Futebol, sonhos e fome

A história de Igor Faria, que foi para a Alemanha jogar futebol, mas acabou na rua catando lixo para comer

Luiza Oliveira Do UOL, em Goiânia (GO)
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"Fui jogar futebol. Acabei na rua"

Foi no auge do desespero que Igor Rego de Faria desceu na última estação do trem de Berlim puxando a sua mala. A cabeça estava em turbilhão com um choro desenfreado e perguntas que ele não sabia responder. A principal delas: “Para onde eu vou?”

Aos 22 anos, Igor tinha deixado o Brasil há alguns meses, com o sonho de se tornar jogador de futebol na Europa. Vendeu casa, moto, abriu mão do trabalho e do convívio com a família - incluindo o filho recém-nascido. Acumulou dívidas para acreditar nas promessas.

Naquele dia em Berlim, ele estava sem dinheiro, sem casa e sem amigos em um país estranho. Sem ver saída, observou mendigos na rua e fez exatamente como eles: escondeu a mala entre as árvores, olhou para um banco duro com grades e chegou à conclusão mais difícil da sua vida: “Vou ter que dormir na rua. Não tem jeito, vou ter que dormir na rua”.

O banco virou cama e a fome só foi espantada porque ele aprendeu a catar latinhas em troca de um saco de pão com suco. Igor ainda foi enganado por empregadores, acabou preso e só voltou ao Brasil depois de um encontro inusitado. Essa é a história de suas desventuras.

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Parceiro de Thiago Mendes no Goiás e se frustou

O futebol sempre foi a paixão de Igor. Jogava o dia inteiro até sua mãe ir buscá-lo nos campos quando o relógio já passava da meia noite. Mas o mais próximo que chegou do sucesso foi na categoria de base do Goiás. Ele passou em uma peneira para um time B do clube da capital ao lado de Thiago Mendes, que hoje está no Lille, da França.

“A gente fez o teste, treinou, tudo junto. Não sei se teria a mesma sorte que ele, mas pelo menos revelado pelo Goiás com certeza eu seria. A gente jogava em posição diferente, mas falo que não fico muito atrás dele não”.

O problema no Goiás foi o pai de Igor: “Ele nunca me apoiou muito no futebol. Veio de uma época em que quem mexia com bola era vagabundo. O irmão dele foi jogador, o tio dele também. Não ganharam dinheiro, era só farra. Para ele, eu ia ficar daquele jeito. Então não me apoiava muito”.

Quando o pai se separou da mãe, Igor parou de jogar bola. Tinha de trabalhar para ajudar em casa.

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Casou, teve filho e virou despachante

Igor chegou a se profissionalizar em um time do interior, mas se desiludiu com o futebol e começou a estudar. “Logo conheci a mãe do meu filho e ela engravidou. Aí deixei tudo mesmo. Parei de estudar também, vendi o carro que eu tinha, foi tudo para o meu menino”.

Neste momento, o pai voltou à cena: “Comecei a trabalhar com meu pai como despachante. Depois, abri um escritório com um amigo. Mexia com documentação de veículo, com carro batido. Fiz uma rede de clientes. Tinha uns dez. Estava começando a me estabilizar profissionalmente. Comprei casa, carro, moto, casei. Estava tranquilo”.

De uma hora para outra, porém, as coisas mudaram. O Detran local implementou um novo sistema de trabalho em que bastava uma procuração simples para qualquer pessoa fazer o serviço burocrático. A figura do despachante como Igor deixou de ser importante.

Eu tinha dez clientes, fiquei com três. Meu rendimento caiu para menos da metade. E quando os últimos clientes saíram, perdi a minha renda. Em seguida, separei da minha mulher. A gente começou a se desentender e, meio que para me pirraçar, ela foi embora pra Brasília. Eu fiquei dois meses sem ver meu menino

Sobre o momento em que decidiu sair do Brasil

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Surge o sonho de ir pra Alemanha

Foi no momento mais difícil da vida que apareceu a chance de ir para a Europa. Entre um drible e outro nos campos de várzea de Goiás, em que jogava ganhando até R$ 300 por fim de semana, ele conheceu o empresário Luiz Reginaldo Rodrigues, o Fuzuê. Igor afirma que o agente o convidou para jogar na Alemanha.

Ele conta que a resposta inicial foi ‘não’, mas a insistência do empresário e o sonho de fazer carreira fora balançaram seu coração. Então, resolveu fazer uma loucura. Vendeu a casa, pegou dinheiro emprestado com amigos e acumulou dívidas. Pagou R$ 5 mil (que não tinha) para Fuzuê levá-lo para a Europa no início de 2015.

Tudo na ilusão de que o sucesso era certo. Para Igor, Fuzuê garantiu um contrato com um time alemão com um salário inicial de R$ 4 mil. Fuzuê tem uma versão diferente: a garantia seria apenas para testes. Mais para frente, os problemas seriam inevitáveis.

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A chegada em Berlim

A despedida foi emocionada no aeroporto no Brasil. Igor embarcou cheio de esperança para realizar seu sonho e os parentes ficaram com a certeza que ele voltaria cheio da grana. Mas as confusões começaram já no aeroporto.

“Chegamos em Berlim ao meio-dia. Era para chegar às 10h, mas o voo deu uma atrasada na escala. Eu e mais dois garotos no aeroporto cheio de policial, gente falando e você não entendendo nada. Fiquei doidinho da cabeça. Era para ser 10h. Chegamos meio-dia e não tinha ninguém esperando”, conta.

Os três ficaram até às 19 horas esperando, tentando falar com o empresário no Brasil para resolver a situação. Horas depois, chegou outro intermediário. O problema é que esse intermediário tinha ido buscar apenas um deles. “Pô... vocês se multiplicaram? Era para eu buscar só um. No meio da viagem, falaram que eram dois. Agora vocês são três? Ainda bem que eu vim no carro da minha mulher”, disse o homem, brasileiro, segundo Igor.

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Milhares de testes, várias cidades, nenhum contrato

Igor chegou, mas não era bem-vindo. Ele conta que o intermediário disse que não tinha recebido dinheiro para cuidar de Igor e ameaçou levá-lo embora para o aeroporto. O garoto ficou, mas entrou em uma ciranda de poucas informações, muitos testes e várias mudanças de cidade.

O aspirante a jogador rodou a Alemanha inteira, morou em cinco cidades e treinou em pelos menos seis times. Ficou em hotel, hostel, pensão. Morou com mais de 15 atletas, brasileiros e estrangeiros.

Quando seu visto de permanência na Alemanha venceu, Igor deu um ultimato ao intermediário: “Meu visto venceu. E agora? E ele disse que eu tinha de ficar tranquilo e seguir treinando”. Mesmo meses após sua chegada à Alemanha, a oferta de contrato e dinheiro para se sustentar sozinho nunca apareceram.

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Despejado

Certo dia, Igor foi colocado em um apartamento ocupado por dois outros brasileiros. Percebeu que não foi bem aceito pelos companheiros, mas seguiu a vida. Depois, descobriu o mistério: segundo ele, o empresário tinha pedido um favor para os conterrâneos. “Ele pediu que eu ficasse uma noite. Como eu não saia, eles ficaram incomodados. Quem pagava o aluguel do apartamento era o pai dos dois, não os empresários”.

Igor, porém, conquistou os amigos cozinhando. O problema é que os dois também não conseguiram um contrato na Alemanha e, semanas depois, voltaram para o Brasil. “Fiquei sozinho e, um dia, o dono do apartamento, um angolano, falando português enrolado, disse que o contrato estava vencendo e que iria voltar com a polícia. Eu tinha de sair”.

“Fiquei quatro dias sozinho. Tinha medo de andar na rua e ser preso. Tinha só arroz puro, já que os meninos tinham comprado um sacão. Eu cozinhava sem sal, sem óleo e comia. Acabou o arroz bem no dia em que eu fui para a rua”. O próprio Igor conta como foram os dias em que passou na rua a partir desse momento.

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Como é morar na rua na Alemanha?

"Chegou o dia do fim do aluguel. Nem esperei o cara bater na porta, com medo da polícia. Peguei a mala e saí para rua. Eu chorava. E o pior é que a minha mãe não sabia. Eu não queria falar para ninguém, era vergonhoso. Todo mundo me apoiou e, de uma hora para outra, vou falar que estou na rua?

Puxando a mala, eu pensava: 'Véi, o que eu vou fazer agora? Para onde eu vou? Para quem eu vou pedir auxílio? Para quem eu vou pedir socorro?' Na hora em que entrei no trem, não sabia para onde ir.

Acabei em uma praça. Observava os mendigos. Vi que eles escondiam as coisas no mato. Fiz como eles e fui procurar brasileiros no centro da cidade. Contava a minha situação, chorava, pedia para ficar um dia na casa deles... Ninguém estendeu a mão. Foi batendo o desespero. Eu não queria chorar na frente de ninguém, mas chorava, chorava.

Voltei para a estação e dormi no banco. Pus três blusas de frio, uma blusa grossa que eu tinha, vesti uma calça de lycra, vestia uma outra calça e tênis. Mas só cochilava: qualquer barulhinho podia ser a polícia."

Vivendo como mendigo

"Eu nunca imaginei passar por isso. Eu vim com a ambição de dar uma vida melhor para a minha família e estou morando na rua! Como eu vou falar isso para a minha mãe? Estava igual mendigo e as pessoas começaram a olhar diferente. De noite, procurava ficar perto deles. Estava frio e eles faziam fogueiras. Sabe quando a pessoa passa e te olha com desprezo, como se você fosse inferior? Desse jeito que eu me sentia.

Para tomar banho, todo dia eu ia para uma loja da Adidas. Era grande, com um campo de futebol dentro. Tinha vestiário. Eu ficava batendo bola com os brasileiros, levava uma mochila e ficava até fechar. Depois, voltava para a área da estação, onde eu dormia."

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Catando lixo para comer

"Na Alemanha, a pessoa paga a embalagem e paga o líquido quando compra um refrigerante. Depois, vai ao mercado, coloca a embalagem vazia em uma máquina que devolve um valor. Comecei a observar as pessoas que estavam jogando fora latinha, garrafa... Nesses quatro dias que fiquei na rua, juntei as latinhas e garrafas pela cidade. Colocava tudo dentro da mochila. Trocava pelo dinheiro na máquina do supermercado.

Dava para comprar um saco de pão, um patêzinho de salada de ovo, um presunto e uma garrafona de suco. Custava uns três euros. Ficava o dia todo tomando suco, comendo sanduíche."

As prisões

"Nesse tempo, eu ficava roletando de metrô. Lá não tem catraca, mas depois que a porta fecha, o fiscal tira uma maquininha de dentro da jaqueta. Se o seu tíquete não estiver valendo, pegam o seu documento e perguntam se você tem os 60 euros para pagar a multa na hora. A fiscalização me pegou umas dez vezes. Eu nunca tinha o dinheiro. Eles me levavam para a delegacia. Ficava duas, três horas na delegacia.

Na primeira vez, tentaram me fazer assinar um papel em alemão. Eu falei que não ia assinar porque não estava entendendo. Tiraram um papel em português. O papel falava que era crime andar sem tíquete, que dava multa e que eu assumia que era um crime. Não assinei.

Eles deram o contato da embaixada brasileira. Fui até lá, expliquei a situação: queria ir embora, não tinha ninguém e estava ficando na rua. Na época, a presidente era a Dilma. A mulher que me atendeu falou que o Brasil estava em crise e que não podiam fazer nada para me mandar de volta."

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Falar português salvou a minha vida

"Um dia eu estava conversando com a minha mãe pelo telefone e passou uma mulher. “Você fala português? Eu nasci em Portugal, mas não conheço ninguém que fale português. Eu queria uma pessoa para eu praticar”. Começamos a conversar e ela me convidou para ir até a sua casa.

Achei estranho, mas quando você está desesperado, você abraça qualquer coisa que aparece. Ela fez um lanche e eu comecei a contar a minha história. Quando o marido chegou, ela contou tudo para ele, que disse que eu poderia ficar por lá. Ela tinha quase 50 anos, o marido era da Mongólia, tinha a minha idade. Estava desde os três anos na Alemanha. Fiquei quase seis meses na casa dela.

Nesse período, fui fazendo amizade com brasileiros pelo Facebook. Até consegui alguns testes em times de futebol. Ficava três semanas, mas não era aprovado. Eu estava ilegal e era muito caro para me regularizar. Eu sempre voltava para a casa dessa mulher. Só saí quando ela teve um problema com a assistência social alemã.”

A vida melhorou bastante, da água para o vinho. Ter um lugar quente para dormir, cama e comida. Esse tempo todo que eu fiquei lá, não dei dinheiro nenhum para eles. Eu ajudava em casa, limpava, lavava a louça

Sobre o tempo em que ficou com a nova amiga

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Os bicos para sobreviver

A amizade com a portuguesa representou uma reviravolta na vida de Igor. Mas não o fim dos perrengues. Para conseguir sobreviver por lá sem depender da amiga para tudo, o aspirante a jogador foi atrás de empregos fora do futebol. Em sua maioria bicos que pagavam pouco, como um serviço de jardinagem ou ser segurança em uma festa. Até que entrou em um restaurante.

“Consegui serviço com um turco, para trabalhar em um restaurante. Eu seria auxiliar de cozinha, de limpeza. Combinei 70 euros por dia. No primeiro dia, falaram que pagariam ‘amanhã’. No segundo, ‘amanhã’. E eu lá, trabalhando igual a um cavalo. No terceiro dia eu disse que precisava do dinheiro. Eles ameaçaram chamar a polícia e disse que poderiam chamar”.

Os turcos entregaram 50 euros na mão de Igor, mas não pretendiam deixá-lo com o dinheiro: “Quando fui pegar as notas, saíram 50 turcos de dentro do restaurante, correndo atrás de mim. Se eu não corro, iam me arrebentar na porrada. Na época eu estava treinando, estava bom das pernas. Corri para o metrô, peguei o primeiro trem. Fui embora. Você vai fazer o quê? Você está ilegal. Vai recorrer a quem?”.

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As ameaças

A história de Igor começou a ficar conhecida e um jornalista brasileiro que fazia uma matéria sobre jogadores que são enganados no exterior publicou uma matéria. Assim que a irmã de Igor postou o texto no Facebook, o telefone não parou de tocar: jornalistas, sindicato de atletas e uma ONG que repatriava vítimas de tráfico de pessoas entraram em contato.

Igor foi colocado em um hostel e orientado a fazer uma denúncia. “O cônsul me recebeu depois que o pessoal do projeto entrou em contato. Contei a minha história e ele me perguntou: ‘Você sabe quem mais faz isso?’ Dei o nome de todo mundo”.

Ele afirma que as ameaças vieram logo depois. “Recebi ligação me intimidando: ‘Cuidado com o que você fala. Você não tem medo da hora que você está andando na rua?’, ‘Presta a atenção no que você está falando. Olha o nome de quem você está envolvendo’.  Ouvi isso de alguns brasileiros que estavam lá, de meninos que tinham sido levado por outros empresários, que mandavam recado por eles”.

O consulado pediu 40 dias para resolver o problema, mas Igor voltou antes. Com a segurança ameaçada do rapaz, a ONG e o Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de Goiás dividiram os custos da passagem de volta. Cinco dias depois da conversa com o cônsul, Igor embarcou de volta ao Brasil.

No avião, eu pensava só em chegar, ver meu filho e ficar com a minha família. Foi um alívio, uma felicidade estar com a família. Uma sensação de ter onde se apoiar. Se eu precisar de alguma coisa, sei que na rua eu não vou ficar. Nem fome vou passar

Igor chegou em Goiânia no dia 10 de agosto de 2016, após dez meses na Alemanha.

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A vida continua...

Após as desventuras na Alemanha, Igor tentou continuar no futebol. Recebeu propostas de empresários e defendeu o Monte Cristo, da terceira divisão do Campeonato Goiano. Reviveu o filme: ficou sem receber e resolveu parar.

Hoje, ele joga futebol amador na região metropolitana de Goiânia. Trabalha durante o dia com o pai em um escritório como despachante e, à noite, é entregador em uma sanduicheria. Ainda sua para pagar a dívida de R$ 15 mil que acumulou. Mora com o filho, a mãe e as irmãs.

Ainda sonha em trabalhar com futebol, fazer uma faculdade de Educação Física para ser preparador físico, auxiliar, técnico ou dar aulas para crianças em uma escolinha.

O que diz o empresário que levou Igor para a Alemanha

Igor entrou com uma ação trabalhista e civil contra Luiz Reginaldo Rodrigues, o Fuzuê. O processo tramita na Justiça. Em contato com o UOL Esporte, o empresário conta uma história diferente. Ele se defende das acusações feitas por Igor e diz que nunca prometeu time algum.

“Ele não assinou contrato para jogar lá comigo. Ele assinou um contrato de prestação de serviço. Se ele não conseguiu jogar lá, não é culpa minha. Ele esteve em quatro clubes para fazer avaliação. Se ele não conseguiu, eu não posso entrar em campo para jogar para ele. O meu trabalho eu fiz”, afirma Fuzuê.

O empresário também afirma ter provas das hospedagens de Igor, dos locais de treino e da reprovação dos clubes. Sobre o episódio do despejo do apartamento, que levou Igor para as ruas, Fuzuê afirma que a saída do imóvel estava programada. “Todos sabiam que tinham que sair do apartamento. Só ele quis ficar. Eu dava para ele dinheiro para ajudar na alimentação. Ele já tinha que vir embora, mas ele quis ficar. Ele é de maior. Eu não posso obrigar ele a voltar, mas ele também não pode me obrigar a pagar a passagem de volta e a hospedagem por lá até ele querer voltar”.

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