O último roqueiro

Dinho largou as drogas e virou um cara família, mas sua causa é a mesma desde os 16 anos: manter o rock vivo

Paulo Pacheco e Tiago Dias Do UOL, em São Paulo
Lucas Lima/UOL

Aos 53 anos, Dinho Ouro Preto tomou uma decisão: deixar o cabelo crescer como fez aos 16. "Tem que ter o maior cuidado", desabafa, mexendo nos fios. "Não sei se vou ter paciência".

Com os dedos adornados de anéis, piercing discreto do nariz, camisa xadrez e tênis de skatista, Dinho contrasta com a decoração clássica de sua espaçosa casa em um bairro nobre de São Paulo.

Mas a estante recheada de CDs, de Led Zeppelin a Foo Fighters (ele não ouve streaming por não achar justa a remuneração) e uma munhequeira em cima de um móvel denunciam que um roqueiro vive ali. E não é qualquer um da espécie.

Dinho está há mais de 30 anos à frente do Capital Inicial, a banda de rock que (ainda) mais esgota apresentações e rejuvenesce seu público, mesmo que o gênero não circule mais com a mesma popularidade do que nos anos de 1980.

Sua empolgação também é tipicamente juvenil e só ameaça ficar grave quando comenta sobre o que chamam de "síndrome de Peter Pan". "Não é nada disso, velho", ele rebate.

Eu continuo fiel, ouvindo as mesmas coisas que eu ouvia quando tinha 15 anos. As pessoas vão falar: 'Estagnado'. Lá fora, quem faz rock continua a fazer até morrer. Queria ver o Tony Iommi (guitarrista do Black Sabbath) dizer: 'Opa, acho que agora vou fazer bossa nova, estou me sentindo meio velho'

"É impossível sobreviver ao sexo, drogas e rock and roll"

Não que o músico ainda viva como um rockstar. Casado com a arquiteta Maria Cattaneo, com quem tem três filhos adolescentes, Dinho --apelido de Fernando-- é um cara de família. Faz muay thai ("vale por várias sessões de psicanálise") e descobriu na corrida diária o aditivo para substituir o cardápio extenso de drogas que tomou nos 35 anos de carreira. Seu barato agora? "Sexo, endorfinas naturais e rock and roll", ele diz.

Nada tem a ver também com o acidente que sofreu em 2009, quando caiu de uma altura de 3m durante uma apresentação. O tombo o deixou sem olfato, mas não teve o efeito de renascimento. A questão é mais simples: "É impossível sobreviver ao sexo, drogas e rock and roll. Mas é possível você continuar roqueiro e ter família".

É a única coisa que o distancia do antigo Dinho. Além do cabelo comprido (se tudo der certo), Dinho não ouve rádio, não assiste TV, não sabe quem é Marília Mendonça e diz nunca ter escutado uma música de Anitta.

O rock continua sendo seu elixir. Vira e mexe, desenterra a discografia do Led Zeppelin para ouvir na ordem, enquanto dirige, e tenta tirar no violão as músicas da sua juventude, dessa vez com ajuda de tutoriais no YouTube.

"Estamos à procura daquela visceralidade que a gente não tem mais. Vai ser um eterno cálice sagrado, algo que você busca por todo o sempre".
 

Acervo pessoal Acervo pessoal

Entre cogumelos e três acordes

Quando moleque, eu era sectário pra caralho. Se você não ouvia punk rock, eu nem falava com você

Quando boa parte de Brasília ainda era só mato, a chegada do punk teve efeito catártico em nove a cada dez jovens da Colina, o famoso conjunto de prédios habitacionais na Universidade de Brasília. Não foi diferente para Dinho e Dado Villa-Lobos, seu melhor amigo na infância e que se tornou meio-irmão após seu pai se casar com a mãe do futuro guitarrista da Legião Urbana.

A filosofia punk do "faça você mesmo" era levada a ferro e fogo por aquela turma que, em pouco tempo, se tornaria os heróis do rock (vide Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso e Plebe Rude).

Achávamos que éramos profundamente subversivos, que estávamos contribuindo para a queda do regime. Saíamos com as camisetas com o 'A' da anarquia, com a foice e o martelo, e minha mãe ficava apavorada, achava que íamos sumir no lago de Brasília

Em plena ditadura militar, era obrigatório qualquer jovem ter uma banda para lutar contra o sistema, mesmo que não soubesse tocar um instrumento. Dinho tentou guitarra e bateria, sem sucesso. "Eu lembro de ver o Herbert Vianna tocando desde cedo e da disciplina que ele tinha", diz. "Eu acho que sou disléxico. Leio devagar, troco letras."

Passou a fazer os fanzines que circulavam no grupo e desenhava estampas para as camisetas que vendiam nas feiras hippies. Até que atendeu o chamado dos irmãos Fê e Flávio Lemos, então integrantes do Aborto Elétrico, para assumir os vocais da nova banda. Matou o vestibular para fazer sua estreia com o Capital, na UnB.

"Eu lembro que eu estava completamente bêbado. Subimos em uma árvore atrás do palco, era o final do vestibular, devia ser meio-dia. Eu não lembro direito, só da sensação de exposição, vergonha. Eu me achava inadequado, desconfortável. Levei muito tempo para me acostumar à ideia de tocar."

Nunca tinha cantado na vida, mas em um intervalo de um mês estreou em terras cariocas no mítico Circo Voador. "Eu achava que estava absolutamente despreparado. Eu via o tamanho da expectativa das pessoas, do desafio a nossa frente e disse: 'Não estou preparado'".

A sensação de inadequação o acompanhou até a primeira fase do Capital, que se encerrou de forma abrupta em 1993. Os sinais de desgaste vieram antes. A gravação do disco "Você Não Precisa Entender", lançado em 1988, foi caótica, com cocaína espalhada pelo estúdio e um desleixo de Dinho com o trabalho.

Eu não me sentia um artista nato. Possivelmente, as drogas e o álcool amplificavam essa sensação

A vida na Colina

  • Sexo

    Não éramos tão permissivos assim. Tínhamos namoradas, ficávamos. Não falávamos muito da homossexualidade do Renato [Russo]. Não falávamos muito nem sobre homossexualidade. Quem era gay na turma, hoje eu encontro em Brasília e falo: 'Mas, então, sempre teve uma facção gay na turma?'. 'Sempre teve'. Eu era hétero, tinha minha namorada, o Renato também não tinha saído armário.

  • Drogas

    Em Brasília crescia muito cogumelo. Você andava 1km e já estava no cerrado, no mato, tinha vaca pastando. Você conseguia matar aula, pegar o carro de manhã cedinho, ver as vacas, colher o cogumelo, comer o cogumelo e ficar viajando o dia inteiro e voltar para casa, sem que seus pais suspeitassem de nada. Naquela época, basicamente era maconha e cogumelo. Bastante maconha. Depois, quando a gente vem para São Paulo, entra cocaína, ácido na equação. Aí a coisa desanda.

  • Rock and roll

    Eu lembro que eu viro a casaca e, finalmente, consigo entender o que é punk com "It's Alive", dos Ramones, e me converto, viro cristão novo, obcecado. Pego todas as manias, regras, dogmas possíveis que existiam dentro do punk e viro uma espécie de inquisidor. Era um adolescente de classe média e tudo que eu tinha eu jogo pela janela. Eu tinha acesso privilegiado nos ensaios do Aborto, gravava e ia para casa ouvir. O 'moto' do punk é 'faça você mesmo', que o rock tem que sair das ruas e não dos conservatórios, e aquilo é levado ao pé da letra em Brasília.

Primeiro show: "Enchi a lata para subir no palco"

Lucas Lima/UOL Lucas Lima/UOL
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A volta

Fora do Capital, Dinho experimentou (por uma única vez) uma vida além do rock. Teve dreads no cabelo e vivia nas baladas clubber que invadiam São Paulo. Apaixonado por Prodigy, caiu de cabeça na música eletrônica e lançou em 1994 seu primeiro álbum solo, "Vertigo". A investida teve o mesmo desempenho do Capital Inicial sem Dinho nos vocais: um fracasso.

"'Vertigo' foi um puta aprendizado, uma das melhores coisas que fiz. Parece uma contradição, mas foi um mal que me fez bem. Aprendi a me virar sozinho, compor sozinho. Era só eu. Mesmo tendo sido um fiasco comercial, aprendi muita coisa. Quando o Capital se reúne, tenho muito mais domínio e segurança sobre o que produzo", avalia.

Com dois álbuns solo sem repercussão (o outro, homônimo, saiu em 1995), Dinho viu sua carreira afundar em 1997, quando não gravou nada pela primeira vez na vida. Para sobreviver, chegou a compor jingles publicitários e a traduzir legendas de séries para a HBO. A virada aconteceu quando Loro Jones, guitarrista do Capital, encontrou o ex-colega no estúdio do produtor sérvio Suba (1961-1999) e propôs voltar a tocar com ele.

"Em 1996, morre o Renato [Russo]. Em 1997, a gente para de tocar e a gravadora Polygram lança uma coletânea do Capital sem nos consultar. Vendeu 80 mil discos, e não estávamos juntos. E a Plebe tinha acabado. Acabou a nossa geração. Aquilo que começou nas quadras da UnB, nos porões, acabou. Já que saiu esse disco dos 15 anos que o Capital faria em 1998, vamos aproveitar que acabou o rock de Brasília, fazemos seis meses de comemoração. Nos reunimos ainda hesitantes. Eu me lembro do Flávio falando: 'Quem vai querer ver a gente?'".

A turnê surpreendeu Dinho e a banda. Da excursão de seis meses, vieram os convites para gravar um álbum inédito e o "Acústico MTV", que vendeu 2 milhões de cópias, "ressuscitou" o Capital Inicial e colocou o repertório da banda de novo nas rodinhas de violão:

Eu gosto da ideia de um garoto pegar o violão em casa e tocar as nossas músicas. Isso faz com que sejamos acessíveis. Era o que queríamos. É um eco do punk rock, é o que sobrou.

"Descrença política pode eleger 'populista perigoso'"

Ativista político, Dinho dedicou "Que País É Este" ao presidente Michel Temer no Rock in Rio 2017. O roqueiro se define como centro-esquerda, mas não apoia partidos. Para ele, é possível defender, ao mesmo tempo, políticas sociais e livre mercado, e é possível chamar o governo de Dilma Rousseff de "desastre histórico" e reprovar o impeachment. O cantor percebeu a reação enfurecida de seus seguidores de direita ou esquerda quando publicou uma foto com o juiz Sergio Moro nas redes sociais, em junho de 2016.

"Foi um encontro muito breve. Desci do carro e dei de cara com ele. Falei dele no show e o lugar veio abaixo, não esperava. Também não esperava a reação que a foto teve, porque as pessoas o percebem como um cruzado contra Lula. Quem é fervorosamente petista ficou profundamente insultado e quem é atavicamente antipetista ficou em êxtase. Ele falou que discordava do meu ceticismo geral com os políticos. Ele achava que era um engano colocar todos numa vala comum e tacar fogo".

A descrença com os políticos preocupa Dinho para a eleição presidencial de 2018. O músico, que costuma ir atrás dos candidatos e anulou seu voto entre 2006 e 2014 (quando apoiou Marina Silva), teme que a falta de entusiasmo dos brasileiros leve um "populista perigoso" ao Planalto.

"Embora esse saque ao Estado brasileiro seja gravíssimo, há algo ainda mais grave que é o fato de esses homens estarem conspirando contra a democracia brasileira. Está passando desapercebido até o Brasil eleger um populista perigoso. Até um Bolsonaro acabar presidente, ou um Trump no Brasil. Ou de esquerda, que seja. Acho que esse descrédito abre o caminho para um 'salvador da pátria'".

Um cara para unir todas as tribos

Embora goste de falar de política, a causa da sua vida continua a mesma quando frequentava com a banda os programas do Chacrinha nos anos de 1980. Naquela época, ele lembra, "estávamos determinados a popularizar o rock no Brasil".

Eu gosto do rock, mas não basta isso. Precisamos de um militante, alguém que levante a bandeira com orgulho e diga: 'Vamos organizar isso aqui'. A gente tem plateia, tem rádio, é só botar ordem

Dinho tem uma meta para o futuro: "Gostaria de fazer um Lollapalooza do rock brasileiro". A ideia tem sido debatida com outros músicos da cena em um grupo de WhatsApp e reuniões semanais. Alguns desses encontros têm acontecido na casa de Lucas Silveira, líder da banda Fresno. "Tenho idade dos pais dos caras", ele ri.

"Eu gosto de estar no meio deles, dessa garotada. Você mede a saúde de um determinado gênero vendo a novidade, não é vendo o Capital. O Capital já fez, já gravou. A gente é uma banda de veteranos. Sim, Capital prepara um disco novo para 2018, mas para atestar a saúde do rock brasileiro não é ver se o Capital está bem. É estando no meio da garotada. Eles estão tirando coelhos da cartola".

O cara que eternizou o meme do "Norvana" ainda espera pelo zeitgeist da nova geração. Mas sabe que falta um ingrediente: "Acho às vezes meio conservador, precisa do elemento sexual um pouco mais contundente".

É por isso que ele aparece, sempre que possível, sem camisa nos shows. Mas posar nu já seria demais. Nos anos de 1990, Dinho foi convidado para um ensaio na extinta revista "G Magazine", voltada ao público gay. Ele ri, meio envergonhado: "Aí não. É vulgar, eu acho".
 

Dinho ouve Marília Mendonça pela primeira vez

Decifrando Capital Inicial

  • "Fátima", a música incompreensível

    Essa música não é fácil nem comum. Renato tem duas músicas assim. Musicalmente é a mesma coisa do começo ao fim. São três acordes, não tem rima nem refrão, e não dá para entender do que o Renato está falando. E a melodia não se repete. Não satisfeito, ele vai lá e faz "Tempo Perdido". Tem que ter talento para fazer isso. Ele é um dos maiores artistas brasileiros e "Fátima" é um exemplo.

  • O que quer dizer o refrão de "Natasha"

    "Pneus de carros cantam, thuru, thuru, thuru, thururu". Isso precisa explicar mesmo, porque as pessoas não se dão conta. "And the colored girls go, doo do doo do doo do do doo". Pegamos do Lou Reed, "Walk On The Wild Side", música sobre hedonismo. Realmente, as pessoas não sabem. "Natasha" é da fase das baladas clubbers, ali tinha sua fauna, seus personagens. Não era especificamente sobre alguém, mas era sobre esse mundo à parte.

  • Bolado na capa de "Rosas e Vinho Tinto"

    Acho que essa foto, na capa do disco, foi mexida. Eu estou um pouco maior e não estava tão distante da mesa. Mas continuo gostando de comida japonesa. Comi ontem, aliás. Nesse estúdio, tinha um delivery de "japa" e comíamos todo dia. A comida empilhada era o almoço. A ideia da arte desse projeto foi fotografar a gente gravando. Não tem muita produção.

  • O que você faz quando ninguém te vê fazendo

    Ouço música sertaneja (risos). Seja lá o que for, se for algo inconfessável, não vou confessar aqui. Na verdade, falo abertamente sobre quase tudo, não tenho grandes segredos.

Daniel Neri/UOL Daniel Neri/UOL

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