"Você pode me acompanhar um pouquinho?"
Samuel Pessôa, economista, faz o convite, e saímos a pé de noite pelas ruas molhadas de chuva da rica Higienópolis, região central de São Paulo. A vida regurgita lá fora: um carro de polícia cruza, luzes piscam, moradores e seus cachorros passam, seguranças engravatados se posicionam, é sexta-feira.
A gente já falara um bom bocado na casa dele, um apartamento amplo e bem decorado pela mulher psicanalista, com telas de arte brasileira ao redor, móveis elegantes de madeira clara e de metal, e livros, muitos livros, empilhados.
O autor mais presente ali, com muitos volumes, é Jessé Souza, sociólogo, antropólogo, estudioso dos pobres brasileiros. Gente que Jessé chama de a ralé brasileira, sempre à margem do desenvolvimento, tema específico do livro "A Ralé Brasileira".
"É um dos meus autores preferidos. Gosto mais do Jessé antropólogo do que do Jessé ensaísta", justifica, com um exemplar de "A Ralé" nas mãos.
Pessôa é economista de profissão, doutor na matéria pela USP (Universidade de São Paulo) e analista social e político vinculado à FGV (Fundação Getulio Vargas), com ênfase em (sub)desenvolvimento. Defensor árduo também da modernização do Estado brasileiro via reformas.
Hoje está no período de transferência do comando da consultoria financeira de grandes fortunas Reliance, da qual foi sócio, após a venda do negócio para um banco suíço.
Alto, magro, óculos de aro escuro retangular, meio desengonçado no jeito, distraído. E esquecido até da entrevista marcada. "Me desculpe pelo atraso...", chega, esbaforido.
"Ele esquece até do aniversário dele", confirma a filha mais nova, a garotinha que surge do interior do apartamento, de cabelo encaracolado, vestido colorido e manchas escuras na face clara, rescaldo da massa plástica gelatinosa hoje sucesso com a garotada. A babá, de pele escura, sem uniforme e com muitos sorrisos, conduz a garota de volta.
No sofá da sala e depois nas ruas, Samuel Pessôa analisa historicamente os problemas brasileiros, situando o principal deles, em sua visão: o subdesenvolvimento social brasileiro advindo do baixo investimento em educação entre os anos de 1930 e 1980.
Não faltam declarações talvez fortes (e polêmicas): "A polícia de São Paulo aumenta a expectativa de vida dos jovens negros e pobres das periferias paulistas". Segundo ele, a PM paulista é política social bem-sucedida, porque diminuiu o índice de homicídios, protegendo exatamente a população mais vulnerável.
"Chegamos", Samuel Pessôa estanca o passo. E desaparece pela porta do restaurante japonês, onde a mulher o espera.