As voltas que Juliana dá

Ela subiu mais de trinta montanhas em todo país. Agora está fazendo tudo de novo mesmo sem conseguir andar

Adriano Wilkson Do UOL, na Serra da Canastra (MG)
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Samuel Oscar/Drone da Montanha Samuel Oscar/Drone da Montanha

Juliana conheceu Guilherme no ônibus voltando da faculdade. Eles começaram a fazer escaladas juntos. Depois passaram para o trekking: a caminhada em trilhas, picos e montanhas. Então, Juliana engravidou e, aos dois meses de gestação, descobriu que tinha câncer. O câncer lhe tirou a capacidade de andar, controlar o movimento dos braços e pernas e falar com fluência. Mas não sua paixão pelos esportes de aventura.

Guilherme construiu pra ela uma cadeira de roda especial. Com a ajuda de amigos e a companhia do bebê Benjamin, os dois estão desbravando novamente todas as montanhas que já subiram. Juliana vai na cadeira e, às vezes, sobre os ombros do marido. Ben vai nas costas dele, em uma mochila especial. O UOL Esporte acompanhou uma das aventuras da família, e acampou com eles na Serra da Canastra, sudoeste de Minas Gerais.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Montanhistas venceram uma das trilhas mais difíceis do Brasil

Há 11 anos, quando Juliana conheceu Guilherme, ela estava no último semestre de ciências contábeis e ele era calouro de química. Juliana tomou a iniciativa. Logo eles começaram a alimentar uma paixão entre si e outra por escaladas.

Depois se descobriram amantes de outro esporte, o trekking, uma prática ao ar livre que inclui caminhadas e acampamento em zonas inóspitas. Juliana encantava-se com o movimento do sol, e eles costumavam levantar barraca ainda de madrugada a buscar o ponto mais alto das montanhas para vê-lo nascer.

Conheceram o pico do Corcovado, em Ubatuba, e viram o céu iluminar-se a mais de mil metros acima do nível do mar. Em três dias, venceram a Serra Fina, na Mantiqueira, trilha considerada uma das mais difíceis do país. Em cinco anos, desbravaram outras dezenas de picos. Acamparam em lugares inóspitos. Fizeram amigos no caminho. E então a vida deles mudou completamente.

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Condição rara na gravidez mudou a vida do casal para sempre

Aos 29, Juliana teve um câncer e precisou remover os dois seios. Aos 31, o casal decidiu ter um filho. Aos dois meses de gravidez, ela sentiu as pernas ficarem fracas e seus braços começaram a tremer. Aos sete meses, ela já não conseguia andar e os tremores subiram à cabeça. Eles decidiram antecipar o parto, e Benjamin nasceu, prematuro e saudável.

"Em cinco meses, nossa vida mudou completamente”, Juliana diz. Depois do parto, ela descobriu que estava com outro câncer, agora no sistema linfático. O câncer desencadeou uma condição raríssima. Seu sistema imunológico, para se defender da ameaça, acabou atacando o próprio cerebelo, um amontoado de neurônios do tamanho de um punho fechado e no formato de uma borboleta, responsável pelos movimentos finos do corpo, pelo equilíbrio e pela articulação da fala.

Ela perdeu a capacidade de fazer coisas simples como tomar banho e escrever, ou tocar o dedo na ponta do nariz. A literatura médica não tinha registro de nenhum caso igual ao dela. Juliana não corre risco de morrer, mas as chances de conseguir reverter seu quadro são praticamente inexistentes.

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"Se ela parasse de fazer esportes, eu pararia também"

“Eu tenho força e mexo meus braços e pernas, mas não consigo controlá-los bem e minha voz fica assim, arrastada”, Juliana costuma explicar quando um desconhecido pergunta o que aconteceu com ela.

Quando o casal percebeu que a condição era irreversível, começou a refazer seus planos. A paixão pela natureza e pelos esportes de aventura ainda estava lá. “Eu prometi a ela que iríamos refazer todas as montanhas que já fizemos e algumas outras”, disse Guilherme. "Se ela parasse de fazer esportes, eu pararia também."

No último dia dos namorados, encararam o primeiro teste na cadeira de roda que Guilherme projetou e fabricou para a mulher conseguir subir montanhas. Uma foto do casal na expedição chegou à capa do jornal “O Estado de S.Paulo” e eles foram entrevistados na abertura do “Fantástico”, da TV Globo.

No último dia do ano, o casal volta à montanha

No dia 31 de dezembro do ano passado, a reportagem do UOL Esporte encontrou Guilherme, Juliana e Ben em um acampamento ao pé da Serra da Canastra, em Minas Gerais. Eles disseram não se importar muito com datas comemorativas, aniversários, Ano Novo, mas estavam ansiosos diante da expectativa de subir a trilha.

"Será nossa primeira vez na Serra da Canastra", tinha dito Guilherme alguns dias antes. "Primeira vez que vamos viajar só nos três. Primeira vez com a caminhonete que estamos começando a preparar para viagem. Primeira vez de uma viagem longa para o Ben. E primeira vez que não teremos nenhum amigo conhecido nos esperando no local para nos ajudar. O frio na barriga está grande."

A seguir, o UOL Esporte relata como Guilherme e outros dois amigos que ele conheceu lá conseguiram levar Juliana a um dos pontos mais altos da serra.

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Na nascente do São Francisco, uma caminhada sem caminhar

Enquanto milhares de pequenos cursos d’água se buscam para começar a formar o São Francisco, o maior rio inteiramente brasileiro, Juliana Tozzi lança os olhos sobre a trilha de pedras pensando em um jeito de chegar ao alto da montanha sem cair.

A trilha tem pedras muito grandes e outras muito pequenas que rolam montanha abaixo. Árvores do Cerrado se agarram à roupa e aos braços, mas Juliana não pode superá-los sozinha porque perdeu parte dos movimentos e a capacidade de se equilibrar. Para vencer a montanha, ela precisa da ajuda de três homens.

Atrás, empurrando a cadeira que ele mesmo projetou, Guilherme Simões também carrega nas costas o filho do casal, Benjamin. À frente, se revezam o guia da expedição, Hélder, e seu amigo Boca, um paulistano que trocou a vida agitada na zona norte por uma pousada rústica no interior de Minas.

Quando o grupo chega aos 300 metros de altura, Mariana, a outra guia da expedição, avisa que a trilha ficará ainda mais íngreme. Um paredão se estende por alguns metros até chegar ao mirante de onde se tem uma vista exuberante da serra. Desafiando o paredão, Juliana sorri em silêncio e se agarra a sua cadeira, que balança ao lutar contra as pedras.

Em algum lugar ali perto, invisível por trás da montanha, o São Francisco se derrama em uma cachoeira de 186 metros, a sexta maior do país.

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Juliana se agarra na cadeira para não cair

A trilha não é simples mesmo para quem pode caminhar. A cadeira, adaptada às necessidades das trilhas, tem dois braços na frente e outros dois atrás para que os carregadores possam levantá-la. Juntas, Juliana, sua cadeira e sua mochila pesam 83 kg. "Acho melhor você subir antes sozinho para ver se dá", recomenda Mariana a Guilherme.

Montanhista experiente, o marido encosta o braço da cadeira em uma rocha e vence o resto da montanha até o pico. Ele volta aos saltos, animado. “Acho que dá. Tranquilo.”

O grupo levanta Juliana e começa a superar as pedras. Ela aperta os olhos contra o sol e agarra firme os apoios da cadeira para não cair. Boca empurra a cadeira com os ombros enquanto Guilherme e Hélder a puxam pelos braços. Um deles pisa em falso e arranha a batata da perna em uma rocha. Uma queda agora significaria um acidente de dolorosas consequências. 

Samuel Oscar/Drone da Montanha Samuel Oscar/Drone da Montanha

Os amigos param, respiram, calculam os próximos passos

Enquanto superam a montanha, os homens precisam parar para respirar e calcular os próximos passos. Juliana já venceu trilhas mais difíceis em busca de um pôr-do-sol laranja ou de um céu pontilhado de estrelas, mas agora apenas acompanha os esforços com um sorriso discreto e os punhos cerrados contra o aço da cadeira.

E então, em um movimento coordenado, o grupo vence a última curva da montanha e deposita Juliana a um passo do desfiladeiro. Ela recebe um sopro de vento na cara, forte, porém incapaz de mover o chapéu que prende seu cabelo curto e castanho. A sua frente, a Serra da Canastra se estende em um conjunto de montanhas no formato de baús pré-históricos.

O repórter pergunta o que ela achou da vista. “É lindo”, balbucia Juliana. E logo repete o lema da sua vida, desde que o câncer lhe tirou os movimentos finos do corpo. “Tudo é possível, basta determinação, adaptação e amigos.” Encostado a uma enorme rocha, Boca, um homem de 1,90 m e 115 kg, arfando, suando e com a perna machucada, chora discretamente.

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Casal agora sonha em dar a volta ao mundo

Juliana e Guilherme resolveram criar um projeto, o “Montanha para Todos”, que tenta dar a possibilidade a cadeirantes de desbravar picos e trilhas. Já espalharam cinco cadeiras de roda pelo país e agora se preparam para deixar a sexta em Niterói (RJ). Qualquer pessoa com mobilidade reduzida pode usá-las, sem custo (veja como ao fim do texto).

Guilherme, Juliana e Ben agora querem rodar o Brasil dando palestras e levantando dinheiro para produzir mais Juliettis, que foi o nome dado por Juliana à cadeira. Em dois anos, querem iniciar uma volta ao mundo.

Sua história deve ser contada em breve em um livro e depois em um filme. “Nada é por acaso”, diz Juliana, que tem essa frase cabalística tatuada nas costas. “Se antes a gente trabalhava para juntar dinheiro e pagar contas”, diz Guilherme. “Hoje a gente pode se dedicar ao que mais ama na vida, que é viajar, fazer amigos, superar os desafios que temos pela frente, ficar mais perto da natureza...”

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Guilherme virou marido, cuidador e parceiro de aventuras

Por vários motivos, o trekking (geralmente traduzido no Brasil como “caminhada”) não é um esporte feito para quem tem limitações de movimento. Juliana, pelo que se sabe, é a única montanhista cadeirante no país.

Muita gente que os conhece fica impressionado com a dedicação de Guilherme à mulher. É ele quem alimenta e cuida de sua higiene pessoal. Ele que a ajuda a transpor lugares inacessíveis a cadeirantes, como escadas e degraus. Ele chegou a parar de trabalhar por um tempo para acompanhar a mulher nas inúmeras fases do tratamento pelo qual vem passando. Ele costuma montar e desmontar cadeiras de rodas umas vinte vezes por dia.

Na mesa do restaurante, Guilherme usa uma mão para dar mamadeira a Benjamin e a outra para levar o garfo à boca de Juliana. Eles costumam tomar banhos triplos para que Guilherme possa lavar a mulher, o filho e a si mesmo. “Ultimamente, tenho tido a impressão que estou cuidando de meus dois filhos gêmeos”, ele brinca.

E costuma falar dos problemas da mulher no plural, incluindo a si mesmo na frase: “Quando a gente engravidou”, “Quando tivemos câncer pela primeira vez...”

Samuel Oscar/Drone da Montanha Samuel Oscar/Drone da Montanha
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O riso incontrolável de Juliana

Juliana admite que sempre foi uma daquelas pessoas “que riem de tudo”. Mas agora, como a doença lhe tirou a capacidade de controlar os movimentos do corpo, ela também perdeu o controle sobre a duração e a intensidade de sua própria risada.

O resultado é que, quando Juliana ri, ela ri alto e não consegue mais parar. Na montanha, quando alguém faz uma piada sobre a quantidade de mosquitos por todo lado, ela explode numa gargalhada incontrolável que contagia todo mundo. Quando ela se concentra para contar algo engraçado e não aguenta no meio do caminho, sua voz, já naturalmente arrastada, se afunda numa onda de gargalhada que se estende por minutos.

Mesmo sofrendo com uma condição raríssima, mesmo ainda passando por uma quimioterapia para curar seu segundo câncer, Juliana está sempre rindo. “Eu já chorei muito”, disse ela balançando no carro da família. “Mas chorar não adianta nada.”

Como usar uma Julietti e ajudar o projeto Montanha para Todos

Com a ajuda de amigos e patrocinadores, Guilherme e Juliana já conseguiram distribuir cinco cadeiras de roda para trilhas pelo Brasil. A sexta deve ser entregue muito em breve em Niterói, no Rio de Janeiro.

As cadeiras estão Blumenau (SC), Curitiba, Três Coroas (RS), no Parque Nacional da Serra do Cipó, em Minas Gerais, e no Parque Nacional da Serra da Tijuca, no Rio. Para usá-las, não é preciso pagar nada e o cadeirante deve entrar em contato com as pessoas que as guardam. Mais informações podem ser encontradas no perfil do Facebook do Montanha para Todos ou pelo email montanhaparatodos@gmail.com. 

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