Bráulio Mantovani, que trabalhou com José Padilha nos dois filmes de "Tropa de Elite", já se colocou na posição de adaptar histórias da vida real para as telas: em "Última Parada 174", ele conta uma ficção baseada no notório sequestro ao ônibus 174 no Rio de Janeiro; e em "VIPs" ele inspira-se na história do estelionatário Marcelo Nascimento da Rocha.
Para ele, é a coesão interna da obra que vale. "Para conhecer a realidade, você lê notícias, assiste a telejornais, lê livros sobre filosofia, política, história e ciência. A experiência da ficção é outra. A ficção produz um sentido que a realidade raramente (ou nunca) tem", Mantovani afirma, por e-mail, ao UOL.
E há limites para as obras de ficção? "Se você escreve uma cinebiografia, obviamente você tem que lidar com muitas limitações. A biografia ficcionalizada vai sempre fundir personagens e situações. Como ouvi uma vez do [cineasta] Guel Arraes: 'A vida é uma excelente roteirista, mas só entrega o primeiro tratamento'. Porém, você precisa respeitar a pessoa que se torna o seu personagem. Não pode manipular fatos sem escrúpulos".
Se a realidade é apenas uma inspiração, se você parte de fatos, mas inventa personagens, é possível não se auto-impor um limite alheio à obra que você escreve. Na prática, cada caso é um caso. Cada autor deve tomar as decisões que lhe pareçam mais corretas para chegar a um resultado melhor.
Encontrando o equilíbrio
Luiz Bolognesi, que escreveu os roteiros do filme "Bingo", inspirado na vida de Arlindo Barreto, o palhaço Bozo, e de "Elis", sobre a vida da cantora Elis Regina, reconhece: achar o equilíbrio entre a ficção e o real é "extremamente delicado e complexo". "O aspecto legal é facilmente resolvido quando você faz o que o Padilha fez, que é avisar que é uma obra de ficção baseada em fatos reais. Se você avisa, os jornalistas e o público têm que entender que é uma leitura subjetiva. Me parece que nós tínhamos que ler, mais claramente, que ['O Mecanismo'] é a versão do Padilha."
Ainda assim, ele defende que questões de ordem ética devem ser consideradas. "Quando você envolve nomes ou personagens claramente inspirados em personagens reais, na minha opinião o campo ético tem que ser definido por um território que é: você não pode roubar no jogo de modo a denegrir a pessoa retratada ou referenciada", argumenta, ressaltando especialmente quando serão mostradas as "sombras" do personagem, seu lado mais obscuro e negativo.
Bolognesi cita o caso de Elis Regina: para mostrar a insegurança e o desequilíbrio da cantora no filme, ele optou por usar em outros contextos declarações que a cantora havia dado em entrevistas. "As falas são todas dela, mas deslocadas. É uma intervenção de ficção, mas eu não posso por na boca de Elis Regina, na minha opinião, coisas que ela não falou e que vão contra ela."
O cineasta passou por outro caso semelhante em seu novo filme, o documentário ainda inédito "Ex-Pajé", no qual retrata uma tribo indígena do norte do país. "Mesmo que em alguns momentos se sintam constrangidos, tenham sua intimidade revelada e suas coisas negativas apresentadas, é muito importante que eles se sintam dignos. Ou se você jogou alguém na lama, que aquilo esteja embasado em fatos que aquela pessoa comprovadamente fez".