A música é uma arma...

...e 2018 é um ano de guerra: como Emicida quer rimar os próximos dez anos de luta

Maurício Dehò Do UOL, em São Paulo
Daryan Dornelles/Divulgação

Em 2008, Leandro Roque de Oliveira já havia trocado seu nome pelo apelido de Emicida, tão feroz era seu desempenho nas batalhas de rima. Franzino e tímido para um "MC homicida", ele usava o improviso como arma para passar sua mensagem e mostrar a realidade de quem veio de baixo. Chegou a ter vídeo com 1 milhão de visualizações no YouTube, mas quase ficou por isso.

Após um período de baixa, em que ele sonhava mostrar ao mundo suas músicas, os parceiros iam tomando rumos diferentes. "Será que a festa não acabou e só eu não vi?", questionou-se. Foi quando veio o hit "Triunfo" para chacoalhar as estruturas.

Dez anos se passaram. O mundo mudou. E não só o de Emicida, hoje um rapper consagrado, dono de produtora, pai de uma menina e prestes a ganhar outra bebê, e um workaholic com diversos projetos engatilhados, da moda ao cinema, do lançamento de um DVD a livros infantis. O Brasil e a sociedade são outros em 2018.

"Quando a gente pensa na janela 2008-2018, vê uma injeção de autoestima muito grande na favela, nos pretos, nas pretas. Várias revoluções de intelectualidade e até de estética se moveram nos últimos dez anos e a gente foi agente fundamental para trazer isso à proporção que está hoje", diz o rapper.

"Triunfo" foi a fagulha que incendiou a carreira de Emicida. O Brasil, opina ele, também teve a sua.

Tem uma parada muito significativa, que é impossível desconsiderar, que as duas gestões do Lula foram uma parada que mudou a favela. Pra sempre. Mano, a coisa mais foda que aconteceu foi eu acreditar, eu refletir sobre a possibilidade. Sugerir que o povo brasileiro tem que ser o senhor da sua história. Isso é um bagulho que não tem volta.

Marcio Komesu/UOL Marcio Komesu/UOL

"O cidadão brasileiro está desesperado"

Apesar do otimismo com as mudanças que viu, Emicida é mais realista quando fala do quadro político e social em 2018. Ainda mais em ano de eleições. O rapper admite preocupação e incerteza.

Eu acredito que 2018 não vai ser fácil, 2018 é um ano de guerra.

"A gente avançou no sentido da consciência, as mídias sociais fizeram a gente ver coisa que a gente não queria ver, mas que foram importantes: uma série de pensamentos racistas, comportamentos machistas. Tudo isso é positivo. Mas do ponto de vista da polarização, acho infantil pra caramba. Muita gente defende que estamos aprendendo a debater. Só que não tenho paciência pra esse bagulho não, mano. Meu tempo é curto. Ou a gente toca nos problemas, ou me soa como uma brincadeira, que é o time do vermelho contra o do azul e o Brasil tá inteiro com a corda no pescoço", avalia o rapper.

O racismo é um dos temas que predomina em seu discurso. Em 2009, ele cantava: "Por que a polícia para pra mim, e os taxistas não?". Hoje, Emicida ainda sente que o debate é tímido.

"O maior problema do Brasil é que ele acha que vai solucionar o racismo sem falar dele. Não tem como se não entrar nesse debate sério. É um debate desagradável, para os dois lados: pra pessoa branca, que se sente culpada, e pra pessoa preta, que se sente ferida. Me preocupa muito que a gente não consiga conversar de maneira madura, compreendendo todas as perspectivas. Principalmente das pessoas de pele escura, dos pretos, dos pardos, dos índios, que são quem nunca teve voz nessa experiência que é tentar transformar o Brasil numa nação."

O que será do Brasil?

Ninguém sabe. O Brasil tá igual à Tele Sena, mano, a cada hora tem uma novidade, e você nunca é o ganhador.

Emicida

Arquivo/Divulgação/Brazil Press Arquivo/Divulgação/Brazil Press

Revolucionários, mas não incendiários

Se a música é uma arma, como Emicida e seus pares a estão usando?

Arma é uma palavra muito boa para música. Quase sinônimo. Fela Kuti dizia. A música é uma arma e nóis tá na linha de frente lutando por isso. Até porque quando você é preto, quando você vem da favela, sobreviver já é um ato político. Sobreviver sorrindo, como nóis tá agora, é ultrarrevolucionário.

Quando fala em "nóis", Emicida cita outros parceiros na sua jornada de luta, como Criolo e Mano Brown, e faz uma reflexão sobre si. "Eu, durante muito tempo, me coloquei numa atitude de juiz. Uma atitude arrogante, vaidosa, imatura. O Sérgio Vaz tem um poema incrível, que ele diz: 'Revolucionário é todo aquele que quer mudar o mundo e tem a coragem de começar por si mesmo'. Eu deixei de botar o dedo na cara dos outros. Comecei a ver certos comportamentos no mundo e me perguntar quando eu tomava aquelas atitudes".

Emicida diz estar acostumado a ouvir críticas, e muitas vezes ele e seus parceiros musicais, que se distanciaram do rap mais tradicional, são cobrados pelos assuntos que abordam, quando suas composições não falam "de um tema obviamente político".

Ele pontua a diferença entre o Emicida de 22 anos, que vinha da batalha de rimas, do atual, de 32. "Estamos sugerindo que a gente reflita de uma maneira adulta sobre os problemas. A gente não é mais um monte de moleque de 17 anos gritando 'foda-se o sistema'. Não dá pra gente brincar de incendiário nesse momento, é muito importante que a gente distribua sanidade e bom senso. Nesse sentido, o disco romântico do Brown é ultrapolítico. Quando o Criolo aponta e fala, 'vamos refletir sobre o samba agora', ele está sendo profundamente político. Quando a gente invade o SP Fashion Week, a gente está sendo profundamente político.

Não existe um único caminho para se fazer uma revolução e a gente tem feito várias.

Racismo, política e a favela

Emicida dá sua letra sobre a situação do Brasil em ano de eleições

Márcia Foletto/Agência O Globo Márcia Foletto/Agência O Globo

Marielle presente

"O que me preocupa é que o Brasil administra um genocídio das pessoas pretas e pobres, isso é um fato. E ganha outra proporção quando você assassina alguém que representa o que ela representava. Significa que tudo o que a gente achou que tinha jogado na sombra e ia ficar preso no passado não está disposto a virar passado. Está disposto a virar presente e tá aqui, presente no futuro, impedindo que a gente tenha futuro. A gente precisa conversar e se manter próximo. É um crime político."

Caroline Lima/Divulgação Caroline Lima/Divulgação

O rap antes e depois de Emicida

O rap sempre foi baseado em influências externas, a começar pelo uso de samples de diversos estilos em suas batidas. Mas, no Brasil, Emicida e Criolo lideraram andanças mais ousadas na última década, com influências de MPB e samba, principalmente. Atingiram as massas de uma forma diferente da que os Racionais fizeram. 

Emicida não sabia exatamente onde chegaria, mas não foge de colher os louros. "Saber consciente, de por em palavras, não [sabia]. Mas eu sabia que tinha de fazer alguma coisa. Tenho plena convicção de que tem um antes e um depois de nós. Você pode ter sua opinião a respeito disso, mas não pode ter seus fatos. Os fatos são únicos."

A mistura de samba com rap vem de longe. Rappin' Hood a fez no início dos anos 2000 e, no fim da década de 1980, na zona norte de São Paulo -- região onde fica sua produtora --, o The Brother's Rap já havia torcido o nariz de alguns fãs mais conservadores com a música "Rapagode". 

"A relação com a mídia era diferente da que eu tenho, acho que esse é o diferencial das gerações. Estamos mais abertos a trocar certas ideias", afirma Emicida. "A gente cresceu ouvindo muita música que não era só rap. Ouvimos rap pra caralho, à exaustão. Mas eu e o Fióti [irmão dele], a gente era os caçulas da família e nunca mandou no rádio. Quem mandava era minha mãe, depois minhas irmãs mais velhas: uma gostava de pagode e a outra, de rock. A que gostava de pop e rock gravava fita com Hanson dos dois lados. Então eu aprendi a respeitar o gosto dos outros."

Depois de suas mixtapes e EPs, as parcerias de Emicida em seus dois álbuns mostram o lado mais pop que ele se permitiu trilhar: Caetano Veloso, Pitty, Vanessa da Mata. E não espere que o rapper deixe de desbravar a cultura brasileira. "A música rap é isso, um trabalho de reverência e de referência contínuo".

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Quem é Emicida

  • 17/08/1985

    Leandro Roque de Oliveira nasceu e cresceu em São Paulo. Emicida tem 32 anos.

  • E.M.I.C.I.D.A.

    O apelido também significa: "Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte".

  • Imbatível

    Emicida ganhou 11 vezes seguidas a batalha de MCs no metrô Santa Cruz. Na Rinha dos MCs, foram 12 prêmios.

  • 25 faixas

    Era o tamanho de sua criatividade na primeira mixtape, "Pra Quem já Mordeu um Cachorro por Comida, Até que Eu Cheguei Longe".

  • 15/03/2008

    É a data do show de lançamento da faixa "Triunfo". Depois disso, a carreira o rapper decolou.

  • 34 milhões...

    ... de views. É o recorde de audiência de Emicida no YouTube, com a música "Passarinhos".

Reprodução/Youtube Reprodução/Youtube

Ameaça de morte e as tretas de "Triunfo"

Depois de um período de baixa nas batalhas de rimas, entre 2007 e 2008, Emicida estava entre o sucesso anterior, quando foi chamado de "novo nome do rap", e o sonho de transformar sua música em realidade. "Teve uma fase em que eu fiquei meio amaldiçoando. Pensava: 'Não quero fazer freestyle pelo resto da vida'". A última cartada era lançar "Triunfo".

Foi todo mundo tocar suas vidas e eu tava abraçado com a minha mochila, combinando com os caras, falando de umas estratégias mirabolantes, que ia fazer o rap virar, porque o Jay Z fez isso, o Puff Daddy fez aquilo. Mas na nossa realidade, a gente mal tava conseguindo pagar a condução

Enquanto alguns parceiros pularam do barco, Emicida tinha vídeo com 1 milhão de visualizações no YouTube, mas não ligava. "Eu pensei o que qualquer um ia pensar: 'Grande bosta. Se cada uma dessas pessoas me desse 1 real, eu não tava nessa bosta'". Mas ele percebeu que era uma forma de divulgar o show de lançamento, escrevendo sua conquista nos flyers e cartazes.

O local já estava certo. Ou quase. "Faltando 20 dias pro barato, o tiozinho [dono do local] começa uma reforma?". E ainda deu de ombros: "Depois a gente remarca".

"Já tava com a divulgação inteira na rua, todo o dinheiro que a gente tinha foi ali. Não tinha como ter uma segunda data. Juntamos nossos parceiros, fomos na porta do mano, dar a entender que ele ia apanhar, ia morrer se não cumprisse com o combinado dele. Mas a gente era uns moleque mó legal, bando de nerd, fã de quadrinhos, fingindo de bandido", ri o rapper, da falsa ameaça.

O show lotou, os 300 CDs produzidos foram vendidos, e uma nova era começou.

Disciplina do rap

Dizer que sou a mesma pessoa de dez anos atrás seria mentira. O que eu tenho uma gratidão grande é que fui disciplinado por artistas muito responsáveis. Acho que os Racionais criaram uma escola de responsabilidade muito valiosa para o rap brasileiro. E eu sou um desses alunos. O que eles fizeram deu parâmetro para entender a importância do que a gente fala quando pega um microfone

Emicida

O tímido garoto que queria desenhar quadrinhos

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Workaholic

Para o rapper, não importa como, o importante é derramar sua criatividade. E "ser foda"

José de Holanda/Divulgação José de Holanda/Divulgação

DVD e turnê

Sai nesta sexta como áudio e em maio como 1º DVD oficial de Emicida, "10 Anos de Triunfo", com participações de Caetano Veloso, Pitty, Vanessa da Mata e homenagem a Chorão. A turnê com o show baseado neste DVD também já sai do papel (as três datas no Sesc Pinheiros, em São Paulo, estão com ingressos esgotados).

Divulgação Divulgação

Livros e filme

Emicida tem alguns projetos engatilhados fora da música: um livro infantil, inspirado na experiência de ser pai; um embrionário desejo de fazer um livro adulto ao estilo de "Na Minha Pele", de Lázaro Ramos; e o filme que contará a história de sua vida. O roteiro deve ser levantado até o fim deste mês.

Daryan Dornelles/Divulgação Daryan Dornelles/Divulgação

Moda

É a Laboratório Fantasma, sua produtora e gravadora, que permite essa diversidade de trabalhos de Emicida. Ponto de encontro de rappers e artistas, é lá que ele prepara projetos como a sua nova linha de roupas, junto ao irmão, Fióti. Eles já participaram inclusive da SP Fashion Week, transformando passarela em palco.

Divulgação Divulgação

Um rapper na Globo

Neste ano, Emicida tem espaço fixo no programa "Papo de Segunda", da GNT. Um rapper em um canal da Globo... contraditório?

"Tem vezes que acho a Globo uma geradora de material incrível e tem vezes que discordo radicalmente. Mas compreendo a proporção dela. A gente está falando há dez anos que nosso ponto de vista tem que estar nos lugares. No momento em que as pessoas me convidam para expor meu ponto de vista, eu vou retrair e dizer que não? Querer fazer uma revolução de dentro para fora vai gerar coisas que vão ser interpretadas como contradição. O que vai definir como você lida com isso é sua maturidade. Acho que ajudamos muito o debate brasileiro estando ali."

Reescrever a história, esse é o barato que eu corro atrás. Eu quero que, quando a minha filha tiver 15 anos, ela desacredite quando eu contar como eu cresci. É um sonho alto, um sonho grande. Mas, mano, como diria o Chorão: "O impossível é só questão de opinião."

Emicida

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