que representa. O motivo? Ela é mulher.

“Acho que funciona assim: ou você aceita ou sai desse meio. A mudança não é impossível, mas é muito difícil. E você tem o receio de lutar contra isso pelas consequências. Eu, particularmente, ‘aceito’, mas eu por participar do Movimento de Mulheres na Arquibancada. A gente está tentando sempre alguma mudança. A voz não é ouvida, mas a gente não perde a identidade”, contou.

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"Caravana não é pacote CVC"

A viagem foi um desafio à parte para todas elas. Foram dois dias e meio na ida, mais três dias na volta. O cansaço é inevitável. O conforto não é dos maiores e, em algumas situações, questões básicas de higiene começam a pegar.

“Tem muita bebida nessas viagens, muito homem junto. O banheiro ficou inutilizável. Chegou uma hora em que eu evitei até engolir saliva para não precisar entrar ali”, contou uma delas.

Após o primeiro dia de viagem, a vontade de tomar um banho e descer um pouco do ônibus foi grande. Algumas ousaram perguntar aos organizadores que horas haveria uma parada. “Quer tomar banhinho? Quer conforto? Isso aqui é caravana, não é pacote da CVC”, respondeu um deles.

Foram quase 60 horas de viagem e somente duas paradas na ida. Dentro do ônibus, os torcedores se alimentam com biscoitos, salgadinhos e sanduíches que levaram de casa. A ideia é não desperdiçar muito tempo fora da estrada. Por isso, as pausas para banho e higiene eram raras.

Renata Mendonça/UOL Renata Mendonça/UOL

Acho que o mais difícil foi o intervalo entre as paradas. É muito desgastante, pelas condições básicas de higiene, alimentação. Conseguir parar pra tomar um banho era complicado. E aconteceu de a gente parar num lugar que tinha dois banheiros, um masculino e um feminino, e os homens usarem o feminino também. Tivemos que esperar para usar porque eles não respeitavam

Samanta Nascymento

Samanta Nascymento, torcedora do Cruzeiro

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Quase 60h depois, enfim Buenos Aires

Elas saíram de Belo Horizonte na segunda-feira pela manhã e chegaram em Buenos Aires na hora do almoço de quarta. O cansaço era inevitável, mas a recepção na capital argentina não poderia ter sido melhor. Pela amizade que a torcida cruzeirense tem com a do San Lorenzo, os torcedores de lá prepararam um ‘asado’ para recebê-los.

A confraternização foi feita no clube, onde também fica o estádio do San Lorenzo, que foi aberto para os cruzeirenses visitarem. Ali, as torcedoras finalmente se sentiram confortáveis.

Eles deixaram a gente usar o vestiário. É tudo tão limpo, o chuveiro é quente, nem acredito

Luana Santana de Souza

Luana Santana de Souza, sobre a possibilidade de um banho quente - algo que deixava as cinco empolgadas. Nas paradas do ônibus, a pouca água do chuveiro era sempre gelada.

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O aperto na Bombonera

À noite, chegou a hora esperada e uma certa tensão tomou conta no caminho para o estádio. Era preciso ser discreto nas ruas de Buenos Aires para evitar confronto com a torcida do Boca.

Quando chegaram nas redondezas de La Boca, os cruzeirenses foram escoltados pela polícia até a entrada do estádio. Um aperto para passar pela segurança, mas nada que o torcedor que frequente os estádios no Brasil em grandes jogos não tenha passado.

Já na Bombonera, o desafio passou a ser encontrar um espaço. Entre 3 e 4 mil cruzeirenses se espremeram no espaço reservado. Todos entraram pela mesma porta, pequena, que havia sido reservada para os visitantes. O acesso foi feito por escadas estreitas. E o aperto era surreal na chegada à arquibancada.

“Para mim, foi um grande desafio subir e descer tudo aquilo. Eu tenho osteoporose, meus joelhos doem muito. Não achei que iria aguentar. Mas o pessoal me ajudou e eu cheguei até o fim”, contou Lúcia.

O resultado do jogo não foi o esperado. Mas o placar de 2 a 0 para o Boca, com direito a uma expulsão absurda do zagueiro Dedé, não abalou as torcedoras. “É como mãe diz, né? Em casa a gente resolve”, brincou Samanta.

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A volta conturbada e a certeza de que mais caravanas virão

O retorno para Belo Horizonte começou logo após o jogo. Os torcedores brasileiros saíram do estádio por volta de 1h da madrugada - após a espera por todos os argentinos deixarem o local . Os cruzeirenses já meteram o pé na estrada porque a viagem de volta para casa seria longa.

Foi ainda mais do que eles imaginavam. Na sexta-feira, 24 horas depois de sair da Argentina, o ônibus quebrou na estrada e era preciso esperar o conserto chegar. A sorte foi que o problema aconteceu em Florianópolis - e já que tudo estava perdido, foram todos curtir a praia para relaxar. A chegada em BH aconteceu mais de um dia após o previsto, somente no domingo pela manhã. Mas a experiência que o futebol proporcionou a elas, mesmo com a derrota, ficará para sempre na memória.

Conforme contávamos um pouco dessa saga nas nossas redes sociais, recebemos mensagens de mulheres dizendo que sempre quiseram fazer esse tipo de viagem, mas acabavam desistindo da ideia por ouvirem de pessoas próximas que “é perigoso para mulheres”. Perguntamos, então, para as cruzeirenses o que elas diriam para essas torcedoras.

Eu diria que elas podem ir com tranquilidade. Eu não conhecia ninguém da caravana, mas quando a gente começou a entrosar, foi maravilhoso. Sempre tem bagunceiro, rola muita coisa, mas é só a gente levar na esportiva. Não precisam ter medo, pode ir tranquilamente. Para as mulheres que têm medo, eu só digo: não tenham. Porque vale muito a pena

Lúcia Fernandes Mariano

Lúcia Fernandes Mariano, 61 anos

A palavra que define esse tipo de experiência é coragem. Eu diria para primeiro ir ao Mineirão com sua camisa e com short do tamanho que você quiser. E repita isso todos os dias. Quando você perceber, vai estar muito mais longe do que imagina. Acho que ser mulher e torcedora é desafiar-se. E pode acreditar nesse potencial de mulher que a gente tem, porque ele é muito único

Samanta Nascymento

Samanta Nascymento, 29 anos

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