A arte da transformação

Como a cultura drag, historicamente colocada à margem, está voltando ao mainstream

Tiago Dias Do UOL, em São Paulo
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A orientação era clara: não fotografar e permanecer sentado durante o espetáculo.

Uma ordem devidamente ignorada pelo público jovem, colorido e ruidoso que ocupou a plateia, com capacidade para mais de 1.400 pessoas, do requintado Teatro Bradesco, localizado em um shopping na zona oeste de São Paulo. Durante duas noites com ingressos esgotados, havia apenas uma regra: não vale vaiar

A cada dublagem apaixonada e espacate aberto, a reação do público, das frisas às primeiras fileiras, era ampliada em gritos, palmas e braços para o alto ao ver ao vivo a "Werq the World Tour" com suas drag queens favoritas, todas elas saídas de uma das nove temporadas do reality show americano "RuPaul's Drag Race".

Criado em 2009 por RuPaul Charles, o programa se tornou uma febre no Brasil desde que entrou no catálogo da Netflix e fez surgir uma verdadeira comunidade de admiradores dessa arte colorida, anárquica e historicamente marginalizada.

A drag mania por aqui não só aqueceu a cena local, durante muito tempo relegada aos nichos, como também inspirou uma nova geração de artistas. Pabllo Vittar, considerada a drag da família brasileira ao furar a bolha e invadir as TVs e as rádios, foi um desses jovens que se inspirou no reality para se montar pela primeira vez.

Debaixo da rivalidade, do humor ácido e do glamour dessas queens, no entanto, há uma filosofia de irmandade. A arte da transformação, no fim, pode definitivamente salvar uma vida do bullying e da rejeição, e servir como uma das mais potentes e -- por que não? -- glamurosas formas de se fazer política.

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Todas querem o Brasil

Uma das mais populares drags que já passou pelo "Ru Paul's Drag Race", Shangela entrou no palco ovacionada. Ela foi uma das primeiras do elenco a se apresentar no Brasil, em 2014, quando apenas festas temáticas, como a "Priscila", a mais famosa na capital paulista, viabilizavam os shows em clubes noturnos. 

O sucesso dessas festas --e o barulho que Pabllo Vittar fez quando ultrapassou a própria Ru como a drag com mais visualizações no YouTube e com o maior número de seguidores no Instagram-- fez com que a produtora Voss, responsável pela turnê oficial do programa, abrisse os olhos para um fabuloso público consumidor.

Durante as três datas pelo país, sendo uma delas no Rio de Janeiro, viu-se fãs das mais diferentes classes sociais: desde aqueles que economizaram moedas durante meses aos VIPs, que pagaram até R$ 900 por um pacote com direito a lugar na primeira fileira e ao meet and greet, o ingresso para conhecer pessoalmente as artistas antes do show.

A cantora Julia Abrão era uma delas. Ela assistia ao show pela segunda vez e estava ansiosa pela performance burlesca de Violet Chachki, vencedora da sétima temporada do reality, que causou ovação ao fazer acrobacias aéreas em um arco. "Para mim é um show completo. E o mais legal é que cada uma delas vai por uma vertente", observa. 

Abrão acompanha RuPaul desde os anos 1990, quando a drag se tornou uma celebridade pop com programa de entrevistas e músicas nas paradas. "Eu comecei a brincar de maquiagem por causa dela. Nenhuma mulher me incentivou a me maquiar", conta ela.

A cena está mais popular. Eu pego minha mãe e meu pai, que são exemplos mais extremos, falando de drag, sem ser aquela coisa de medo, sem usar termos bizarros. Existe mais respeito pela cultura drag. É um puta avanço bacana

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Acolhida pelos brasileiros

A texana de 36 anos, se sente quase brasileira: arrisca palavras em português, já é amiga de Pabllo Vittar nas redes sociais e estava animada por ter conhecido Mulher Pepita, uma das primeiras funkeiras trans do Brasil, em sua passagem pelo Rio de Janeiro. "Mas amo mesmo a Anitta", revela Shangela, tentando cantar "Vai, Malandra".

A relação com o Brasil vem desde que participou da segunda temporada de "RuPaul's Drag Race", em 2010, quando viu sua conta nas redes sociais ser invadida por brasileiros.

Se você posta algo relacionado ao Brasil, querido, são 2.000 comentários, 50 mil curtidas. Os fãs brasileiros são cheios de energia e solidários. Nós já viajamos por todo o mundo e, honestamente, não tem um público mais animado

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"F***-se Bolsonaro"

Amiga pessoal de RuPaul, Michelle Visage, de 49 anos, chegou a fazer sucesso no final dos anos de 1980 com o grupo Seduction, mas é conhecida pelo público como jurada fixa e uma das mais exigentes do programa.

Nos bastidores do show em São Paulo, ela preparava o monólogo de abertura do show minutos antes de começar quando o assunto no camarim esbarra na política. 

Um dos produtores brasileiros da turnê comenta a guinada conservadora no Brasil e, entre um nome e outro, cita o deputado Jair Bolsonaro. Michelle ouve atenta e escreve o sobrenome do pré-candidato à presidência em um papel. "Então ele é como o [presidente dos Estados Unidos, Donald] Trump", exclama. "Porque, querido, estamos fodidos nos Estados Unidos".

Meia hora depois, já no palco, ela clama: "Fora, Temer!". E emenda, para o delírio da plateia: "Foda-se Bolsonaro".

Por baixo dos brilhos e das perucas, há um forte componente político.

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Pela primeira vez no Brasil, ela relembrou de quando tinha apenas 18 anos e frequentava shows de drags em Nova York.

A maior parte delas eram brasileiras. Eram mulheres trans, mas que não se consideravam assim porque o termo não estava presente. Elas eram drag queens com implantes nos seios. Eu me lembro de acha-las lindas. Era diferente do que eu estava acostumada a assistir. As brasileiras levaram isso a outro nível, e naquele momento eu soube que o Brasil era um lugar especial para a cultura drag

Como é o show oficial da "RuPaul's Drag Race"

Drag está se tornando mainstrem?

Drag nunca será 100% do mainstream. É uma arte que serve para a comunidade gay. Tem muita gente que vive e morre pela "Bíblia", muitas pessoas que nunca vão enxergar os direitos dos gays. Sempre será contra o que a gente faz, então nunca será mainstream. Mas definitivamente está se tornando mais popular do que jamais foi, o que é importante para esses jovens que nunca tiveram ninguém com quem se identificar. Agora eles podem ser o que eles querem e não se sentirem mais sozinhos

Michelle Visage

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Drag é arte

Enquanto as americanas atendiam aos fãs no meet and greet, o ator brasileiro Ikaro Kadoshi se preparava para aquecer o público no pré-show. "Quase que vocês nos pegam amarrando a coisa", brinca ao ver a reportagem entrar no camarim. A "coisa" a qual ele se refere é o "tucking", modo que as drags desenvolveram para esconder os órgãos genitais para uma apresentação estética perfeita.

Ikaro se monta há 17 anos, um tempo sem redes sociais e muito menos o reality show. Naquela noite, ele estava especialmente feliz. Enquanto se apresentava no teatro, ia ao ar na TV sua participação no "Show de Calouros", tradicional programa de Silvio Santos. A drag se emocionou ao estar ao lado do apresentador que, nos anos de 1980, deu tanto espaço no canal aberto para a arte das transformistas.

Foi Silvio Santos quem levou para o Brasil inteiro a desmistificação de uma coisa marginalizada para transforma-la na arte que ela é.

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Hoje, Ikaro apresenta ao lado de Rita Von Hunty e Penelopy Jean o reality "Drag Me as a Queen", produção do canal pago E!, com distribuição para toda América Latina.

Impulsionado pelo sucesso de "Drag Race" e o boom de Pabllo Vittar, o programa recebe mulheres para se montarem como drags e, assim, conhecerem mais sobre o próprio corpo e personalidade. "Pela primeira vez na história de um país machista e xenófobo, nós temos um referencial".

Para ele, não se trata de conquistar lugares novos, mas retomar um espaço que sempre esteve presente na história das drags.

Com o passar do tempo e a dominação religiosa, nós fomos segregadas a ficar nas minorias, fadadas a viver nas boates e se esconder à noite, ao invés de sairmos de dia. Estamos apenas retornando ao lugar de origem. Nós nascemos no teatro

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Drag é história

A história da humanidade é repleta de momentos em que o ato de se montar foi tido como posicionamento artístico e político, por mais que na Grécia Antiga não se conhecesse os milagres do "paint stick" (a base para pele em formato de bastão) nem os macetes para um bem sucedido "death drop" (movimento de dança em que a drag se joga propositalmente no chão).

A montação está presente desde a origem do teatro. No Brasil dos anos de 1960 transformistas e travestis brilharam nos teatros de revistas, localizados sempre nos bairros mais boêmios das grandes capitais.

Na década de 1980, a comunidade gay sofreu um baque que incitou o terror nos olhares da sociedade: a devastação da Aids deixou mais uma vez a arte no escanteio, confinando artistas em bares gays, longe de qualquer holofote.

Foi apenas nos anos de 1990 que o estilista Jean Paul Gaultier e a cantora Madonna resgataram drags modelos e movimentos de dança inspirados na arte LGBT. Mas a chegada de RuPaul, um negro alto de peruca loira e idêntico a uma top, fez a arte drag voltar a ser pop.

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O mundo "RuPaul's Drag Race"

  • Emmy Awards

    Até há pouco tempo, RuPaul dizia que jamais ganharia um Emmy. Enganou-se: o prêmio mais conceituado da TV americana veio em 2017, quando foi escolhido como melhor apresentador de reality show daquele ano. Após o reconhecimento, o programa passou a ser exibido na VH1, emissora com maior veiculação nos Estados Unidos.

  • RuPaul's DragCon

    O culto pelas drags do programa fez com que RuPaul criasse sua própria Comic-Con: as convenções aconteceram em Los Angeles e em Nova York, onde reuniu 40 mil pessoas.

  • Exportação

    "RuPaul's Drag Race" fez, na primeira quinzena de fevereiro, sua estreia fora dos Estados Unidos. A Tailândia é o primeiro país a receber oficialmente o formato original do reality show.

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Uma drag nos palcos da Broadway

No camarim do "Werq the World Tour", em São Paulo, plataformas, enchimentos de espuma, potes de maquiagem e tecidos brilhantes se amontoavam no local. Ali, a drag Peppermint escovava sua peruca milimetricamente ajeitada na cabeça.

Ela estava com o tempo contado naquela noite: logo depois de se apresentar pela primeira vez no Brasil, embarcaria para Nova York para continuar os ensaios de seu primeiro musical da Broadway, "Head Over Heels", baseado em músicas do grupo The Go-Go's.

Aos 40 anos, Peppermint não só é a única das drags de "RuPaul's" a estrelar um musical desse quilate como também é a primeira mulher trans a estar em um palco tão importante. A descoberta e aceitação como pessoa transgênero passaram exclusivamente pela sua experiência no programa exibido em 2017.

Drag pode ser uma ótima forma de comunicar temas sobre religião, política ou gêneros através do entretenimento. O que nos torna tão únicas é poder fazer comentários sociais, falar sobre o sistema político e, ainda assim, rir sobre isso

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Fenômeno pirata

Atualmente, "RuPaul's Drag Race" está sem casa no Brasil. Nos últimos meses, a Netflix disponibilizou em sua programação a oitava temporada, enquanto nos Estados Unidos o programa se prepara para estrear em março a décima parte.

O canal Multishow chegou a exibir por aqui a sétima temporada dublada, mas afirmou à reportagem que o programa não retornará à grade.

O UOL apurou que a Endemol Shine Brasil, produtora de atrações como "MasterChef" e que havia adquirido os direitos para fazer uma versão brasileira de "RuPaul's", desistiu de trabalhar o formato por "mudanças estratégicas" dos detentores da marca. 

Em comunidades virtuais, os fãs se reúnem para criar legendas em links distribuídos de forma pirata, algo cada vez mais raro de se encontrar com a varredura que os produtores originais têm feito pela internet.

Michelle Visage diz que não há  qualquer novidade sobre a versão brasileira, mas imagina:

"Poderia até ter a Pabllo Vittar como apresentadora, quem sabe? Tenho muito orgulho dela."

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