A Pixar depois de Lasseter

Após escândalo, estúdio tenta desfazer imagem de ambiente hostil a mulheres e minorias

Natalia Engler Do UOL, em Emeryville, Califórnia
Kevin Winter/Getty Images

O principal estúdio de animação do mundo não teve um semestre fácil. Não que a casa de franquias como “Toy Story” e “Monstros S/A” tenha amargado algum prejuízo (“Viva - A Vida É uma Festa” ganhou dois Oscars e passou da marca de US$ 800 milhões em todo o mundo), mas a imagem da Pixar como um dos maiores celeiros de talentos da animação sob a tutela da gigante Disney foi colocada em xeque em novembro do ano passado, quando John Lasseter, uma de suas principais lideranças, se afastou por seis meses por conta de “tropeços” envolvendo colegas do sexo feminino.

Diante do clima de desconforto com as denúncias de assédio e abusos que ainda domina Hollywood, poucos acreditam que Lasseter realmente volte a chefiar os dois estúdios. E, ainda sob a incerteza do desfecho do caso, a Pixar começa a se organizar para seguir sem um de seus fundadores, mas principalmente para dissipar a imagem de ambiente hostil a mulheres e minorias --onde profissionais talentosas eram deixadas de fora das decisões criativas simplesmente porque eram jovens e bonitas e Lasseter não conseguiria se controlar perto delas, como relatam algumas das fontes que falaram a uma reportagem da revista “The Hollywood Reporter”.

Kelly Sullivan/Getty Images for The Walt Disney Family Museum Kelly Sullivan/Getty Images for The Walt Disney Family Museum

De bonachão a persona non grata

Um dos fundadores da Pixar, Lasseter era visto pelo mundo aqui fora como um cara bonachão, que vestia camisas com estampas divertidas e tinha um dedo em todos os filmes do estúdio, incluindo sucessos como “Procurando Nemo” e “Carros”. Com a compra do estúdio pela Disney em 2006, ele havia se tornado chefe criativo das animações das duas casas, e era creditado como responsável por reerguer a Walt Disney Animations, que então amargava uma série de resultados ruins.

Durante sua licença de seis meses, que teoricamente termina no próximo dia 21, os detalhes que emergiram na imprensa especializada pintaram uma imagem bem diferente: um homem conhecido por abraços, toques e avanços inapropriados e indesejados em suas colegas e subordinadas, que bebia excessivamente inclusive em eventos de trabalho, centralizador, e sob acusações de se apropriar de ideias de outros profissionais. Comportamentos que só não se tornaram públicos antes por medo (já que a animação é uma indústria bastante pequena) e pelo trabalho árduo de executivos para proteger seu grande “tesouro” criativo.

O nome do antigo chefe não chega a ser assunto proibido no estúdio, mas também não surge espontaneamente na boca de nenhum envolvido na produção de “Os Incríveis 2” (no cinema em 14 de junho) com quem a reportagem do UOL conversou durante visita à sede da Pixar. E, ao contrário de uma visita anterior (em 2015, antes do lançamento de “Divertida Mente”), desta vez os jornalistas não foram apresentados à enorme coleção de brinquedos que decoravam a folclórica sala de Lasseter.

Fora isso, o clima é de normalidade e tranquilidade. E, assim como do lado de dentro, do lado de fora analistas também parecem pouco preocupados com o futuro da empresa sem o cineasta.

“John teve muita influência neste lugar, muita influência boa. Ele teve muita influência neste filme”, disse Brad Bird, diretor de "Os Incríveis 2", provavelmente o último filme do estúdio a ter o nome de Lasseter como produtor.. “Mas a Pixar vem mudando desde o momento em que foi criada. Muda todos os anos. A mudança é algo normal. Então, mudanças vão ser uma constante aqui. Acho que muitas das mudanças o agradariam muito”, acredita o cineasta responsável também pelo primeiro “Os Incríveis” e por “Ratatouille”.

Nós não estivemos em contato com ele, ele está fazendo o que precisa fazer.

Brad Bird

Brad Bird, diretor de "Os Incríveis 2", sobre o período sabático de Lasseter

Damian Dovarganes/AP Damian Dovarganes/AP

O futuro da Pixar

Marc Flores/Pixar Marc Flores/Pixar

Novos líderes

Entre as prováveis mudanças estão o surgimento de novas lideranças, nutridas pelo próprio Lasseter, mas que até então viviam sob a sua sombra.

“Não tendo John, acho que vai abrir muitas oportunidades para quem já estava aqui e tinha qualidades”, acredita o animador brasileiro Cláudio de Oliveira, que trabalha na Pixar desde 2013 e participou de projetos como “Os Incríveis 2”, “O Bom Dinossauro” e “Divertida Mente”.

O peso dele era muito grande. Mas ele já estava fazendo aquele trabalho [de chefe criativo dos dois estúdios] há muito tempo, então já tinha disseminado as suas ideias para muitas pessoas. A gente já via esse cuidado de ter outras lideranças mesmo antes de isso explodir.

“Quanto a isso, não estou muito preocupado. Acho até que vai diversificar um pouco as ideias que saem do estúdio. Porque se é uma pessoa sempre avaliando as ideias, isso acaba moldando as produções para o gosto daquela pessoa”, avalia.

Entre as lideranças que são mencionadas pela imprensa como possíveis sucessores de Lasseter, um nome tem se destacado: “Pete Docter, que a gente adora”, aposta Cláudio, referindo-se ao diretor de “Divertida Mente”, “Up: Altas Aventuras” e “Monstros S.A.” e membro do conselho criativo da Pixar (na foto à dir.).

Reprodução

Abrindo portas

Em paralelo, outras iniciativas vêm sendo desenvolvidas por lideranças do estúdio para abrir mais espaço para a diversidade, e os primeiros resultados começam a aparecer: além de “Viva”, primeira produção da Pixar com um protagonista latino, o curta que acompanhará “Os Incríveis 2” nos cinemas é o primeiro dirigido por uma mulher --a chinesa radicada no Canadá Domee Shi, que em "Bao" conta a história de uma mãe chinesa sofrendo de síndrome do ninho vazio.

“Acho que produzir esse curta é um bom exemplo de como a Pixar está explorando vozes diferentes para contar histórias. Me sinto muito honrada de ser a primeira, e espero não ser a última”, diz Shi, que recebeu incentivo justamente de Docter para ir em frente com seu projeto.

“Estou muito animada por Domee dirigir 'Bao'”, diz a produtora de “Os Incríveis 2” Nicole Paradis Grindle, há 23 anos na Pixar. “Ela foi uma entre um grupo de mulheres que uma colega e eu começamos a orientar há quatro anos”, conta.

“Eu realmente acredito que existe uma discriminação inconsciente, que influenciou o que aconteceu na indústria e, para ser franca, no mundo todo”, continua Grindle. “Não é que as pessoas fechem as portas para outros tipos de contadores de histórias, elas não pensem em abri-las. Então, nos últimos anos, nós estamos realmente abrindo essas portas e nutrindo muitos novos talentos”, relata.

O diretor Brad Bird concorda que são necessárias ações para que haja mudança. “Hollywood não se importa muito [com diversidade], contanto que eles tenham lucro. Hollywood é tão intelectualizada quanto um tubarão. Quer comer comida, e vai onde a comida estiver. Isto dito, Hollywood também é apegada ao status quo, como a política e qualquer outra área. Então, se queremos que isso mude, temos que entrar em campo e lutar”, acredita.

Deborah Coleman/Pixar Deborah Coleman/Pixar

Sobremesa deliciosa

E se antes muitas mulheres e minorias eram excluídas dos espaços onde ideias eram discutidas, hoje, diz Grindle (na foto, à esq., com o diretor Brad Bird e o produtor John Walker), elas recebem orientações de mentores e são convidadas a se expressar em grupos com pessoas parecidas com elas, de origens diversas.

“Muito do trabalho é apenas dar apoio uns aos outros e dar voz a essas ansiedades e preocupações, e então eles se sentem corajosos o suficiente para dar um passo à frente. E como eu disse, acho que o fato de o estúdio agora estar atento está abrindo essas portas”.

Parece um momento bastante conveniente para divulgar as mudanças, mas, ao que tudo indica, as iniciativas não são recentes e datam de antes do escândalo com Lasseter. “Bao”, por exemplo, começou a ser desenvolvido em 2015, e mesmo Grindle conta que teve seu “clique” há quatro anos, quando teve algum tempo ocioso para refletir e decidiu que queria fazer algo para levar mais mulheres à direção e às equipes de roteiro das animações da Pixar.

Temos algumas mulheres incrivelmente talentosas que, por uma razão ou outra, não progrediram. Era aquela discriminação inconsciente, eram elas mesmas se sabotando por não verem pessoas como elas nessas posições.

"Na verdade, em quatro anos, estou impressionada com quantas mudanças aconteceram. Parte disso vem do mundo lá fora, e parte foi interno. Apenas foi preciso sentar, ter essa conversa e abrir essas portas, e talvez essas pessoas tenham se sentido mais corajosas, empoderadas e apoiadas”, acredita.

E continua: “E uma vez que você vê alguém que parece com você e soa como você dirigindo um filme, é mais fácil dar um passo e conseguir se ver nesse papel”.

O brasileiro Cláudio concorda: “Mesmo que você tenha vontade, acredite em você mesmo, se não vê ninguém fazendo, é difícil. Quando você vê as pessoas chegando aqui, expondo as ideias que têm, ou tendo as chances que estavam tentando, fica mais fácil”, diz o animador, ao lembrar como foi inspirador ver o também brasileiro Leo Matsuda dirigir na Disney o curta “Trabalho Interno”, exibido nos cinemas com “Moana”.

“Nós todos chegamos à mesma conclusão”, pondera o também produtor de “Os Incríveis 2” John Walker. “Precisamos de mais mulheres e pessoas de outras etnias dirigindo e escrevendo estes filmes. Porque serão filmes melhores”.

“Você faz parecer que estamos falando de brócolis”, brinca o diretor Brad Bird. “Deveríamos dizer: 'Porque vai ser delicioso!'. Como 'Viva', como 'Bao'! Vai ser maravilhoso, vamos comer! Vai ser uma sobremesa deliciosa!”, conclui, arrancando gargalhadas dos colegas.

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