"Somos esquecidos"

Moradores da periferia de São Paulo sofrem com os problemas de sempre apesar das promessas em época de eleição

Bia Souza e Flávio Costa Do UOL, em São Paulo

Político só em época de eleição

Além do período eleitoral

As visitas surgem nos anos pares, tempo de eleições no Brasil. Os moradores da periferia de São Paulo conhecem de cor os enredos das cenas, que já se tornaram um clichê da época eleitoral: são beijos em crianças, apertos de mãos calorosos, abraços efusivos, convites aceitos para um cafezinho, mordidas em pastéis de feira, distribuição de santinhos e pedidos de colagens de cartazes nos muros das casas.

A conversa dos candidatos é recheada de promessas e soluções para os problemas que afligem as comunidades há tanto tempo. O UOL visitou quatro localidades das zonas oeste, leste, norte e sul da capital paulista. Os moradores de São Remo, rua da Conquista, Jardim Peri Alto e Olaria falaram a respeito das questões nunca resolvidas e de seu ceticismo a respeito do poder público e dos políticos.

"Em tempo de eleição, os políticos se lembram de que pobre existe. Depois que passa a eleição, se um deles te encontrar na rua, é capaz de virar a cara. Eles se esquecem da gente", diz a dona de casa Marluce Ferreira da Conceição Bispo, 50.

Conheça suas histórias e seus problemas.

Marcela Sevilla/UOL

JARDIM PERI ALTO, ZONA NORTE

Sonho de ter conta de luz

Sem lugar para brincar

Quem anda pelo Jardim Peri Alto, na zona norte de São Paulo, usa como ponto de referência o campo de futebol. O descampado de areia foi, durante décadas, um espaço divido por bolas, pipas e brincadeiras de adultos e crianças.

O cenário foi modificado em 2014, quando uma campanha publicitária transformou a área de terra batida em um espaço quase profissional, cercado por grades e com um gramado sintético bem conservado.

Ainda assim, quando se fala em área de lazer, ele nem sequer aparece na lembrança dos moradores. "Brincar aqui só se for de soltar pipa na rua", define a moradora Valéria Silva. Segundo a dona de casa, o campo é usado para campeonatos, disputados em sua maioria por adultos, enquanto as crianças encontram outras formas de se divertir pela rua, entre carros e ônibus.

As pipas também serviram de inspiração para uma ONG voltada para o lazer infantil, que funciona aos finais de semana no bairro. O Pipa (Projeto Integração Peri Alto) tenta, segundo seus idealizadores, oferecer uma opção de diversão e cultura com brincadeiras da cultura popular para crianças e orientações profissionais e educacionais para adolescentes.

Quando chegamos aqui, as crianças se divertiam jogando pedras umas nas outras. Nossa ideia é resgatar a cultura do brincar, ser criança e ter atividades compatíveis com a idade Alessandra D'Avanzo, coordenadora do projeto

O Pipa, no entanto, só funciona aos finais de semana. Para os pais que trabalham em turno integral, a opção é o Centro de Convivência para Crianças e Adolescentes, do Serviço Franciscano de Solidariedade, coordenado por frades. O local fornece refeições, atividades educacionais e passeios. O serviço tem parceria com a prefeitura e atende 120 crianças. Atualmente, há outras 140 na espera por uma vaga.

"Infelizmente não temos espaço suficiente para atender mais, nem profissionais para isso. Somos um serviço de contraturno, por isso não abrimos aos finais de semana. Na região, somos o único programa para crianças e adolescentes", explica Romulo Leandro, coordenador do setor de captação de recursos do centro.

Dividido entre construções de alvenaria e casas de madeira, o Jardim Peri Alto tem esgoto a céu aberto, ligações clandestinas de energia elétrica e poucas opções de espaço até mesmo para brincar ao ar livre. "Nós precisamos de um trabalho social, de que os políticos se lembrem daqui e pensem nas crianças", afirma o morador Gilberto Carlos Bueno.

Flávio Costa/UOL

SÃO REMO, ZONA OESTE

Mais vagas nas creches

Medo do escuro e dos ratos

Após o pôr do sol, arrisca-se a não reconhecer o rosto do vizinho quem andar por algumas ruas e vielas da favela São Remo, que faz fronteira com a USP (Universidade de São Paulo), na zona oeste. Este é um problema particularmente sensível para as mulheres da comunidade. "Dá uma sensação de insegurança muito grande quando volto do trabalho", afirma a manicure Generosa Araújo, 39.

"Tem umas partes que são bem mais escuras que as outras, mas, mesmo com iluminação pública, poderiam melhorar", diz o eletricista Jailton Gomes da Silva, 42.

A preocupação é diária. “De noite só se enxerga escuridão nas ruas. Minha filha de 13 anos chega da escola por volta das 19h e anda um bom pedaço até em casa, sem qualquer iluminação. Quando posso, eu mesmo vou buscá-la no colégio. É uma preocupação muito grande. Todos os dias”, conta o pedreiro José Carlos Jesus de Queiroz, 39.

Ele ainda aponta outra questão nunca resolvida do lugar: o recolhimento de lixo. "Difícil encontrar um dia que tenha um gari aqui. Quando chove, a água espalha toda a sujeira", afirma a cozinheira Marlene Machado, 58. Ela mora ao lado de um terreno da USP que tem sido usado constantemente como depósito de lixo. O mau cheiro se espalha, assim como os ratos.

O risco de contrair doenças é grande, principalmente as crianças. Tem gente que prefere dar a volta do que passar por aqui, com medo dos ratos  José Carlos Jesus de Queiroz, pedreiro 

Os moradores já estão calejados por promessas de candidatos na época de eleições. São mais de 20 anos ouvindo toda sorte de declarações de compromisso nunca cumpridas. "Eles vão aparecer aqui, apertar a mão de todo mundo e depois vão sumir", diz Queiroz.

Marcela Sevilla/UOL

R. DA CONQUISTA, ZONA LESTE

Existe rua sem CEP?

Da lama ao caos

A rua da Conquista tem quase 60 casas, mais de 200 moradores, porém é como se não existisse. Fruto de uma ocupação irregular, há quase duas décadas, o lugar não consta nos registros oficiais, por isso não tem CEP nem abastecimento regular de água, muito menos acesso à rede de esgoto.

"A gente cansou de ir nos órgãos da prefeitura e na Justiça para regularizar nossa situação e nada. São mais de 15 anos nessa luta. O pouco de melhorias que teve aqui é porque a gente resolveu fazer. Se dependesse do poder público ou dos políticos, a gente estava na lama até hoje", diz o líder comunitário Elias Vieira, 39.

Localizada na zona leste de São Paulo, na região da Cohab Inácio Monteiro, a rua ostenta o nome não oficial por obra e inspiração dos pioneiros do que ficou conhecida como "invasão do Bemfica", em referência à rua Barão Antônio do Bemfica, que dá acesso à Conquista.

"A gente pensou primeiro em chamá-la de Vitória, mas depois a gente percebeu que Conquista era mais adequado, porque viver aqui é uma conquista diária. Asfalto não tinha, água não tem. Aqui é um lugar muito precário", diz a dona de casa Marluce Ferreira da Conceição Bispo, 50.

Uma das mais antigas moradoras, ela lembra bem: a rua era toda de lama até quatro anos atrás. Idosos e grávidas ficavam "ilhados" nas casas de reboco à mostra, com medo de serem levados pela enxurrada ladeira abaixo.

"Aqui era bravo, o pessoal passava e, se tivesse um pouco menos de cuidado, caía no chão, se sujando, até se machucando", conta a vigilante Edneia das Graças, 44.

Outras ruas vizinhas, que também se originaram de ocupações irregulares do Bemfica, a exemplo da travessa Barão de Granosa, receberam intervenção urbana por parte dos órgãos municipais. Nenhuma melhoria foi realizada para os que moravam ao lado.

Com ajuda de um amigo que trabalhava em uma empresa que prestava serviços de recapeamento de vias à prefeitura, os moradores conseguiram improvisar uma pavimentação asfáltica, que falha ali e acolá, mas deixou a Conquista com jeito de rua. "Juntamos R$ 2.500 e pagamos por fora para ele passar o asfalto aos poucos", diz Vieira.

"Eu me sinto humilhada. O que a gente pede é para viver com dignidade. Ter acesso às mesmas coisas que outras pessoas têm", diz Rosângela Francisca, 42, uma das líderes da associação de moradores.

Marcela Sevilla/UOL

OLARIA, ZONA SUL

Uma vida de esgoto a céu aberto

Na beira do córrego

Bolinhas de gude amontoadas se dividem em três triângulos, desenhados em um campo de terra. O jogo, que parece ser organizado por faixa etária, é a principal diversão das crianças e adolescentes da comunidade Olaria, na região do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. Às vezes, uma das bolinhas acaba caindo dentro do córrego Pirajussara, que atravessa toda a extensão do terreno, o que gera correria para que ela não seja perdida.

O "campinho", como é chamado o lugar da brincadeira, é o maior espaço aberto da comunidade e é, atualmente, o único disponível para o lazer. Mas nem todos os pais defendem a opção. "Eu não deixo meu filho brincar com isso. Dá muita briga e, sempre que as bolas caem no rio, eles pulam para pegar. É o tempo de pegar uma doença", diz a dona de casa Luciene Aparecida Rosa.

Alguns metros para cima, em meio às casas de madeira, uma construção mais propícia para brincadeiras permanece vazia e acumula poças de água. É uma pequena quadra, feita de concreto, com duas traves e sem grades de segurança.

"A quadra foi construída depois de um incêndio, em 2011. A prefeitura quis ocupar aquela parte para ninguém construir outras casas, porque está perto da rede elétrica. Mas acabou cercada de barracos e nunca teve manutenção", diz Regina Ribeiro, líder comunitária em Olaria.

Cansados de esperar por melhorias, os moradores decidiram reformar a quadra, com o apoio de uma ONG. Para arrecadar os R$ 8.000, definidos como valor necessário, eles se dividiram em atividades como bazar, venda de cachorro-quente e outras mercadorias arrecadadas por meio de doações.

O filho de Luciene, Lucas, 7, é um dos mais animados com a reforma da quadra. Frequentador assíduo de ações sociais de ONGs que atendem a comunidade, ele se diz orgulhoso de fazer parte da organização do projeto. "Se você quiser ajudar, eu sei o que cada um está vendendo e que dia você pode comprar."

Rodeada por condomínios luxuosos, a própria comunidade tem características de desigualdade. Parte do terreno, ocupada há mais tempo, tem casas de alvenaria com ligações de eletricidade regular, enquanto o outro lado, constituído em sua maioria por casas de madeira, não tem ligações autorizadas de água ou luz.

A comunidade Olaria iniciou com uma ocupação no começo da década de 1980. O terreno é particular e pertence a uma companhia de energia elétrica, que já entrou com o processo de reintegração. A prefeitura estima que 264 famílias ocupem a área, considerada de alto risco. As moradias foram construídas embaixo de linhas de alta tensão da AES Eletropaulo e acima de dutos de óleo da Petrobras. 

Informados sobre a impossibilidade de continuar no terreno, os moradores aguardam por um projeto de moradia popular, relacionado ao plano de urbanização de favelas Programa Renova SP. A favela faz parte das intervenções do Perímetro de Ação Integrada Pirajussara 7, que envolvem comunidades no entorno do córrego.

"Nós estamos aguardando que a prefeitura construa moradias populares para que todos possam se mudar. Mas o projeto está atrasado porque o terreno que eles tinham está contaminado e eles ainda não têm nenhum outro em vista para isso", diz Regina Ribeiro.

O que diz o poder público

Rua da Conquista

Procurada, a Prefeitura de São Paulo afirmou apenas “que área citada é particular”. O UOL apurou que área está em litígio judicial, por isso ainda é considerada uma ocupação irregular, como consta nos arquivos da Subprefeitura do bairro Cidade Tiradentes.

No caso do CEP, os Correios afirmaram que o código só pode ser conferido a uma rua quando ela é oficializada pelo órgão municipal. Estima-se que 2,4 milhões de pessoas vivam na capital paulista em residências que não possuem Código Postal.

São Remo

A Secretaria de Serviços afirma que, durante os meses de julho e agosto, o Ilume (Departamento de Iluminação Pública) promoveu intensa intervenção na iluminação pública da comunidade São Remo. No entanto, em recente vistoria, foram registrados diversos casos de vandalismo, como luminárias destruídas por tiros e furtadas. Para sanar as irregularidades, será encaminhada uma equipe de manutenção aos logradouros oficiais da comunidade.

De acordo com a Autoridade Municipal de Limpeza Urbana, a varrição nas ruas do entorno do terreno apontado é feita uma vez por semana pela concessionária Inova. A empresa também disponibiliza uma equipe e um caminhão para a limpeza do ponto, do entorno e para a retirada de grandes objetos descartados no local. O órgão disse ser importante ressaltar que o local é um ponto de descarte irregular e que a empresa promove ações de educação ambiental e conscientização porta a porta junto aos moradores da região.

Segundo a Secretaria Municipal de Educação, o órgão firmou parceria com a USP para cessão de um terreno com o objetivo de implantar um Centro de Educação Infantil (creche), ao lado da UBS São Remo.

De acordo com a administração, será desenvolvido um projeto padrão pela Siurb (Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras), com capacidade para atender 205 crianças de zero a três anos. Após finalização do projeto, ele será submetido aos setores técnicos da universidade. A expectativa é que as obras sejam iniciadas entre o fim de 2016 e o início de 2017.

Olaria

Em nota, a prefeitura afirma que o projeto para urbanização da favela Olaria está em fase de discussão no Conselho Gestor no Perímetro de Ação Integrada Pirajussara 7. A Subprefeitura de Campo Limpo afirma que a quadra localizada na comunidade será vistoriada e, se for de sua atribuição e se constatada a necessidade de reparos, os serviços serão incluídos na programação de atividades.

Sobre parte da comunidade possuir energia elétrica regular, a AES Eletropaulo diz que, para a regularização do fornecimento de energia elétrica, as áreas passam por uma avaliação a fim de identificar se estão inseridas em áreas de preservação ambiental e de mananciais ou se não há restrição fundiária. Após a liberação dos órgãos ambientais e da prefeitura/subprefeitura responsável, a concessionária realiza a regularização da energia elétrica.

Jardim Peri Alto

Sobre o Jardim Peri Alto, a prefeitura informa que a comunidade está localizada em parte de uma área particular, de propriedade da CTEEP (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista). Para a outra parte, situada em área de preservação ambiental, a Secretaria de Habitação está em tratativas com os moradores da região. Sobre o fornecimento de energia elétrica, a administração do município afirma que é de responsabilidade da Eletropaulo.

A AES Eletropaulo diz que a região do Jardim Peri Alto possui restrições ambientais por se tratar de área pertencente à Serra da Cantareira e que, desde agosto deste ano, a distribuidora está em contato com a Sehab (Secretaria de Habitação do Município de São Paulo) para que seja avaliada a liberação ambiental da área.

Sobre a rua que possui apenas um lado com ligações regulares, a empresa informa que o lado ímpar está construído em cima de um córrego, onde a água e esgoto estão irregulares. Para regularizar a energia das famílias, são necessárias obras de urbanização e infraestrutura por parte da prefeitura.

Curtiu? Compartilhe.

Topo