Agora é com você, eleitor

Novo presidente será desafiado por uma tríplice crise: fiscal, moral e congressual

Josias de Souza Blogueiro do UOL

O próximo presidente da República comandará um país fracionado, sob o assédio de três crises: fiscal, moral e congressual. Essa tríplice encrenca confere à poltrona presidencial uma incômoda aparência de cadeira elétrica.

O eleito flertará desde a posse com o risco de ver sua legitimidade rapidamente carbonizada. A democracia brasileira completa neste domingo (7) 33 anos, seis meses e 22 dias de sustos. Mas ainda não havia experimentado uma disputa presidencial tão embaraçosa e arriscada.

As pesquisas sinalizam um embate entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT). O sentimento que move o confronto é o ódio, não a esperança. Vota-se num candidato só para impedir a vitória do outro. 

Definida a disputa, as atenções se voltarão para o drama fiscal. O Orçamento da União anota que o governo federal fechará suas contas em 2018 com um déficit de R$ 159 bilhões. Será o quinto ano consecutivo de resultado deficitário.

Nesse período, incorporaram-se mais de R$ 572 bilhões à dívida bruta, que se aproxima da marca de 80% do PIB, o dobro dos padrões internacionais.

Pior do que o aprofundamento da cova fiscal é a percepção de que, sem a rápida aprovação de reformas como a da Previdência, o novo governo continuará jogando terra em cima da clientela do Estado, submetida a uma economia sedada, uma carga tributária pesada e serviços públicos de quinta categoria.

Além de refinar os gastos, o futuro presidente terá de exibir disposição para engrossar com os larápios de verbas públicas.

Escândalos de corrupção como Lava Jato, Calicute, Greenfield e Cui Bono resultaram na abertura de mais de 2.400 procedimentos fiscais. Apenas na Operação Lava Jato, as autuações da Receita Federal já superam a cifra de R$ 17 bilhões.

À sonegação de impostos soma-se o dinheiro desviado dos cofres de estatais e órgãos públicos. Perícia da Polícia Federal orçou em R$ 42 bilhões os prejuízos causados à Petrobras. O saque atingiu muitos outros guichês. Entre eles Eletrobras, BNDES e Caixa Econômica.

Na origem dos esquemas de pilhagem está o flagelo do toma-lá-dá-cá. A prática de trocar apoio congressual por cargos na engrenagem pública sobreviverá às urnas. Ao longo dos anos, o fenômeno converteu Legislativo brasileiro numa instituição sui generis, meio entreposto, meio bordel.

Um único cliente da oligarquia extrativista que comanda a política, a Odebrecht, denunciou em seu acordo de colaboração judicial 415 políticos de 26 partidos.

Entre os parlamentares, vários disputam a reeleição com chances de êxito. Contra todas as ilusões de renovação, o futuro presidente continuará lidando com um Congresso onde não há inocentes, apenas culpados e cúmplices. 

Temer oferece parceria para aprovar reformas ainda este ano

"Vamos ajudar o próximo governo", diz ministro da Fazenda

Assista à entrevista exclusiva com Eduardo Guardia

Gabriel Paiva/Agência O Globo Gabriel Paiva/Agência O Globo

Item da reforma tributária será enviado ao Congresso ainda este ano

A reconstrução das finanças do governo é uma pré-condição para retirar a economia do estado anestésico que retarda o resgate dos quase 13 milhões de brasileiros que estão no olho da rua.

A crise fiscal é tão aguda que Michel Temer (MDB) decidiu oferecer ao presidente eleito, seja quem for, a oportunidade de realizar um esforço conjunto para aprovar reformas econômicas no Congresso antes mesmo da posse, em 1º de janeiro.

“Estamos abertos a sentar e conversar”, disse o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, em entrevista exclusiva ao UOL concedida na terça-feira (2). “Se houver uma convergência sobre o que deve ser aprovado, vamos ganhar tempo e ajudar o próximo governo.” 

Estão na pauta a reforma da Previdência, cuja tramitação foi atropelada pelo grampo do Jaburu, e um conjunto de ajustes tributários.

Após a proclamação do resultado das urnas, o ministro da Fazenda disse que:

  • o governo enviará ao Congresso uma proposta de reforma do PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social, respectivamente)
  • encontra-se no forno, de resto, um projeto de redução do Imposto de Renda das empresas   

Coisa destinada a puxar a carga tributária de 34% para algo em torno de 22% do PIB. Para evitar a perda de receita, haverá “compensações”. Por exemplo: a tributação de dividendos e a eliminação de benefícios tributários.

A equipe econômica prepara um documento que deve azeitar a transição. O texto conterá uma lista com os abacaxis que o futuro governo terá de descascar nos primeiros cem dias. Inclui, por exemplo:

  • a definição de uma nova política para o reajuste do salário mínimo
  • menciona a necessidade de adiar o reajuste salarial dos servidores federais

Considerando-se o grau de engessamento do orçamento público, o próximo presidente chegará a Brasília embalado pelo pior tipo de ilusão: a ilusão de que preside. Logo perceberá que não governa nem a chave do cofre.

Eduardo Guardia fez as contas: “O gasto previsto para o ano que vem é de R$ 1,4 trilhão. Desse total, R$ 620 bilhões vão para a Previdência. Algo como R$ 300 bilhões vão para o pagamento de pessoal. Ou seja: 65% do total do gasto orçamentário é para pagar benefícios previdenciários e a folha. Há também uma série de gastos obrigatórios, previstos em lei —muitos são meritórios, como o Bolsa Família. O que sobra? De R$ 1,4 trilhão, vai sobrar um pouco menos de R$ 120 bilhões. Ou seja: o Poder Executivo tem pouco poder de gestão sobre o Orçamento.”

Há mais e pior: “O problema é que, olhando para o ano que vem, o crescimento da despesa previdenciária é da ordem de R$ 45 bilhões”, lamentou Guardia. “Veja a pressão que o gasto da Previdência está fazendo no Orçamento. Todo o crescimento nominal das despesas é explicado pela Previdência. Como a folha de pessoal também está crescendo R$ 22 bilhões, você tem que reduzir outras áreas de governo.” Num quadro de normalidade institucional, a adoção das medidas amargas que a conjuntura econômica impõe já seria muito difícil. Num ambiente de polarização ideológica, o risco de um colapso deixou de ser negligenciável. 

Uma coisa é o discurso de campanha, a outra coisa é o que efetivamente será feito quando tomar posse e tiver a responsabilidade por conduzir o país

Eduardo Guardia

Eduardo Guardia, ministro da Fazenda

Política do toma-lá-dá-cá precisa mudar, diz presidente da Câmara

Tamanho da mudança depende da capacidade do novo presidente

Assista à entrevista exclusiva com Rodrigo Maia

Fisiologismo tem a idade da própria democracia

O regime democrático foi inaugurado com uma descortesia. Em 15 de março de 1985, o general João Figueiredo, último presidente da ditadura, recusou-se a passar a faixa presidencial para José Sarney. Saiu do Palácio do Planalto pelos fundos, mandando que o povo o esquecesse. Foi atendido. Os militares estavam em baixa.

Hoje, lidera as pesquisas uma chapa verde-oliva. Na cabeça, o capitão Jair Bolsonaro. Na vice, o general Hamilton Mourão (PRTB). Entusiastas da ditadura, ambos cultuam a memória do torturador Brilhante Ustra. Simbolizam a ideia do choque —um choque de ordem. Os militares voltaram à moda.

Ironicamente, o principal cabo eleitoral de Bolsonaro é Lula, o líder político mais popular da história desde Getúlio Vargas. A força da opção militar potencializou-se como reação à transferência relâmpago de eleitores de Lula para o seu preposto, Fernando Haddad.

Em grande medida, a disputa entre extremos, com o consequente esmagamento das opções situadas mais ao centro, é uma reação enraivecida do eleitor à incapacidade dos políticos de expiar os próprios pecados

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que tenta a reeleição e é o candidato preferido do chamado centrão para permanecer no cargo a partir de 2019, avalia a situação sob uma ótica otimista.

Afirma que os próprios parlamentares já compreenderam que a política do toma-lá-dá-cá precisa mudar. O tamanho da mudança, disse ele, depende da capacidade do novo presidente de lançar mão de sua liderança para impor limites à barganha. Seria um feito histórico, pois o fisiologismo tem a idade da própria democracia

Tancredo Neves, artífice da redemocratização brasileira, costuma ser exaltado por suas qualidades de tecelão da política. Mas também produziu iniquidades. Governador de Minas Gerais, entrou na procissão das eleições diretas acendendo uma vela para o Colégio Eleitoral.

Na eleição indireta, esmagou Paulo Maluf. Na véspera da posse, adoeceu. Morreu 38 dias depois. Armou um ministério aparelhado e deixou no comando José Sarney, um oligarca egresso da ditadura. Fez pior: antes de morrer, plantou na memória de um computador uma lista de indicações para cargos públicos.

A relação destinava-se a saldar os compromissos assumidos com a aliança partidária que o elegera. 

Assim nasceu o sistema de escambo que Rodrigo Maia imagina ser possível modificar. É preciso ver para crer, pois o flagelo já sobreviveu a dez posses presidenciais, seis trocas de moeda, uma moratória internacional, seis congelamentos de preços, uma Constituinte e dois impeachments.

Para que uma nova época comece, é essencial promover a faxina da era anterior. A Lava Jato levantou o tapete. Mas não há vestígio de uma disposição dos políticos de recolocar o abajur em pé, desentortar a vara do trombone e parar de esconder apadrinhados atrás dos sofás de estatais e de repartições públicas. 

Ou nós vamos construir as soluções para que as políticas públicas voltem a fazer parte da agenda da política ou a política vai ser o que é hoje

Rodrigo Maia (DEM-RJ)

Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados

Pulverização deixa presidente refém de 35 partidos, diz Barroso

"Combate à corrupção enfrenta grandes obstáculos", afirma Barroso

Assista à entrevista exclusiva com o ministro do STF

Dida Sampaio/Estadão Conteúdo Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Sistema eleitoral caro e pouco representativo precisa mudar

Além de passar pelo Executivo e pelo Legislativo, a recomposição da salubridade do ambiente político-institucional fará escala no Judiciário. Há nos subterrâneos da política um desejo pulsante de frear a Lava Jato.

Esse anseio produz uma fricção que desagua no Supremo Tribunal Federal, para cujos gabinetes se voltam os olhares da sociedade. Vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso recorda que o esforço anticorrupção é anterior à “Nova República” de Tancredo. 

“Desde a eleição de Jânio Quadros, chegando ao golpe militar, sempre houve discursos contra a corrupção”, disse Barroso.

“O que há de novidade no Brasil dos últimos anos é uma reação da sociedade em relação à aceitação do inaceitável. Há uma demanda por integridade, idealismo e patriotismo. Essa é a energia que muda paradigmas e empurra a história.”

Para Barroso, as instituições “começaram a reagir”. Puseram-se em movimento “com atraso, mas não tarde demais.”

O ministro enxerga o julgamento do escândalo do mensalão, no Supremo, como “um ponto de inflexão.” Sobrevieram “mudanças importantes na legislação”.

Barroso cita, entre outros tópicos, o aperfeiçoamento da colaboração premiada, o agravamento das penas anticorrupção e a mudança de jurisprudência que autorizou a prisão de condenados na segunda instância do Judiciário. “O enfrentamento à corrupção deixou de ser retórico”. 

Mas está em curso uma reação daquilo que Barroso chama de “pacto oligárquico de saque ao Estado e de apropriação dos recursos públicos por parte da classe política, empresarial e parte da burocracia estatal.”

Nas palavras do ministro, “não é fácil desfazer o pacto, mas ele está sendo desfeito.” O problema é que “os processos históricos muitas vezes são lentos, sobretudo quando enfrentam um status quo poderoso.” Na contabilidade de Barroso, são três os grandes obstáculos: 

  • “Parte do pensamento progressista no Brasil acha que os fins justificam os meios. Se o meu projeto é bom, não importa como eu o implemento”. Nesse modelo, a corrupção é vista como “uma nota de pé de página na história.”
  • “Parte das elites brasileiras acha que corrupção ruim é a dos adversários. Se for a dos companheiros de mesa de pôquer e de salão não é tão grave assim. E com isso perpetuam um pouco essas elites extrativistas que se apropriam do Estado.”
  • Os próprios corruptos dividiram-se em duas categorias. “Tem o lote dos que não querem ser punidos”. Mais: “Tem um lote pior, hoje, no Brasil, que é o dos que não querem ficar honestos nem daqui para a frente.”

No Supremo, Barroso é o relator do inquérito sobre os portos, que tem Michel Temer no rol de investigados.

No TSE, o ministro relatou o processo que resultou no enquadramento de Lula na Lei da Ficha Limpa e no indeferimento de sua candidatura presidencial.

Abstendo-se de comentar os dois casos, o ministro declarou: “O fato de existirem tantas autoridades enfrentando problemas judiciais revela um sistema político que é indutor de comportamentos desviantes.”

Barroso prosseguiu: “Creio que não é problema de pessoas, porque os políticos são recrutados na mesma sociedade em que são recrutados os juízes, os médicos, os jornalistas. Se não é um problema de pessoas, é do sistema. Precisamos enfrentar as causas, que são o sistema eleitoral caro e pouco representativo, que dificulta a governabilidade e dá incentivos errados para a política, que muitas vezes fica refém de práticas fisiológicas.”

O ministro foi ao ponto que deverá tirar o sono do presidente a ser empossado em 1º de janeiro: “A pulverização partidária faz com que o presidente seja refém de 35 partidos, ou 28 partidos com representação no Congresso. Os próprios partidos não têm muita unidade, o que acaba levando a negociações quase individuais. Isso fomenta o modelo fisiológico. Nele, há pessoas que usam o poder para conseguir coisas boas para o seu reduto eleitoral. Mas há também quem utilize o poder para conseguir coisas erradas. É preciso facilitar a governabilidade, tornando as negociações m ais impessoais e institucionais. No Brasil, o presidente historicamente fica refém do fisiologismo ou do autoritarismo.”

A sucessão de 2018 será uma virada de página. A questão agora é saber se a página não será virada para trás.

Há um processo histórico em curso e você não consegue aparar a história com as mãos. Não é para amanhã nem depois, é um processo que leva uma geração

Luís Roberto Barroso

Luís Roberto Barroso, ministro do STF

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