De volta ao sonhar

Capista de "Sandman" e desenhista de "Asilo Arkham", Dave McKean ilustra pesadelos de guerra de pintor inglês

Ramon Vitral Colaboração para o UOL
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O artista britânico Dave McKean, de 54 anos, é especialista em sonhos. Entre os anos de 1989 e 1996 ele assinou as 75 capas da série "Sandman", um dos maiores clássicos dos quadrinhos mundiais, roteirizada pelo escritor inglês Neil Gaiman e protagonizada por Morpheus, governante do Sonhar e personificação de todos os sonhos e histórias concebidas pelas nossas mentes.

Músico, diretor de cinema, fotógrafo, ilustrador e quadrinista, McKean está de volta às ambientações oníricas que o levaram à fama. No entanto, seu protagonista não é mais a criatura fantástica concebida por Gaiman para a linha de quadrinhos adultos da editora DC Comics. Em "Black Dog: Os Sonhos de Paul Nash" (DarkSide Books), o protagonista é um pintor inglês nascido em 1889 e morto em 1946 que foi atormentado por suas memórias nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

“Nash encontrou uma linguagem para expressar a brutalidade e o niilismo não apenas da Primeira Guerra Mundial, mas de qualquer guerra”, diz McKean em entrevista exclusiva ao UOL sobre o protagonista de seu mais recente trabalho publicado no Brasil.

A conversa ocorreu enquanto o artista preparava as malas para sua vinda ao país. Até o dia 3 de junho ele será o principal convidado do Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, que tem entrada gratuita e é o maior evento nacional dedicado exclusivamente às HQs.

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As memórias da guerra

O envolvimento de McKean com Nash começou quando o quadrinista foi convidado por uma fundação britânica para realizar um trabalho para a lembrar a população local sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial. McKean decidiu que ilustraria a experiência de uma pessoa criativa em relação à guerra, então pensou em Nash.

Presente nas frentes de batalha da Grande Guerra, Nash produziu algumas das imagens mais icônicas do primeiro confronto bélico mundial, ainda que com forte apelo surrealista, como a pintura acima, "The Menin Road".

Nenhuma das paisagens dele eram realmente realistas, são sonhos ou interpretações psicológicas do mundo real mescladas aos sentimentos dele.

McKean estudou todas as pinturas e arquivo de cartas de Nash e decidiu investir nos sonhos do artista. Ele transformou cada capítulo de seu livro em um sonho de momentos distintos da vida de Nash, todos co-protagonizados pelo cão misterioso de pelugem preta que dá título à obra.

A HQ intercala instantes da infância do pintor brincando com o irmão às suas experiências partindo para alguma batalha na guerra. “Cada um desses cenários é um espaço físico e emocional específico, então eu realmente precisava encontrar a forma certa de apresentar visualmente cada capítulo, capturar o clima e expressar as emoções”, conta McKean.

A história se repete?

Na avaliação de McKean, uma de suas maiores lições da produção de "Black Dog" veio da reflexão sobre os rumos do mundo no presente. O autor acredita que a maior contribuição de seu trabalho está em possivelmente ativar as lembranças dos horrores de qualquer espécie de guerra

As pessoas estão novamente se escondendo sob argumentos nacionalistas e egoístas.

"É por isso que memoriais, comemorações e o hábito de contar essas histórias desses períodos são tão importantes. Não podemos esquecer que essa liberdade que tomamos como garantidas na verdade vieram sob um custo imenso. A arte é uma máquina de empatia, ela permite que enxerguemos pelos olhos de outras pessoas - algo importante hoje como nunca”, afirma o quadrinista inglês.

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Nash x McKean

Conhecido por suas pinturas surrealistas, Paul Nash é figura-chave do Modernismo inglês e entrou para a história da arte por seus quadros retratando as paisagens fúnebres vistas por ele durante seu período como soldado no exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial.

Enquanto a fama de Nash ficou limitada aos seus conterrâneos, McKean (foto) consta entre os artistas ingleses mais cultuados e celebrados surgidos no final do século 20. Ele fez parte da invasão de autores britânicos que revolucionou a indústria norte-americana de HQs entre as décadas de 80 e 90. Além das capas de "Sandman", McKean ilustrou clássicos como "Orquídea Negra", "Hellblazer" e "Asilo Arkham".

Ele também publicou livros aclamados, dirigiu filmes e assinou capas de discos. Entre suas obras estão o livro que acompanha o disco "Voodoo Lounge", dos Rolling Stones, e capas de discos de artistas como Alice Cooper e Tori Amos.

Ainda assim, "Black Dog" tem um apelo especial para o autor. McKean e seu protagonista cresceram e foram criados ao sul da Inglaterra e compartilham das mesmas influências de vanguardas europeias da primeira metade do século 20.

Pode ser o livro do qual tenho mais orgulho. O tema dele valeu o meu investimento e Nash é um artista que merece ser mais celebrado. 

Apesar da preferência de McKean por "Black Dog" em relação aos seus demais trabalhos, ele diz que o projeto tomou forma de modo semelhante ao demais. Primeiro escreveu um roteiro mesclando textos de sua autoria com trechos das cartas que encontrou assinadas por Nash. Quando fechou o texto do quadrinho, começou a desenhar. “Eu mantive o processo muito aberto e improvisei até o fim. Eu ainda estava reescrevendo e formatando o final do livro até os últimos dias” diz.

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Noites sem fim

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Sonhos de Sandman

De seu trabalho mais conhecido, como capista de "Sandman", McKean guarda boas memórias tanto da produção das artes da série escrita por Neil Gaiman quanto da recepção nos Estados Unidos e na indústria norte-americana de quadrinhos.

Segundo o artista, apesar do grande alcance da obra e de seu sucesso comercial, as capas serviam como um espaço de experimentação.

Elas se tornaram um diário de sete anos, enquanto eu explorava ilustração, fotografia, colagens, designs, desenhos e ferramentas digitais.

“Era ótimo ter uma janela inteira todo mês para experimentar algo novo, ilustrando um arco longo de histórias aberto à minha interpretação. Quando começamos eu tinha acesso às páginas internas, mas no final eu só tinha uma ou duas linhas de descrição do que aconteceria nos meses seguintes. É surpreendente como as capas acabaram casando tão bem com as páginas internas, principalmente por eu ter poucas referências com as quais trabalhar”, lembra.

Em relação à sua chegada à América na companhia de outros colegas britânicos no fim dos anos 80, ele vê na receptividade de seus editores da época um desespero criativo cíclico da indústria do entretenimento.

Nós trouxemos um frescor europeu e uma arrogância juvenil para o mercado. A maioria dos meios têm esses momentos de ouro, quando estão afundando e precisam de rejuvenescimento, mas esses momentos nunca duram. Eventualmente, as companhias acabam definindo seus trabalhos por termos financeiros e essa liberdade e anarquia criativa chegam ao fim”.

Hoje distante da indústria mainstream de quadrinhos nos Estados Unidos na qual fez sua carreira, McKean vê as HQs passando por uma fase extraordinária e de exceção, principalmente no que diz respeito ao uso da linguagem.

“Todas as novas vozes estão sendo ouvidas ao redor do mundo e sendo expressas em estilos sem qualquer peso nostálgico de quadrinhos antigos”. 

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Contra os gibis de super-heróis

São uma grande porcaria - um veneno que destruiu o meio dos quadrinhos nos Estados Unidos e agora arruinou a indústria de cinema. São fantasias infantis de poder para uma cultura infantilizada e amedrontada. Muito deprimente.

Dave McKean

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O lobo solitário

Famoso internacionalmente por seus trabalhos em parceria com roteiristas, músicos, pensadores e diretores de cinema, McKean explica as vantagens de projetos solo.

É maravilhoso passar alguns períodos no universo de outra pessoa, mas é muito mais recompensador ilustrar meus próprios roteiros. Eu tenho a liberdade de ir para onde o roteiro me levar.

McKean conta que cada um de seus parceiros, seja um roteirista ou um músico, cria uma dinâmica própria de trabalho em conjunto.

“Alguns gostam de me deixar trabalhar sozinho e aí eu crio o que considero que melhor captura o clima da música. Alguns gostam de ser mais participativos, oferecendo ideias que eu possa desenvolver. Eu não me incomodo com nenhuma das duas formas”, diz.

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