Dominação pelo carisma

"Figuras míticas têm poder demais, é perigoso", diz Steven Levitsky, autor de "Como as Democracias Morrem"

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo
Fábio Motta/Estadão Conteúdo

O cientista político norte-americano Steven Levitsky, um dos autores do best-seller "Como as Democracias Morrem" (ed. Zahar), acompanha os recentes passos da política brasileira com preocupação. Para o professor da Universidade Harvard, a ideia de "mito", como parte do eleitorado identifica o candidato Jair Bolsonaro (PSL), é perigosa justamente porque personalidades míticas se apropriam do carisma para liderar, transformando-se em autoritários.

O conceito de dominação pelo carisma foi desenvolvido pelo sociólogo Max Weber no começo do século 20 para descrever lideranças fundadas na figura de quem comanda, no culto à personalidade de uma pessoa que corresponderia às expectativas sociais. É a ideia de dominação pelo carisma que explica a obediência a Adolf Hitler na Alemanha nazista, a Benito Mussolini na Itália fascista e, mais recentemente, ao ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, ao ex-presidente argentino Juan Domingo Perón e até mesmo ao ex-presidente brasileiro Getúlio Vargas.

"Personalidades míticas têm poder demais. E isso abre caminho para que os cidadãos aceitem que o presidente governe de um modo fora da legalidade, dando a ele mais poder", afirma o autor em entrevista ao UOL por telefone.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Mito é poder

De acordo com Levitsky (foto), nem todos os autocratas --governantes cujo poder é absoluto, arbitrário e tirano-- são vistos como mitos. Entre os exemplos desse estilo citados pelo pesquisador estão o ex-presidente Alberto Fujimori, no Peru; Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, e Viktor Orbán, na Hungria.

O professor lembra ainda que nem todos os eleitores votam em um autocrata com a consciência de que estão elegendo um líder autoritário. No caso brasileiro, segundo a avaliação de Levitsky, a maior parte dos eleitores de Jair Bolsonaro na verdade está votando contra o PT (Partido dos Trabalhadores).

"Há alguns brasileiros que votam em uma figura autoritária. Há outros que votam em um populista. Bolsonaro é alguém de fora da elite política e sabe que a classe política brasileira é muito impopular. E muitos brasileiros votam nele pelas promessas populistas de que essa elite será esmagada", diz o cientista político.

"O problema é que, quando você vota em um populista, pode eleger um autoritário. Foi exatamente o que aconteceu na Venezuela, por exemplo. Mas, por causa da grande polarização, o que a maioria dos brasileiros está fazendo é votar contra o PT mesmo sem gostar ou concordar com o que Bolsonaro defende. Ou seja, não é verdade que mais da metade da população está votando pelo autoritarismo."

O autor de "Como as Democracias Morrem" afirma ainda que os eleitores têm visões diferentes do que é uma democracia, por isso votar em um líder com aspirações antidemocráticas não é exatamente a mesma coisa que ser contra o sistema democrático.

"Quando cientistas políticos falam de democracia, estão falando da democracia liberal, que não significa somente a realização de eleições e a vontade da maioria, mas também de restrições institucionais. Isso significa que o presidente não pode governar como um ditador e assegura a ampla proteção básica dos direitos humanos e civis. Mas este entendimento da democracia não é de todos", diz o autor.

Muitas pessoas acham que a democracia é somente a vitória da maioria. O que a maioria disser. Então, se a maioria quer Bolsonaro, isto é democracia. E, se Bolsonaro quer matar gays, isto é democracia

Levitsky acredita ainda que, justamente porque muitos eleitores de Bolsonaro não concordam com o que ele defende, o candidato do PSL não terá uma vida fácil caso seja eleito. "Existem muitos eleitores brasileiros que não gostam e não confiam nele."

"Um governo Bolsonaro poderia ser parecido com o de [Fernando] Collor [1990-1992]. Mas é muito difícil saber o que esperar de um governo dele. Bolsonaro poderia mostrar-se politicamente inapto e isolar-se, sendo politicamente derrotado pela oposição", analisa Levitsky.

"Outro cenário, muito pior, é se Bolsonaro decidir realmente começar a atacar as organizações criminosas, como o PCC, por exemplo. Isso pode significar uma erupção da violência. E Bolsonaro pode usar esta violência como desculpa para começar a suspender ou evitar liberdades constitucionais e mover-se em uma direção autoritária, usar a crise como uma justificativa para concentrar e abusar do poder. E isso seria bem feio."

Quem são os citados por Levitsky

Juan Barreto/AFP/Getty Images Juan Barreto/AFP/Getty Images

Hugo Chávez

Foi visto como herói após uma tentativa frustrada de golpe de Estado dada por oficiais de baixa patente em meio a uma crise econômica na Venezuela. Outsider político, nunca tinha ocupado cargo público e contou com o apoio de Rafael Caldeira. O ex-presidente se apoiou na base antissistema de Chávez para se eleger e retirou todas as acusações contra ele, transformando-o em um candidato viável. Chávez foi eleito em 1998. Desde então, sua orientação política lidera a Venezuela, hoje sob o comando de Nicolás Maduro.

Jaime Razuri/AFP Jaime Razuri/AFP

Alberto Fujimori

Lançou seu próprio partido em 1990 e candidatou-se à Presidência do Peru em uma tentativa de tornar seu nome conhecido e, um dia, tentar uma cadeira no Senado. Diante de uma crise em que os peruanos não confiavam nos partidos estabelecidos, muitos acabaram votando no candidato, cujo principal slogan era "Um presidente que gosta de você". Fujimori, um outsider político, capitalizou o discurso antiestablishment e venceu. Durante sua Presidência, dissolveu o Congresso (de maioria opositora) e a Constituição.

Huseyin Aldemir/Reuters Huseyin Aldemir/Reuters

Recep Erdogan

Figura do islamismo político na Turquia, Recep Tayyip Erdogan foi primeiro-ministro entre 2003 e 2014, quando se tornou presidente, cargo que ocupa até hoje. Reformou o sistema político, adotando o presidencialismo --dando ao próprio Erdogan mais poderes. Usou ainda uma tentativa de golpe para declarar estado de emergência e expurgar opositores de cargos públicos. Também fechou jornais e prendeu milhares de juízes e promotores. Ainda pode tentar a reeleição ao cargo em 2023.

Akos Stiller/The New York Times Akos Stiller/The New York Times

Viktor Orbán

O atual primeiro-ministro da Hungria governou o país com democratas liberais entre 1998 e 2002. Ao assumir o cargo novamente em 2010, passou a adotar posturas autoritárias e hoje é considerado um representante da extrema-direita e do discurso anti-imigração europeu. Reescreveu a Constituição, adotando regras eleitorais que favoreceram seu partido, o Fidesz, com o redesenho dos distritos eleitorais, e mudou a composição da procuradoria, do Tribunal de Contas e da Corte Constitucional.

Bullit Marquez/AP Bullit Marquez/AP

Semelhanças com propostas de Duterte

Nem Donald Trump, Chávez ou Fujimori. Para Levitsky, não existe uma comparação perfeita com Jair Bolsonaro. Mas o político que mais se assemelharia ao candidato do PSL, que lidera as pesquisas no Brasil, é Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, que foi eleito em 2016 com a principal promessa de matar traficantes. 

A polícia das Filipinas estima que, desde que Duterte assumiu o poder, cerca de 4.500 "usuários de drogas e traficantes" foram mortos em operações de repressão com o uso legítimo da força. Mas, segundo grupos de direitos humanos como a ONG Human Rights Watch, mais de 12 mil pessoas morreram na guerra às drogas de Duterte --a maior parte executada por policiais.

Duterte diz que "assassinatos extrajudiciais" foram cometidos sob o seu governo. O presidente filipino ainda tem o apoio da maioria da população (75% atualmente), mas sua aprovação tem caído por causa do aumento da inflação.

"A comparação entre Duterte e Bolsonaro é muito próxima. Parte do apelo de Bolsonaro é a promessa de uma linha dura contra o crime violento, como uma resposta a preocupações e medos legítimos dos cidadãos brasileiros sobre o medo, a criminalidade e a violência no Brasil", diz Levitsky.

"Duterte ganhou a Presidência das Filipinas ao prometer muito abertamente que combateria o crime, como Bolsonaro tem feito, que deixaria de lado o Estado de Direito, as normas de direitos humanos e civis e que esmagaria os criminosos e marginais sociais, incluindo opositores", acrescenta.

"Muitos autocratas têm grande apoio da população, pelo menos no começo de seus governos. Fujimori tinha 80% de apoio no Peru quando acabou com a democracia, em 1992. Erdogan tem muito apoio na Turquia hoje. O presidente filipino, Rodrigo Duterte, tem grande apoio. O presidente russo, Vladimir Putin, tem muito apoio. Muitos autocratas ganham o apoio da população pelo menos no começo de seus governos. E isso os torna ainda mais perigosos", diz Levitsky.

Para o autor americano, as promessas de Bolsonaro, algumas vezes implícitas, algumas vezes feitas abertamente, são as de que ele não será constrangido pela Constituição, pela lei ou pelas normas de direitos humanos e civis. "Isto é o que Duterte prometeu e é o que Duterte fez. Ele fez exatamente o que prometeu. E meu medo é que Bolsonaro faça exatamente o que está prometendo e, se o fizer, não será punido. Será o fim da democracia brasileira."

Lalo de Almeida/The New York Times Lalo de Almeida/The New York Times
Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

A irresponsabilidade das elites

Em sua obra, Levitsky defende que os partidos políticos são os guardiões da democracia, responsáveis por isolar forças extremistas, distanciando-se de políticos autoritários, erradicando radicais de suas bases, evitando alianças com grupos antidemocráticos, isolando-os e criando uma frente única para derrotá-los.

Mas, segundo o professor de Harvard, como no Brasil os partidos políticos são muito fracos, é possível que um outsider como Fernando Collor de Mello seja eleito, como ocorreu em 1989, ou que Bolsonaro, que pertencia a um outra legenda maior, o PP, concorra à Presidência por um partido pequeno, como o PSL, e vença. "A elite política e a econômica, todos têm muita responsabilidade nisso. É responsabilidade deles manter uma figura autoritária fora do poder quando ela emerge", afirma Levitsky.

A elite política fez um bom trabalho tentando isolar Bolsonaro no primeiro turno no Brasil. Mas agora, no segundo turno, ela está falhando miseravelmente. Muitas lideranças políticas, econômicas e midiáticas estão abraçando Bolsonaro

Para Levitsky, a saída estaria na união de múltiplos partidos e figuras políticas de prestígio, as quais ele considera omissas no caso brasileiro. Ele usa o exemplo americano para justificar sua opinião: "Nos EUA, na campanha de 2016, o ex-presidente George W. Bush, que é um republicano que não apoiou Trump, não votou em Trump e não acreditava que Trump estava apto para ser presidente, deveria ter se levantado publicamente e apoiado Hillary Clinton em nome da democracia. Ele permaneceu em silêncio e falhou em suas responsabilidades de proteger a democracia".

O mesmo acontece hoje no Brasil com Fernando Henrique Cardoso. Ele me disse que, se existisse uma disputa entre Fernando Haddad e Bolsonaro no segundo turno, ele apoiaria Haddad publicamente, mesmo sendo muito crítico ao PT. Faria isso para defender a democracia. Mas ele declarou somente sua neutralidade. Quando a democracia está ameaçada, você é responsável pela defesa dela

Steven Levitsky, cientista político

Bruno Poletti/Folhapress Bruno Poletti/Folhapress

A união pela democracia

Para o autor, a união de diferentes correntes políticas no Brasil seria mais fácil se o PT se esforçasse mais para ganhar apoio. "Acredito que o PT não tenha noção da profundidade da crise que enfrenta. O PT não percebe que precisa fazer mais concessões para convencer seus rivais de que é confiável", diz. 

De acordo com Levitsky, seria preciso criar uma grande frente democrática que representasse não só o PT. "O partido precisaria ter uma plataforma de governo que representasse o centro e a centro-direita, deixando de lado muito de sua plataforma de esquerda. Seria preciso incluir ainda as forças políticas e econômicas necessárias para tirar o país da crise. Ao fazer isso, o partido poderia voltar a ganhar a confiança do eleitor brasileiro, mostrar que aprendeu com os erros do passado. Hoje, o brasileiro não confia no PT e não acha que o partido pode governar o país."

"Este é um trabalho que precisa ser feito pelos dois lados e é absolutamente essencial que essas personalidades políticas do Brasil coloquem-se publicamente em defesa da democracia e, nesta eleição, defender a democracia significa derrotar Bolsonaro", afirma. "É possível, mas a grande fragmentação e a fraqueza da atual elite brasileira dificultam a união. Nenhum lado quer se sacrificar neste momento em que a democracia está enfraquecida."

Levitsky lembra as disputas nas eleições francesas, quando, nas últimas décadas, os partidos de centro-direita e centro-esquerda se uniram contra a Frente Nacional, para impedir que a extrema-direita ganhasse a Presidência. "Isso aconteceu novamente em 2017, quando um partido conservador se aliou a Emmanuel Macron para assegurar que Marine Le Pen fosse derrotada no segundo turno. A França é que deveria ser o modelo do Brasil, não os EUA. Os americanos não conseguiram se unir", explica.

Daqui a alguns anos, podemos olhar para trás e e ver que, neste momento, os políticos brasileiros falharam em fazer o que deveria ser feito para salvar a democracia.

Márcia Foletto/Agência O Globo Márcia Foletto/Agência O Globo

O que indica um comportamento autoritário*

1. Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)

  • Os candidatos rejeitam a Constituição ou expressam disposição de violá-la?
  • Sugerem a necessidade de medidas antidemocráticas, como cancelar eleições, violar ou suspender a Constituição, proibir certas organizações ou restringir direitos civis ou políticos básicos?
  • Buscam lançar mão (ou endossar o uso) de meios extraconstitucionais para mudar o governo, tais como golpes militares, insurreições violentas ou protestos de massa destinados a forçar mudanças no governo?
  • Tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por exemplo, a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito?

2. Negação da legitimidade dos oponentes políticos

  • Descrevem seus rivais como subversivos ou opostos à ordem constitucional existente?
  • Afirmam que seus rivais constituem uma ameaça, seja à segurança nacional ou ao modo de vida predominante?
  • Sem fundamentação, descrevem seus rivais partidários como criminosos cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo) desqualificaria sua participação plena na arena política?
  • Sem fundamentação, sugerem que seus rivais sejam agentes estrangeiros, pois estariam trabalhando secretamente em aliança com (ou usando) um governo estrangeiro – com frequência um governo inimigo?

3. Tolerância ou encorajamento à violência

  • Têm quaisquer laços com gangues armadas, forças paramilitares, milícias, guerrilhas ou outras organizações envolvidas em violência ilícita?
  • Patrocinaram ou estimularam eles próprios ou seus partidários ataques de multidões contra oponentes?
  • Endossaram tacitamente a violência de seus apoiadores, recusando-se a condená-los e puni-los de maneira categórica?
  • Elogiaram (ou se recusaram a condenar) outros atos significativos de violência política no passado ou em outros lugares do mundo?

4. Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia

  • Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas?
  • Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia?
  • Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto no passado quanto em outros lugares do mundo?

* Critérios estabelecidos pelos autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em "Como as Democracias Morrem"

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