Mulher racional

Eliane Dias ajudou a afastar o machismo no rap e quase foi para a política como vice-presidente do Brasil

Tiago Dias Do UOL, em São Paulo
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Uma mulher negra, alta e determinada está à frente dos "quatro pretos mais perigosos do Brasil". Para quem seguiu os Racionais MC's nos anos de 1990, ver Eliane Dias como empresária do grupo parecia algo inimaginável em um tempo em que tudo era mato.

Com fala forte e discurso articulado --e muitas vezes com o pé no peito--, Eliane tem dado as cartas na gestão do grupo e ajudado a mudar as características do cenário do rap, o principal catalisador da periferia que sempre retratou fielmente uma realidade ainda machista e desigual.

E, mesmo assim, ela ainda precisa levantar a voz nos bastidores dos shows. Certa vez perdeu o prumo quando o integrante de um grupo que abriria o show dos Racionais subiu o tom durante a passagem de som: "Vocês estão no MEU SHOW. Querem ver vocês saírem do palco agora?", respondeu.

"[É um] lugar machista e racista", ela observa. "Foi a única vez que eu tive que falar de mulher para homem, falar no mesmo tom, olhando nos olhos dele".

E admite: não tem muita paciência quando ouve um "sra. Brown" ou "mina do Mano", quando referem-se ao fato de ser casada com o líder dos Racionais.

Essa coisa de pertencer a alguém não é certo. A mulher de fulano? Não, eu sou Eliane Dias. Eu tenho uma história e no caminho dessa minha história agregaram-se muitas pessoas. Meu companheiro [Mano Brown] foi uma delas.

Além dele, passaram por seu caminho gente como Vinicius de Moraes e até um deputado que, há cerca de um mês, a deixou paralisada no meio da rua com uma ligação: "Quer ser candidata a vice-presidenta?".

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Antes de comandar o grupo de rap mais importante do país, Eliane cuidou de crianças quando ainda era uma delas, descobriu que ajudante-geral era um "serviço do cão", operou máquinas, limpou casas, costurou fantasias de super-heróis e entendeu de forma direta o assédio sexual quando desfilou como manequim.

O ritmo de trabalho era intenso porque ela queria continuar a estudar. "Minha mãe disse que ia comigo até ali. E 'até ali' era a oitava série. Se eu quisesse estudar dali pra frente, eu tinha que me virar".

Filha de Maria Aparecida Dias, uma doméstica que foi colocada para fora de casa ao aparecer grávida, Eliane cresceu no Jardim Ubirajara, zona sul de São Paulo, em um ambiente em que a estabilidade e o equilíbrio eram inexistentes. Chegou a perder a casa onde morava e pulava de residências de "tia a tia".

Essa história poderia ser contada através de um beat triste, tal qual aquele "blues antigo" que Brown e milhões de brasileiros cantam em "Vida Loka", uma das músicas mais pungentes dos Racionais, mas ela prefere narrar em outro tom:

Não tenho nenhuma infelicidade por ter passado por isso. Sou uma pessoa iluminada. O primeiro livro que tive, eu peguei do lixo e não tinha ninguém ali para dizer: 'Não pega'.

O livro em questão era "Quarto de Despejo", de Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras a ser publicada no Brasil, nos anos de 1950. Catadora de papel e moradora da favela do Canindé, em São Paulo, Carolina usava os cadernos que encontrava no lixo para escrever sobre seu cotidiano. Sem saber, Eliane repetiu o gesto decidida do que seria: "Eu tinha 9 anos e queria entender o que estava escrito ali. Me falaram que advogado entendia".

Formou-se em 2008, já mãe de dois filhos (Jorge, 22, e Domênica, 19, nomes escolhidos em homenagem a Jorge Ben). Levou tempo para concluir a faculdade, e com motivo: "Eu que pago minhas coisas, eu não tenho que pedir para ninguém pagar para mim", diz, preocupada com o MBA no qual ela se matriculou e "levou pau" em uma das matérias. "Tá puxado. Só de pensar que eu tenho que pagar de novo...".

Hoje ela ostenta a carteirinha da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] com orgulho, assim como o diploma pendurado à altura do seu rosto na sala da Boogie Naipe, produtora que fundou com Brown em 2013 para gerir a carreira do marido e dos Racionais.

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Muita treta para Vinicius de Moraes

O primeiro convívio com artistas foi ainda criança. A mãe era doméstica na casa do poeta e diplomata Vinicius de Moraes e, algumas vezes, Eliane a acompanhava ao trabalho. "Acho que eu devia estar aprontando muito e minha mãe me levava junto", recorda. "Eles eram super legais, eu não tinha que ficar presa no quarto ou na área de serviço. Ficava circulando. Ver Belchior, Vinicius, Toquinho e outros cantores era uma rotina comum".

Ela mesma chegou a trabalhar como empregada na casa de uma namorada de Toquinho. Era ali que ela tomava muita Coca-Cola, descobria livros e discos, e observava a patroa andar nua de um lado para o outro. "Ali eu vi que a mulher pode morar sozinha, ser dona do seu próprio nariz".

Esse senso levou a advogada a exercer a pauta na periferia. Hoje, além de coordenar o SOS Racismo, uma associação sem fins lucrativos, ela é mentora do Plano de Menina, projeto que trabalha a consciência na comunidade. Assim como o personagem em "Homem na Estrada", uma das músicas mais famosas dos Racionais, sua finalidade era a própria liberdade.

A mulher precisa ter um espírito mais livre. Ser mais ousada, mais abusada, arriscar mais, ser mais dona de si. Eu acho que a mulher tem que ser egoísta, pensar em si em primeiro lugar.

Eliane tinha consciência do empoderamento já naquela época. Era questão de sobrevivência. "Era falta de opção. Você tem que sobreviver e você tem que se adaptar ao meio. É a sobrevivência".

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Artista me faz respirar. Eu sou muito pesada, sou muito racional

Eliane Dias

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Liberdade

Eliane abre um sorriso ao encontrar a foto da época em que era manequim. "Olha que fofa que eu era", diz. Foi assim, bem fofa, que ela conheceu Pedro Paulo, antes de ele se tornar Mano Brown. O office-boy magro foi apresentado no ônibus pelo seu primo Blue. Eliane não deu brecha:

"Eu estava em outra. Eu tinha um projeto de estudar. Estava desfilando e em todos os desfiles eu era assediada, não queria me relacionar, não queria ninguém. E talvez por isso que nossa relação tenha fluído, eu não queria nada dele", conta.

"Como eu preciso respirar, eu não prendo ninguém. E na relação também eu nunca prendi. Ele sempre foi livre, sempre foi solto, sempre fez o que quis, e vai morrer assim, se depender de mim. Eu não me incomodo com o horário que chega, com o horário que sai, pra onde vai, com quem vai, com quem está, com quem não está. A partir do momento que você fala: 'Eu só saio com você, você só sai comigo', como é que faz? O que me incomoda é por o pé no meu pescoço, não me deixar respirar, não me deixar ir e vir".

"Não sou mulher de fulano, sou Eliane Dias"

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Um porto seguro

Nos conhecemos em março de 1989. O resquício da ditadura ainda era muito forte, muito presente. Tudo que a gente queria fazer era errado, tudo era proibido, tudo era impossível, todas as portas fechadas.

O que era fácil naquela época é o que é fácil até hoje. Nesse processo de total repressão, você só tinha liberdade se fosse no crime.

Com certeza, eu acho que se ele [Mano Brown] não tivesse visto em mim alguma coisa, um porto seguro ou uma possibilidade de superação, de sobrevivência, talvez ele tivesse ido para o crime.

Teve outras situações em que eu interferi desse jeito feminino. Propostas de pagamento com coisas ilícitas que ele nunca aceitou. Várias coisas que ele abria mão pelo fato de que eu não concordava. Queriam pagar os shows com material ilícito, davam arma de presente. Eu falava: 'Olha, essa arma tem energia negativa, não quero'. Pode uma coisa dessa? A pessoa falar em energia? Aí ele optava por se livrar da arma.

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Presidenta negra

Eliane Dias está sempre preparada para responder a qualquer situação, mas um telefonema a deixou sem reação: um convite para ser candidata à vice-presidente na chapa de Manuela d'Ávila (PCdoB) à presidência da República. Ela tinha 24 horas para dar a resposta.

Como foram aquelas 24 horas?

Foi péssimo, não foi fácil. Eu ser a primeira mulher negra vice-presidente da República no Brasil, hoje, teria um significado muito grande. A gente ia causar um estrago. Tenho certeza.

Por que não aceitou?

Coloquei tudo na balança. Eu pesei bastante e pensei que não tenho mais tempo para recomeçar, tenho que seguir em frente. Não tem como parar agora, arriscar uma candidatura à vice-presidência, ia causar um grande estrago em todo mundo que está ao meu redor. Eu resolvi não arriscar.

Qual foi a opinião do Brown?

Eu não pedi opinião de ninguém.

Tomou sozinha essa decisão?

Normalmente eu faço as coisas que eu tenho que fazer sozinha. As opiniões das pessoas vêm carregadas de interesses e sentimentos. Eu tinha que decidir sozinha, mas nunca vou saber se foi [a decisão] certa. Quase chorei. Mas não chorei. Eu não sou muito chorona.

De repente a presidenta sai, vai ali na Argentina, meus filhos deixam de ser filhos de Mano Brown e viram filhos da presidenta da República. Olha o cenário!

Eliane Dias

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A periferia segue

Para nós aqui da periferia, negros e pobres, a gente está fazendo o que a gente sempre fez, com ou sem esse cenário político. A gente sempre lutou, sempre resistiu, sempre inovou. O que está acontecendo hoje não é nenhuma novidade, a gente vai passar por isso.

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Mulheres de direita

Estou de olho nelas. Qual foi o momento em que ela escolheu ser uma mulher preta de direita? Quero entender. A gente apanhou porque estava com o livro "Rota 66" [de Caco Barcellos] na mão, a polícia enfiava porrada. Quando a pessoa fala em militarismo, eu tenho vontade de cortar os pulsos.

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João Doria

Um homem que sai com um cashmere nas costas, olha pra mim e vê um ET. Um governo que não anda, não passou da ponte pra cá. É um homem que ninguém vê no aeroporto, ninguém sabe, ninguém conhece. Esse homem não sabe da minha existência, ele não sabe do que eu preciso.

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Boogie Naipe

Eliane nunca abandonou as raízes. A produtora Boogie Naipe, por exemplo, fica em um sobrado nas ruas residenciais do Jardim Gismar, bairro do distrito de Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, mesma região onde ela cresceu.

O escritório é sóbrio e nada lembra uma produtora de rap. Na estante, os livros de advocacia têm mais destaque do que os prêmios que os Racionais ganharam.

A ideia de gerir o trabalho do grupo surgiu depois de ela ter estudado direito empresarial. Era 1994 e os Racionais despontavam com força ao seu próprio modo: fugindo dos métodos tradicionais do showbiz.

O grupo não tinha site, assessoria de imprensa ou mesmo um advogado para cuidar das finanças. Videoclipes estavam perdidos. Eliane deu a ideia de abrir o negócio, mas os integrantes não aceitaram. "Além de ser mulher, eu era namorada de um deles, entendeu? Então não cabia".

A produtora só saiu do papel depois que a empresária Paula Lavigne tentou trabalhar com os Racionais. Vendo o tamanho da bronca, avisou que Eliane era a melhor pessoa para a função.

Foi então que a agora empresária chegou ao ano de 2013 conquistando de cara uma proeza: fazer os Racionais colocarem no mercado um disco novo depois de 12 anos sem lançamentos, "Cores e Valores".

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Sem perder o raciocínio, Eliane monitora WhatsApp e e-mail enquanto conversa com a reportagem. "Olha aqui, contrato para o livro sobre o 'Sobrevivendo no Inferno'", ela mostra o documento na tela do computador. "Nós vamos assinar esse contrato já já".

Obra seminal do rap brasileiro, o disco lançado pelos Racionais em 1997 foi incluído na lista de leituras obrigatórias para o vestibular 2020 da Unicamp.

"O rap e os Racionais mudaram o posicionamento de um povo. A Academia está observando isso agora. Aquele povo de 1990, 1992, cuja autoestima não existia, os Racionais mostraram para eles que era possível e isso é admirável. Eu também me auto-valorizei ouvindo Racionais, eu também me empoderei."

O apoio de Eliane ao trabalho do grupo também tem ressalvas. "Sempre tive uma relação de apreciar, de estar junto, de criticar, de achar ruim. Eu não gostava de tudo, não. Assim como não gosto até hoje", diz ela.

Ela prefere as que narram histórias de quem resiste e não tomba pelo caminho, como nas músicas “Mano na Porta do Bar” e “Homem Invisível” (lançada no disco solo do racional Edi Rock), mas se lembra bem de quando ouviu pela primeira vez “Mulheres Vulgares”, música do final dos anos 1980, que hoje até Brown reconhece como machista.

“Fiquei de cara fechada. Na época que essa música surgiu, a gente não tinha esse lugar de fala, não entrava no embate, não ia à internet falar. Mas a reação sempre existiu. Ficava de carão.”

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A vez da mulher

Colocar os Racionais no trilho certo fez Eliane Dias se tornar uma referência feminina no mercado da música. Passou a dar palestras, participar de encontros e foi vencedora da categoria "empreendedora musical" no último "Women’s Music Event Awards", evento voltado para as mulheres na música, na qual também concorria Anitta.

É um tanto simbólico que a primeira aposta da Boogie Naipe sob sua tutela seja uma cantora, já que os Racionais, que tanto fortaleceram a cena lançando discos, como o primeiro álbum de Sabotage, ainda não tinha se voltado para as mulheres no rap.

Foi o filho Jorge que a apresentou à Alt Niss (na foto, ao lado de Eliane). A cantora, também da zona sul, chegou com a pegada R&B, gênero que sempre teve preferência na trilha sonora da vida de Eliane.

Com 29 anos, Alt Niss cresceu tendo Brown como ídolo, mas lembra até hoje quando descobriu que a mulher do rapper era tão "foda" quanto ele. "Comecei a acompanhar tudo [sobre ela]. Eu também sou mãe, também estou no corre, entrei e saí de relacionamentos, eu achava muito inspirador as coisas que ela falava", diz a novata.

Em uma das primeiras ações sob sua gestão, Eliane contratou mulheres para trabalhar com ela. Hoje, correspondem à metade do quadro de funcionários da Boogie Naipe. A partir dali, aproveitou a turnê dos Racionais em casas de shows maiores e conceituadas --um fato inédito na carreira do grupo-- e decidiu coroar o momento colocando mulheres para abrir os shows, além do rapper Rico Dalasam, que em 2015 ajudou a fazer o hip-hop ser mais inclusivo ao público LGBT.

Seria desonesto eu ter meu lugar de fala, me qualificar, estudar e caminhar nesse cenário sozinha.

"Eu sou o Jay-Z"

O mercado da música hoje está bem propício porque a mulher tem a técnica, a percepção, a feminilidade, o feminismo. Ela tem a sensibilidade, ela sabe dialogar, ela sabe acolher, sabe dizer não. A gente está no momento do Brasil que tudo isso tem que ser colocado em prática. Não dá pra você trabalhar sem ter todo esse conjunto de coisas onde a mulher atua com tanta naturalidade. Agora a gente tem espaço, o que significa que a gente vai doar um rim pra isso dar certo, entendeu?

Eliane Dias

As mulheres...

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... que inspiram

Maria Aparecida Dias, a senhora minha mãe. Ela é minha inspiração próxima. Ela é muito silenciosa e eu aprendi muito nesse silêncio dela. E hoje eu sou uma pessoa que trabalha bastante, sou honesta, aprendi com ela. Sou mãe responsável e ela teve quatro filhos sozinha. Também acho a Oprah Winfrey incrível. Toda mulher preta que dá a volta por cima e se sobressai tem que ser observada.

Ethan Miller/Getty Images Ethan Miller/Getty Images

... que ela ouve

Sade foi marcante. Quando estava grávida da Domênica eu só ouvia Sade. Lauryn Hill também. Eu quis trazê-la para comemorar os três anos de Boogie Naipe. Meu filho, custava US$ 130 mil! Falei para o empresário dela: "Dá pra vir ela e mais duas pessoas para tocar um violão pra mim?". "Não, ela só quer viajar se for com as 30 pessoas". Eu fiquei tão triste que até hoje não fiz a comemoração.

Divulgação Divulgação

...que o mundo precisa conhecer

A [filósofa e escritora] Sueli Carneiro está num contexto em um momento de colher frutos. Ela fez tanta coisa, chegou com esse movimento preto feminista bem lá na frente. Ela teve essa visão há 30 anos. A Djamila Ribeiro está na cena, mas ela já está sendo vista, está sendo ouvida, ela está pautando, colocando o posicionamento dela.

Reprodução Facebook Reprodução Facebook

... que ela observa

[Apresentadora e ex-consulesa da França] Alexandra Loras. Eu a observo, não a entendo, mas acompanho. Não tenho nada assim palpável, eu estou observando a Alexandra, observo qual é a cabeça de uma mulher negra europeia. Eu faço essa análise porque ela tem um modo de pensar a militância negra feminista de um jeito diferente do nosso.

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