O marginal sensível

5 anos após a morte de Chorão, o posto de último grande ídolo do rock brasileiro segue intocado

Maurício Dehò Do UOL, em São Paulo

Quarta-feira, 6 de março de 2013. Há cinco anos, a notícia da morte de Alexandre Magno Abrão, o Chorão, pipocou no noticiário logo nas primeiras horas da manhã e chocou o país. Vocalista e líder do Charlie Brown Jr., ele foi encontrado morto em seu apartamento em São Paulo, encerrando uma vida dedicada à banda que se transformou no maior nome do rock brasileiro da sua geração. Seis meses depois, o parceiro de décadas, o baixista Champignon, tirou a própria vida. 

Sem Chorão, os fãs já haviam perdido um ícone. Sem Champignon, a banda inteira se desfez. Os guitarristas Marcão e Thiago tomaram rumos próprios, e Renato Pelado se afastou da cena musical.

Passados cinco anos, nem Chorão nem Charlie Brown Jr. perderam sua relevância. O posto de último grande ícone do rock brasileiro segue intocado.

De repente...

Como pode tudo mudar / Em um segundo, nem pensar

Chorão, em trecho de "Tudo Mudar", do disco "Nadando com os Tubarões"

Kleide Teixeira/Folha Imagem Kleide Teixeira/Folha Imagem

A origem do ícone

Os três discos de platina e os seis discos de ouro que o Charlie Brown Jr. conquistou entre 1997 e 2005 já falam por si só sobre o sucesso que a banda alcançou. Mas foi a identificação de Chorão com o público jovem que transformou o vocalista e seus companheiros em fenômenos. 

"O Alexandre tinha uma alma eternamente jovem e era uma pessoa extremamente autêntica", diz Graziela Gonçalves, viúva de Chorão. "Ele não queria ser igual a ninguém, não tinha pudor de se colocar inteiramente naquilo que ele escrevia, e falava a língua da galera."

Não havia distinção entre Alexandre e Chorão: o skatista que subia no palco para cantar vivia o Charlie Brown Jr. intensamente e se colocava nas letras, muitas delas autobiográficas, como "Confisco", contando o dia em que foi despejado. 

Marcão, que tocou nos discos de maior sucesso da banda, explica essa relação.

As letras de Chorão são muito profundas e têm uma verdade muito grande. E a verdade tem poder. 

Di Ferrero, fã da banda antes de montar seu NX Zero e depois amigo de Chorão, concorda. "As letras dele, a atitude e o estilo de vida, da mesma forma que deixavam a galera entusiasmada em ir atrás das coisas, davam a impressão de que ela era do nosso time. Ele não falava para agradar, era muito sincero. Era tudo muito visceral. Eu me identificava com tudo isso."

Marginal alado, louco, vagabundo. Chorão contava a história de tantos brasileiros que correm atrás do sonho por uma vida inteira. Ele realizou o seu, fez história na música, mas a fama teve seu preço.

Transcendendo gerações

"É surpreendente como até hoje tem uma renovação do público do Charlie Brown", observa Marcão.

Um dos trunfos da banda foi ter ficado em alta tempo o suficiente para transcender a geração que a acompanhou lá no começo, em meados de 1997. Do sucesso inicial com "Proibida Pra Mim (Grazon)" e "O Coro Vai Comê!", passando pelo estouro de "Papo Reto" e "Rubão" até chegar a hits mais recentes como "Dias de Luta, Dias de Glória", passaram-se oito anos. A geração MTV já havia sido reciclada.

E, mesmo com lançamentos menos relevantes na metade final da carreira, os clássicos parecem não ter cansado os fãs, a ponto de o Charlie Brown Jr. se manter em alta nas listas de bandas de rock mais ouvidas nos últimos anos.

No Spotify, em 2017, o grupo foi o mais ouvido entre os artistas de rock, à frente de Nando Reis, Legião Urbana, Skank e Capital Inicial, respectivamente. Cenas posteriores ao do Charlie Brown, como o hardcore de bandas como CPM 22, o emocore do NX Zero e o happy rock do Restart, não chegaram ao mesmo patamar e nem criaram ídolos tão expressivos.

Carlos Eduardo Miranda, produtor de inúmeros artistas e jurado em programas como "Ídolos", acredita que hoje não há espaço para ídolos da magnitude de Chorão.

O tempo de hoje não comporta um cara como Chorão. O papel do herói está diluído e não existe mais o 'grande público'. Fora sertanejo e funk, o que existe é o nicho. O rock é nicho, a MPB é nicho. Eles foram a ponta de um iceberg, de uma geração inteira que, antes deles, era desprezada. 

Musicalmente, o Charlie Brown Jr. arrebatou com uma mistura enorme de estilos. Começaram tocando metal à la Suicidal Tendencies, passaram a cantar em português e misturaram ao rock doses de ska, rap e hardcore. O Raimundos havia desbravado o mundo do rock nacional. O Charlie Brown rompeu as barreiras rumo ao mainstream. 

O Charlie Brown trouxe uma identidade. Ele foi influenciado pelos seus contemporâneos, Raimundos, Planet Hemp, mas conseguiu absorver aquelas influências e traduzir dentro de uma linguagem completamente própria. Isso é um mérito que não se pode tirar.

Grazi

Como Chorão estaria hoje?

"Ele ia estar bem feliz com o funk! Ia até incorporar ao Charlie Brown", diz Grazi

Eu já fiz a guerra, eu já fiz a paz / Eu sou o lixo e sou o luxo, sou o ódio e sou o amor

Chorão, em "O Lixo e o Luxo", do disco "Tamo aí na Atividade"

Vícios e virtudes

Chorão não era fácil. Mas dualidade entre sensibilidade e jeito explosivo moldaram o artista

João Sal/Folhapress João Sal/Folhapress

Grazi, víuva de Chorão

"O apelido Chorão era apropriado, ele não tinha medo de chorar. Por mais que seja complicado lidar com esse lado sensível, ele é essencial para qualquer artista. Sem essa sensibilidade aguçada, fica mais difícil sentir, ter inspiração, escrever sem o ego te barrar. Tenho certeza de que contribuiu para ele escrever as coisas que escrevia."

Nelson Peixoto/Divulgação Nelson Peixoto/Divulgação

Marcão, guitarrista do CBJr

"A gente se conhecia bastante, eu sabia quando ele não estava bem. Mas ele tirava proveito dessas coisas, como combustível valioso para ele fazer o que fez. A vida não é só feita de felicidades, sabe? É nos momentos mais difíceis que a gente aprende. Ele passou por dias difíceis e traduziu isso como arte dentro da banda."

Marco Dutra/UOL Marco Dutra/UOL

Digão, do Raimundos

"Ele tinha um coração enorme, mas tinha os momentos dele, em que... não sei, tinha alguma coisa dentro dele que machucava muito. Presenciei isso. Passamos até um tempo sem nos falar, depois que discutimos em uma jam session. Mas ficou tudo bem. O Chorão tinha muita coisa para dizer. Ele e o Charlie Brown fazem falta."

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Di Ferrero, do NX Zero

"As pessoas acham que o artista tem que ser aquele cara perfeito o tempo inteiro. É legal quem consegue ficar sem misturar a vida pessoal com a vida artística, mas não era o caso dele. Era tudo uma coisa só. Ele nem pensava nisso, só ia. Esse jeito do Chorão o humanizava"

Meu estilo de vida, liberta a minha mente / Completamente louco, mas um louco consciente

Chorão, em "Tamo Aí Na Atividade", no disco homônimo

Reprodução/Facebook Reprodução/Facebook

Parceiro do estúdio

"Ele era um cara muito bonzinho, mas não gostava que eu falasse isso"

O produtor musical Agildo Lasaro, ou Lampadinha, trabalhou em boa parte dos discos do Charlie Brown Jr. E não era fácil. "As gravações eram um evento, ia uma galera", lembra ele. Para músicos e convidados, havia comes, bebes e muita diversão. Para quem estava na mesa de gravação, era complicado. Lampadinha se internava com a banda no estúdio, e viu das explosões de alegria às brigas --além de puxar a orelha de Chorão quando precisava.

"O Chorão era um cara com um coração gigantesco. Mas, dependendo de quanto ele bebia, ou usava isso ou aquilo, aflorava o que ele estava sentindo. Se ele estava amoroso, potencializava. Por isso que, em alguns momentos, ele explodia, brigava e xingava, mas era tipo irmão: dorme, volta, e parece que não aconteceu nada", conta o produtor. 'Ele fazia umas lambanças doidão, mas passava um pano quando estava careta. Você ficava puto, e depois falava: 'Tá bom, Chorão, vamo lá'. O Champignon também era superbonzinho, uma criança explosiva. O que aconteceu com os dois foi um acidente de percurso. Deu merda, derrapou, fodeu". 

Lampadinha credita a ligação de Chorão com o público à sua autenticidade. "Ele andava com um caderno, zoado, de brochura, e de repente rolava uma frase que soava bem, do cotidiano, e ele falava: 'Peraí, deixa eu anotar esse bagulho'. Depois, ia para o estúdio, sem letra, e abria esse caderno, juntava uma coisa com outra, criava. Fazia na hora, era surreal. Tipo: 'Meu escritório é na praia'. Tem umas sacadas que você identifica imediatamente."

Um ídolo cansado

Chorão tinha 27 anos quando começou a fazer sucesso, na época do lançamento do primeiro disco do Charlie Brown Jr., "Transpiração Contínua Prolongada". A banda ralou pelo menos cinco anos no underground, buscando espaço e moldando o som que lhe deu fama.

"Eu lembro dele, com uns 42 anos, dizendo: 'Pô, eu tô cansado, cara'", conta Di Ferrero, do NX Zero. Grazi, companheira dele, sentia o mesmo. Não era só um cansaço físico.

Ele tinha uma questão com ele mesmo, de saber que era exemplo para muita gente e de saber que não era perfeito, que tinha dias que ele não queria fazer show, que estava com problemas familiares, que estava de saco cheio, que estava cansado. Mas ele tinha de subir lá e ser o Chorão. E isso era um peso grande às vezes, principalmente no fim.

À época da morte de Chorão, Grazi tentou interná-lo para tratar o vício em cocaína, mas sem sucesso. "Dentro da minha posição, fiz tudo que eu podia. Usei todos os artifícios: brigar, ir embora, fazer birra, voltar, ser compreensiva. E até tentativa de internação. Lógico que ele não ia querer. Mas talvez funcionasse", pondera.

Grazi conta que só conseguiu se ver fora do luto da morte de Chorão há um ano, apesar de seguir sendo difícil. "Às vezes estou no carro e toca Charlie Brown. Pra mim ainda é difícil escutar. Muito".

Grazi, Marcão e amigos falam do convívio com Chorão

Quem era próximo sabia: não era fácil lidar com o líder do Charlie Brown

Se quiserem me internar, não deixem / Deixem-me exercer minha loucura em paz

Chorão, em "Liberdade Acima de Tudo", do disco "Imunidade Musical", de 2005

Reprodução/Facebook Reprodução/Facebook

A perda do parceiro

A morte de um ícone como Chorão já foi chocante. Mas Champignon ter tirado a própria vida, seis meses depois, fez da história do Charlie Brown Jr. uma das mais tristes do mundo do rock. "Sabe quando você está levantando, toma uma porrada e cai de novo? Foi mais ou menos isso para mim", relembra Grazi.

A viúva de Chorão conta que os dois eram como irmãos, tanto no amor quanto nas brigas. Lampadinha confirma: "Eles brigavam, saíam na mão, se davam uns tapas e depois estavam se beijando de novo. Dois irmãos de gênio forte, era uma relação muito forte tanto para o amor quanto para a discussão".

Champignon era peça fundamental no sucesso do Charlie Brown Jr., com sua presença de palco, a divisão nos vocais e beatbox e um talento único no baixo. Ele e os parceiros do grupo tentaram voltar à ativa com a banda A Banca após a morte de Chorão, mas em 9 de setembro de 2013 Champignon foi achado morto.

Luto duplo

O Chorão tinha adoração pelo Champignon, ele o admirava muito. E como em toda relação muito próxima, existem conflitos, principalmente quando eles têm um temperamento muito parecido. O Champs era quem batia de frente e aquilo criava conflito, inevitavelmente. Mas o Champignon realmente era o parceiro do cara.

Grazi

Grazi, viúva de Chorão

A gente tinha acabado de perder o Chorão, estava completamente sem chão, mas estava tentando manter a banda, pensar em algo para fazer naturalmente. (Foi) Mais uma vida ceifada no meio desse turbilhão de coisa. E de forma inexplicável, a meu ver, porque o Champignon era um cara super alto astral. Triste demais.

Marcão

Marcão, hoje guitarrista da banda A Bula

Eu sofri muito. Quando vejo o que passei na gestação [ela estava grávida de cinco meses na época], me admiro. Eu tinha uma força maior, a filha que estava esperando. No ano passado, e ela já com 2 anos, senti que caiu a ficha. Tive síndrome do pânico, depressão, mas busquei ajuda e agora entendi que essa é minha realidade e que tenho de seguir a vida com sabedoria e fé.

Claudia Bossle

Claudia Bossle, cantora, viúva de Champignon e mãe de Maria Amélia

Saudades: O que você diria se Chorão estivesse aqui hoje?

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Viúvas preparam livro e filme

Tanto Grazi quanto Cláudia Bossle preparam materiais para manter viva a memória de seus ex-companheiros. Para o primeiro semestre deste ano, Grazi lançará uma biografia contando sua história com Chorão e também passando por tudo o que ele viveu na banda --e, por tabela, ela também. O livro já tem título: "Se Não Eu, Quem Vai Fazer Você Feliz", trecho da música "Proibida Pra Mim (Grazon)", que o cantor compôs para ela.

Grazi recusou propostas logo após a morte de Chorão. Só aceitou quando, abordada pela editora Companhia das Letras, teve a garantia de que teria liberdade para contar a história do jeito que lhe fosse mais confortável. "Esse livro foi a melhor terapia que eu poderia ter feito. Eu achava que estava bem, mas só de um ano para cá que eu realmente começo a me sentir voltando para mim, voltando a ser a Graziela que eu era", conta ela, que voltou a morar no apartamento onde viveu com o músico e namora outra pessoa há cerca de dois anos.

"O livro é importante, para eu olhar para essa história, entender, perdoar, me perdoar, olhar as coisas com generosidade, alegria e com orgulho, principalmente. É uma história de vitória. E o Alexandre era um ser humano. O fato de ele ter sido um cara forte, determinado, não deixava ele imune às falhas e problemas. No livro, faço questão de humanizar o ídolo". Grazi promete histórias inéditas, principalmente do começo do CBJr. E, apesar de admitir que toca em pontos delicados, diz que não vê motivos para gerar polêmicas nele.

Já Cláudia tem um projeto mais embrionário de um filme retratando a amizade de Chorão e Champignon e também sua relação com o baixista. O cineasta Gabriel Mellin vem colhendo depoimentos da cantora para que eles cheguem a um roteiro. O nome provisório é "Só Os Loucos Sabem", título de um sucesso da banda.

"Tanto a história dele com o Chorão quanto a minha com o Champignon são intensas. Por que não contar para os fãs a relação de amor que existia entre eles? E a minha também, que foi cinematográfica. Nos relacionamos por um tempo, depois nos separamos e eu fui morar em Dubai. Mais tarde, voltamos a nos falar e resolvemos ficar juntos. Foi tudo muito intenso, larguei tudo, voltei escondida dos meus pais, porque sabia que eles iam condenar, e fomos morar juntos, em Santos".

Por onde andam os músicos da formação original?

  • Marcão

    Além de tocar guitarra, Marcão é o vocalista da banda Bula, que prepara seu segundo disco. Ele também faz shows tributo ao Charlie Brown.

    Imagem: Arquivo Pessoal
  • Thiago Castanho

    Como Marcão, Thiago toca em shows com homenagem ao CBJr. e tem sua banda autoral, O Legado, em que toca guitarra e canta.

    Imagem: Francisco Cepeda e Orlando Oliveira/AgNews
  • Renato Pelado

    Afastado da cena musical, o baterista é frequentador da igreja Bola de Neve, onde dá seus testemunhos sobre sua vida pós-Charlie Brown Jr.

    Imagem: Reprodução/Youtube

Livre pra poder sorrir, sim / Livre pra poder buscar o meu lugar ao sol / Um dia eu espero te reencontrar numa bem melhor / Cada um tem seu caminho

Chorão

Chorão, em "Lugar ao Sol", no disco "100% Charlie Brown"

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