Império em queda

Escândalos, burocracia e estádios velhos. Em 30 anos, Itália viu sua superliga virar quase "Série B" da Europa

Brunno Carvalho e Bruno Freitas Do UOL, em São Paulo
Reprodução

O Brasil que hoje consome futebol internacional pela televisão, em um festival de campeonatos estrangeiros, começou a se interessar por jogos gringos através da Itália. Nos anos 80, a super liga da "Bota" descortinou um novo mundo para quem ama o esporte por aqui. Era um tempo em que praticamente todos os craques relevantes do planeta estavam num único lugar.

Antes de Real Madrid e Barcelona virarem forças globais, antes de a Premier League inglesa se tornar a mais forte do planeta, a Série A italiana foi a "Meca" do futebol. Era uma espécie de NBA da bola, em que até times menores eram capazes de recrutar talentos como Zico ou Passarella. Mas os tempos de fantasia ficaram para trás, graças a um enredo de escândalos, estádios obsoletos e a falência do modelo de gestão estilo mecenato – que tem Silvio Berlusconi como principal ícone. 

Há quem diga que a liga italiana é hoje "Série B" do futebol europeu. No entanto, o êxito recente da Juventus propõe uma via de recuperação para o mais tradicional campeonato nacional do continente. A supremacia local do clube de Turim se deu pela construção de um moderno estádio próprio e pela ousadia no mercado de jogadores. A volta por cima de gigantes como o Milan passa por receitas assim. 

Marco Luzzani/Getty Images Marco Luzzani/Getty Images

Pergunta incômoda

O UOL ouviu jogadores brasileiros que viveram o auge do futebol italiano e jornalistas ligados profissionalmente (e afetivamente) ao futebol do país. A pergunta: o que aconteceu com a antiga melhor liga nacional do mundo?

Série B da Europa?

A Itália sempre foi muito forte, mas talvez foi o conto da cigarra e da formiga. A Itália teve a melhor geração de craques por duas vezes seguidas: anos 1980 e 1990. E só ganhou um Mundial. Teve por 20 anos o maior grupo de craques de todo mundo. A economia da Itália estava sólida, não precisava se preocupar com o surgimento de jogadores italianos, se comprava de outros países. Tivemos 20 anos incríveis, ninguém imaginava que esses anos acabariam. Mas acabaram, como tudo se acaba.

Tancredi Palmeri

Tancredi Palmeri, jornalista italiano do jornal Gazzetta dello Sport e da CNN

Há uma presença maciça da burocracia, que é pior do que a que existe no Brasil, na questão da construção de estádios. Se você depende quase exclusivamente de direitos de TV, não tem saídas de marketing que aumentem suas entradas. Em Roma estão discutindo há três anos, e a Roma pertence a um grupo americano. Perguntam: "E aí, quanto vai demorar, um mês?" "Não. Se mexer vai encontrar uma pedra de mil anos antes de Cristo e tal". Resultado: os estádios são cada vez mais velhos e incômodos

Claudio Carsughi

Claudio Carsughi, jornalista italiano radicado no Brasil desde a década de 40

Grazia Neri/ALLSPORT/Getty Images

A maldição dos estádios obsoletos

Com exceção de Juventus e Udinese, os demais clubes do Campeonato Italiano mandam suas partidas em estádios defasados em relação aos padrões modernos do futebol. Arquibancadas distantes do campo, pistas de atletismo e arquitetura das décadas de 30 e 40 são características comuns na Série A – geralmente praças esportivas com gestão de prefeituras. Pelo menos na imagem, o "calcio" ficou para trás de ligas como as de Alemanha, França, Inglaterra e mesmo a de Portugal.   

Números do Italiano

  • 5º maior público

    entre as ligas nacionais da Europa (atrás da 2ª divisão inglesa)

  • 6º mais rico

    levando em conta patrocínio de clubes (atrás do Campeonato Russo)

Reprodução Reprodução

Copa de 90: chance perdida

O Mundial de 1990 foi o último antes do grande "boom" de novas arenas de futebol na Europa, deflagrado pela Arena de Amsterdã, inaugurada pelo Ajax em 1996. A Itália decidiu aproveitar a oferta já existente de estádios para o torneio da Fifa, reformando a maioria deles. Mas, apesar da injeção milionária de dinheiro, o legado para as décadas futuras não foi dos mais festejados. Entre as construções para a Copa, o estádio Delle Alpi de Turim foi considerado um fracasso. Nunca agradou à torcida da Juventus e acabou demolido já em 2008, para dar lugar a uma arena moderna.

Reprodução Reprodução

Corrida por novas arenas

A construção do Juventus Stadium, oferecendo evidente vantagem técnica ao time de Turim, inaugurou uma "corrida" por novas arenas na Itália. Os principais clubes do país começam a pensar em maneiras de terem casas modernas e rentáveis. Após batalha com a prefeitura, a Roma conseguiu o aval para erguer seu estádio, previsto para 2018. Milan e Inter, por outro lado, se dividem entre a possibilidade de construírem novas casas ou trabalharem juntos na reforma do tradicional San Siro - como vem fazendo o Napoli com o San Paolo, em parceria com autoridades municipais.

Reprodução Reprodução

Escândalos mancharam reputação

Tanto o início como o final da "Era de Ouro" do futebol italiano foram marcados por escândalos de corrupção. O mais emblemático deles aconteceu em 1980, intitulado "Totonero". Descoberto pela polícia, o esquema envolvia venda de resultados e acabou no rebaixamento de Milan e Lazio, além de prisões de jogadores. Carrasco do Brasil na Copa de 1982, Paolo Rossi foi condenado a três anos de reclusão, mas teve a pena reduzida e pôde participar do Mundial na Espanha.

Já no ano em que a Itália conquistou o tetracampeonato mundial, um novo escândalo abalou o futebol local. Descoberto em 2006, o "Calciopoli" envolveu Juventus, Milan, Fiorentina, Lazio e Reggina e consistia na manipulação fraudulenta de jogos, com a escolha de árbitros que seriam favoráveis aos clubes. A Juventus foi rebaixada e teve os títulos de 2005 e 2006 cassados. Os outros clubes seguiram na primeira divisão, mas começaram a temporada seguinte com pontos negativos.

Giuseppe Bellini/Getty Images

A era Berlusconi

Newpress/Getty Images Newpress/Getty Images

Do topo do mundo ao ostracismo

O magnata Silvio Berlusconi foi o grande símbolo da era do mecenato nos clubes importantes da Itália, quando homens de grandes fortunas bancavam times fortes. Em 1986, o empresário do ramo de comunicações comprou o Milan e salvou os rubro-negros da falência. Em poucos anos, graças a reforços como Gullit, Van Basten e Rikjaard, o time viraria a principal potência da Europa.    

A exposição decorrente do sucesso do Milan pavimentou a ascensão política de Berlusconi, que acabou como Primeiro-Ministro da Itália em diferentes ocasiões, por um período somado de nove anos. No fim, a carreira como homem público foi implodida após uma série de escândalos de corrupção. Paralelamente, o magnata acabaria saindo de cena também no clube de Milão – fechando a "torneira" de dinheiro aos poucos e, finalmente, vendendo sua participação acionária.

"Nesses 30 anos, pelo menos nos 20 primeiros, ele conseguiu fazer do Milan o time mais vencedor do mundo (...) mas em determinado momento, os filhos o convenceram: 'pai, você já gastou cerca de R$ 10 bilhões com o futebol, agora chega'", comentou o jornalista Claudio Carsughi.

O Milan de Berlusconi em taças

  • 8

    Títulos italianos

    Imagem: Reprodução
  • 5

    Liga dos Campeões

    Imagem: REUTERS/Kai Pfaffenbach
  • 2

    Mundiais Interclubes

    Imagem: Reprodução
  • 1

    Copa Itália

    Imagem: Reprodução
AP Photo/Antonio Calanni AP Photo/Antonio Calanni

O tempo dos mecenas

A fortuna de Massimo Moratti fez com que a Inter rivalizasse com o Milan durante bons anos. Membro de uma das famílias mais ricas da Itália, dona de negócios de petróleo, o cartola dirigiu o clube de 1995 a 2013. Neste período comprou Ronaldo e uma série de craques, até finalmente virar campeão europeu, em 2010. Os magnatas Franco Sensi (indústria do óleo) e Sergio Cragnotti (indústria alimentícia) viveram histórias semelhantes, respectivamente, à frente de Roma e Lazio.

Grazia Neri/ALLSPORT/Getty Images Grazia Neri/ALLSPORT/Getty Images

Parma e os falidos

O fim do período de glória do futebol italiano cobrou um preço caro a alguns clubes que gastaram de forma inconsequente. O Parma montou elencos fortes, se destacou em âmbito europeu, mas acabou decretando falência duas vezes. A mais recente, em 2015, fez com que o clube recomeçasse no futebol amador. Fiorentina e Napoli viveram casos parecidos. As duas equipes foram rebaixadas para a terceira divisão ao decretarem falência em 2002 e 2004, respectivamente.

Premiação era toda hora. O presidente (Franco) Sensi entrava no vestiário e falava: "vou dar um relógio Cartier para cada um se ganhar o jogo". Isso fazia crescer o jogador, motivava ainda mais. Todas as vezes que precisava do resultado, vinha com coisinha extra

Paulo Sérgio

Paulo Sérgio, jogador brasileiro, sobre os tempos de mecenato na Roma, nos anos 90

Foi um dos lugares em que eu ganhei mais dinheiro. Comparando com o Brasil, era muito dinheiro. Os números eram totalmente diferentes dos números de hoje. Às vezes no treino ganhava um extra, um presente por uma atuação muito boa. Um anel, um relógio

Edmar

Edmar, atacante brasileiro que atuou três anos pelo modesto Pescara (1988 a 1991)

Juventus: modelo de sobrevivência

O mais popular clube de futebol da Itália vinha de dois 7º lugares seguidos, em 2010 e 2011, pouco depois de uma experiência forçada na Série B. Momentaneamente a Juventus estava ausente das competições europeias, no que acabou sendo um breve período de sacrifício, antes da volta por cima.

Depois de ser frontalmente atingida no escândalo de manipulação de resultados de 2006, a "Velha Senhora" renasceu para o futebol europeu ao decidir romper com padrões consagrados do futebol italiano. Colocou abaixo o defasado Delle Alpi e ergueu o moderno Juventus Stadium, ao preço de 155 milhões de euros. Em pouco tempo a lucrativa nova arena serviu de base para a supremacia doméstica, com seis títulos nacionais seguidos, e para o retorno ao status de potência europeia.

Além do novo estádio, a Juve adotou uma estratégia agressiva de mercado, quase "predadora", parecida com a cultura consagrada pelo Bayern de Munique na Alemanha. Ou seja: usa os milhões em caixa para contratar os melhores jogadores dos times rivais. Desta forma, além de enfraquecer os adversários, o clube se torna cada vez mais forte. Foi assim, por exemplo, nos negócios envolvendo Higuaín (90 milhões de euros pagos ao Napoli) e Pjanic (32 milhões na conta da Roma). 

A maneira maliciosa de ver é: a Juventus pertence à família Agnelli (dona da Fiat), e Turim é uma cidade dependente da indústria automobilística. A área onde o estádio foi construído foi vendida para a Juventus por um preço muito menor do que o preço de mercado. Isso, quando para as outras equipes nessa situação, é muito maior

Tancredi Palmeri, jornalista italiano do jornal Gazzetta dello Sport e da CNN

Claudio Villa/Getty Images Claudio Villa/Getty Images

Chineses tentam salvar Milão

Chegou ao fim a era do mecenato no futebol de Milão, que em um determinado momento nos anos 90 fez da cidade de Norte da Itália uma verdadeira capital global do futebol. Silvio Berlusconi e Massimo Moratti saíram de cena, com os dois grandes da cidade sobrevivendo agora como times de meio de tabela. 

Neste momento, Internazionale e Milan apostam no dinheiro chinês para retomar o protagonismo perdido. Recentemente os dois times foram vendidos a investidores asiáticos, mas ainda não conseguiram resultados destacados dentro de campo.

O primeiro clube da cidade a ser vendido foi a Inter. Em 2016, o grupo Suning desembolsou 270 milhões de euros para comprar 70% das ações. Em março deste ano foi a vez do Milan. Após uma longa negociação, o chinês Li Yonghong pagou 740 milhões de euros para tirar o supercampeão europeu das mãos de Berlusconi, sendo que 220 milhões deste montante serviram apenas para pagamento de dívidas.

Reprodução Reprodução

Você lembra do Italiano na Band?

Os anos 80 não tinham o cardápio farto de canais esportivos fechados, que passam campeonatos do Mexicano ao Chinês. A única ação estrangeira na telinha do país era a Série A italiana, nas manhãs de domingo na Bandeirantes.

A transmissão dos "anos dourados" do Italiano na Band contava com um elenco que reunia Silvio Luiz, Luciano do Valle, Jota Júnior, Silvio Lancellotti e Giovanni Bruno.

Relembre abaixo!

Sessão nostalgia

Divulgação/ESPN Divulgação/ESPN

Transmitir a Série A: missão de vida para Leonardo Bertozzi

Leonardo Bertozzi se habituou a ver futebol italiano pela TV nos anos 80, embalado pelas clássicas transmissões da Bandeirantes. O interesse pelo "calcio" acabou levando o futuro comentarista dos canais ESPN a estudar em escola bilíngue em Belo Horizonte. Lá, na era pré-internet, os amigos nascidos da Itália ajudavam a abastecer sua paixão, trazendo revistas e vídeos da Europa. 

O jornalista mineiro hoje comenta os jogos do Italiano na ESPN e encara a missão como "um sonho de vida realizado".

Para mim, transmitir o Campeonato Italiano era um objetivo de vida mesmo. Eu quero ser jornalista e quero transmitir o Italiano"

"A gente tenta passar um pouco da história também. Hoje a molecada de 20, 30 anos, quer saber: 'vocês falam tanto do Campeonato Italiano, como é que era?'", acrescentou Bertozzi.

Getty Images

Melhores de uma época

Curtiu? Compartilhe.

Topo