Sobe e desce

Participar do Festival de Cannes pode ser o início ou o fim de uma carreira

Thiago Stivaletti e Natalia Engler Do UOL, em Cannes e São Paulo
REUTERS / Yves Herman / Arte UOL

O Festival de Cannes é a maior plataforma do planeta para lançar ou afundar um filme. Para uma produção pequena, de autor, é a chance de alcançar um mercado maior no mundo todo em uma época em que o espaço para filmes alternativos só diminui nas salas.

Os verdadeiros vencedores

Cartazes e manifestações políticas à parte, é certo que a passagem do brasileiro "Aquarius" pelo festival francês, neste ano, e a boa acolhida que recebeu da crítica internacional, já conferem ao longa pernambucano uma dianteira folgada na briga pela vaga brasileira por uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro.

Apesar de aparecer na lista de favoritos de alguns críticos, com muitos elogios à atuação de Sonia Braga e à direção de Kléber Mendonça Filho, "Aquarius" deixou a França de mãos abanando, mas já garantiu distribuição em 16 países: Itália, Bélgica, Suíça, Espanha, Portugal, Noruega, Dinamarca, Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Grécia, Turquia, Croácia, Bósnia, Eslovênia e Sérvia. No Brasil, a estreia prevista para agosto também deve ser adiantada.

Não são poucos, aliás, os filmes que começam em Cannes e chegam quase um ano depois a uma indicação ao Oscar de língua estrangeira mesmo sem ter ganhado nenhum grande prêmio na França --foi o caso do argentino "Relatos Selvagens" (2014) (grande sucesso de bilheteria por aqui e em seu país), do russo "Leviatã" (2014), do mauritanês "Timbuktu" (2014), do colombiano "O Abraço da Serpente" (2015), do francês "Cinco Graças" (2015), do dinamarquês "A Caça" (2012), do chileno "No" (2012) e do italiano "A Grande Beleza" (2014), este vencedor da estatueta dourada. O húngaro "O Filho de Saul", vencedor do Grande Prêmio do Júri (espécie de segundo lugar em Cannes) em 2015, foi o último a levar o prêmio de filme estrangeiro.

O Festival de Cannes também impulsiona os filmes de língua inglesa na corrida do Oscar. Em 2015, duas produções começaram a carreira na Croisette e fizeram bonito nas indicações da Academia no final do ano: "Divertida Mente", vencedor da estatueta de melhor animação; e o drama "Carol", que deu a Palma de atriz a Rooney Mara e teve seis indicações ao prêmio da Academia.

Eric Gaillard/Reuters Eric Gaillard/Reuters

Neste ano, a Palma de Ouro ficou com o britânico "I, Daniel Blake", de Ken Loach, mas a estrela que deve brilhar mais forte é a do lírico "Paterson", de Jim Jarmusch, sensível retrato de um motorista de ônibus (Adam Driver) que usa as horas vagas para escrever poesia e tem inusitadas conversas com as pessoas de sua cidade.

"Loving", de Jeff Nichols, história de um casal inter-racial na Virgínia dos anos 1960 que empreendeu uma feroz batalha judicial contra o Estado para validar o seu casamento, pode ser o filme perfeito para a Academia, pressionada nos últimos anos a dar mais espaço para diversidade racial, mas é sóbrio demais e talvez lhe falte uma carga emocional mais forte para vencer. Ruth Negga, atriz até hoje de pequenos papéis como em "Guerra Mundial Z", pode chegar forte à indicação pelo mesmo filme.

Já o alemão "Toni Erdmann", talvez o filme mais popular do festival, deve agradar o público do mundo todo, mesmo com suas 2h40 de duração, e garantir seu lugar no Oscar de filme estrangeiro. Há anos uma comédia não arrancava tantos risos de uma plateia na Croisette.

Discutimos por mais tempo do que outros júris, e nada foi deixado sem debate. Fizemos o melhor que pudemos.

George Miller, presidente do júri, justificando as escolhas deste ano

Eles bombaram: Os destaques de 2016

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A vez das estrelas

Entre as atrizes, algumas saem com mais brilho da Croisette, outras veem a chama se apagar. Sonia Braga, 65, ressuscitou para o cinema depois de 20 anos sem um grande papel, aclamada por toda a crítica. A nova diva Elle Fanning, 18, com sua brancura de Cinderela, mostrou que pode ser bem rock'n'roll no sangrento "The Neon Demon" --o tipo de filme que nunca chega ao Oscar, mas abre portas para outros bons papéis.

A francesa Isabelle Huppert provou mais uma vez que é a atriz mais sem limites do mundo, como uma mulher bem mais esperta que seu estuprador em "Elle". Já Kristen Stewart, que se esforça em mostrar que é uma atriz séria depois da franquia "Crepúsculo", derrapou com dois papéis: a mocinha ingênua só na aparência de "Café Society", de Woody Allen, e a garota chata que acredita em fantasmas falando por Whatsapp no suspense "Personal Shopper".

Uma atriz incrivelmente intuitiva, ela envelheceu lindamente, com uma corporalidade aristocrática e sensual, e mistura ternura à firmeza de Clara. 
Jay Weissberg, crítico da Variety, sobre Sonia Braga em "Aquarius"

Entre os atores, quem brilhou de verdade como o motorista poeta e caladão de "Paterson" foi Adam Driver, estrela do momento em Hollywood depois de viver o vilão Kylo Ren de "Star Wars: O Despertar da Força". Longe dos padrões de beleza, com sua cara de ogro sensível e um carisma meio inexplicável, Driver pode ganhar sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator.

E há sempre as "new faces" que renovam o cinema. O australiano Joel Edgerton, visto como coadjuvante em filmes como "Aliança do Crime", mostrou futuro como o marido branco que luta para que a sociedade aceite sua mulher negra em "Loving", e deve brilhar na temporada. Em seu primeiro filme, a texana Sasha Lane estreou bem no cinema como a garota sem medo de vender o corpo em "American Honey".

[O filme] traz a excelente Elle Fanning, cujo frescor descolado é a razão para continuar assistindo: uma qualidade que estranhamente sobrevive à sua inevitável jornada para o lado negro.

The Guardian

The Guardian, sobre "The Neon Demon"

[Sasha] Lane é certamente uma presença magnética na tela, adicionando um faceta dura de experiência sofrida por trás da suavidade do olhar sonhador e esperançoso de sua personagem.

The Hollywood Reporter

The Hollywood Reporter, sobre "American Honey"

[Adam] Driver é o receptáculo ideal para carregar as nuances do filme. (...) Colocando de lado seu trabalho atual na série "Girls", da HBO, é inquestionavelmente a melhor performance do ator até hoje.

Indiewire

Indiewire, sobre "Paterson"

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De Cannes para o mundo

Tanta expectativa com a vida pós-Cannes não é por acaso. Há décadas o festival serve de trampolim para produções e artistas desconhecidos ganharem o mundo e caírem nas graças da crítica, do público ou dos grandes estúdios.

Um dos maiores "cases" de sucesso entre os vencedores da Palma de Ouro é Quentin Tarantino, que em 1994 era uma promessa de 31 anos apresentando na competição o segundo filme de sua carreira, depois de surpreender com "Cães de Aluguel". Do prêmio francês, "Pulp Fiction" catapultou o cineasta para seu primeiro Oscar (roteiro original) e uma carreira cultuada entre os cinéfilos --e os não tão cinéfilos assim, com bilheterias expressivas para filmes considerados de pequeno ou médio orçamento.

Hoje em desgraça em Cannes e banido do evento depois de polêmicas declarações durante a apresentação de "Melancolia" em 2011, quando disse simpatizar com o nazismo, o dinamarquês Lars Von Trier também não deixa de ser "cria" do festival, onde nove de seus 14 longas entraram na competição oficial, incluindo o primeiro, "Elemento de um Crime" (1984). "Dançando no Escuro" (2000), estrelado por Björk e Catherine Deneuve, foi sua primeira Palma de Ouro depois de alguns prêmios menores e também acabou apresentando-o a um público mais amplo do que o do circuito dos festivais, chegando ao Oscar com uma indicação de melhor canção.

O alemão Michael Haneke é outro nome que caiu nas graças de Cannes e dali ampliou sua carreira. Seu quarto longa, "Violência Gratuita" (1997), foi o primeiro a concorrer à Palma de Ouro, e o sucesso levou a uma refilmagem americana. Depois vieram prêmios do júri para "A Professora de Piano" (2001), de direção para "Caché" (2005) e duas Palmas de Ouro, por "A Fita Branca" (2009) e "Amor" (2012) --que saiu dali para um Oscar de filme estrangeiro, além de emplacar indicações a melhor filme, direção, roteiro e atriz (Emmanuelle Riva, mais velha concorrente ao prêmio até hoje), feito raríssimo para produções em língua estrangeira.

Divulgação/Imovision Divulgação/Imovision

Michael Moore também aproveitou bem o buzz criado pelo evento francês. Ele já havia feito algum barulho com "Tiros em Columbine", mas foi a Palma de Ouro de "Fahrenheit 11 de Setembro" que deu visibilidade mundial ao polêmico documentarista e seu filme, que cutucava fundo a administração George W. Bush e sua "guerra ao terror". O longa é até hoje o documentário de maior bilheteria na história --US$ 222,4 milhões-- e também o mais bem-sucedido vencedor de Cannes.

Até Martin Scorsese era um pouco conhecido jovem cineasta quando seu "Taxi Driver" venceu o principal prêmio de Cannes em 1976, dando impulso à carreira de um dos diretores mais aclamados do cinema norte-americano, ao lado de Francis Ford Coppola, que corou o sucesso que já havia batido à porta com "O Poderoso Chefão" com uma Palma de Ouro para "Apocalypse Now" (1979).

O caso mais recente é do vencedor de 2013, "Azul É a Cor Mais Quente", que não ganhou os holofotes apenas pela qualidade, mas também criou polêmica com cenas de sexo muito realistas entre duas mulheres --e alfinetadas de que o diretor expôs as atrizes a extenuantes horas de filmagem nessas sequências--, o que acabou ajudando o marketing no resto do mundo. Quem se deu bem também foi a atriz Léa Seydoux, que decolou sua carreira internacional como a bondgirl de "007 contra Spectre", filme que rendeu US$ 880 milhões nas bilheterias mundiais.

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Fracassos e vaias

Mas nem tudo é glamour e esperança de futuro brilhante após Cannes. Se o festival pode levar um filme às alturas, também pode afundá-lo de forma trágica. Um caso que pode confirmar essa tese é o de "Personal Shopper", que apesar do prêmio de melhor direção para o diretor Olivier Assaya, recebeu as vaias mais fortes de Cannes 2016 --"Nem Kristen Stewart pode salvar este desnutrido mistério", escreveu o The Hollywood Reporter.

Depois do ótimo "Na Natureza Selvagem", Sean Penn achou que podia tirar um bom filme da sua experiência de ativista humanitário na África, mas mostrou este ano um novelão xaropento, com uma história de amor clichê entre Charlize Theron e Javier Bardem na Libéria, muito malhada pela imprensa. "Penn fez a sua versão de um filme da Angelina Jolie. Uma história sobre uma Libéria devastada que na verdade é sobre duas lindas estrelas de cinema tentando salvar o mundo", disse o crítico Owen Gleiberman, da Variety.

Cannes já desencadeou a "morte" de outras produções no passado. "Grace de Mônaco", estrelado por Nicole Kidman e escolhido para abrir o evento em 2014, ajudou a consolidar a ideia de que existe uma "maldição" que recai sobre os filmes de abertura, exibidos fora de competição. "Desastre" foi algum dos adjetivos usados para classificar a produção, que poderia ter tido um final mais digno se a família real do principado tivesse ido a fundo com a ideia de proibi-lo. Em vez disso, teve uma vida conturbada depois do festival francês, estreando nos Estados Unidos diretamente em um canal de TV a cabo.

Mesmo a usual magia de [Kristen] Stewart na tela não é suficiente para que valha a pena ver 'Personal Shopper'; sua personagem é tensa, incerta e não particularmente articulada na maior parte do tempo, e atua sobretudo em um vácuo.
The Hollywood Reporter, sobre "Personal Shopper", de Olivier Assayas

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Outro caso emblemático foi o de "Maria Antonieta" (2006), terceiro filme de Sofia Coppola, selecionado para a competição. Sofia não sabia o vespeiro em que estava se metendo: havia feito um filme sobre a maior rainha da França, aquela que foi decapitada no início da Revolução Francesa, mas com uma pegada mais leve e pop. A expectativa era grande também por ela ser filha de quem é --o grande Francis Ford Coppola. As vaias para "Maria Antonieta" foram tantas que o filme encolheu sua distribuição pelo mundo.

Mas não é preciso ir nem muito longe. "The Sea of Trees", no qual Gus Van Sant reuniu Matthew McConaughey e Naomi Watts, foi tão malhado na competição de Cannes no ano passado --"um profundo insulto cultural", segundo a Variety-- que até hoje não estreou nem nos Estados Unidos, seu mercado de origem, e Van Sant também não se arriscou ainda a iniciar um novo projeto para o cinema.

Nos anais negativos do festival, a história de "Brown Bunny", de Vincent Gallo é folclórica: Roger Ebert, um dos mais respeitados críticos do mundo à época, teria ficado tão entediado que cantou "Raindrops Keep Falling On My Head" (em voz alta!) durante a sessão, e depois classificou o filme como "o pior da história do Festival de Cannes". A crítica deu início a um bate-boca público com o cineasta, que acabou levando Gallo a refazer o corte do filme e até receber avaliações melhores com a nova versão --que mesmo assim não passou dos US$ 400 mil nas bilheterias. O diretor chegou a jurar que nunca mais faria outro filme, mas quebrou a promessa em 2010 com "Promises Written in Water".

Louros passados: Os últimos vencedores da Palma de Ouro

  • Dheepan: O Refúgio (2015)

    De Jacques Audiard (França)

  • Sono de Inverno (2014)

    De Nuri Bilge Ceylan (Alemanha, França, Turquia)

  • Azul é a Cor Mais Quente (2013)

    De Abdellatif Kechiche (França)

  • Amor (2012)

    De Michael Haneke (Alemanha, Áustria, França)

  • A Árvore da Vida (2011)

    De Terrence Malick (EUA)

  • Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010)

    De Apichatpong Weerasethakul (Tailândia)

  • A Fita Branca (2009)

    De Michael Haneke (Alemanha, Áustria, França, Itália)

  • Entre os muros da escola (2008)

    De Laurent Cantet (França)

  • 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias (2007)

    De Cristian Mungiu (Bélgica, Romênia)

  • Ventos da Liberdade (2006)

    De Ken Loach (Inglaterra, Irlanda)

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