O poder do mito

A trajetória de Jair Messias Bolsonaro, de militar rebelde a presidente do Brasil

Guilherme Azevedo Do UOL, em São Paulo
Ueslei Marcelino/Reuters

Folhapress

A queda para o alto

De frente com a morte em Minas Gerais

Conduzido nos ombros por um segurança voluntário, Jair Messias Bolsonaro, 63, se movimenta por cima da multidão vestido com uma camiseta amarela com a inscrição "Meu partido é o Brasil", em letras garrafais verdes. O famoso calçadão da rua Halfeld, no centro de Juiz de Fora (MG), está, por volta das 15h40 de uma quinta-feira, 6 de setembro, tomado por centenas de apoiadores.

Diz o dito popular que "quem não passa pela Halfeld não ganha eleição", e Bolsonaro, consciente ou não da sina, não quer correr esse risco. Ele não sabe, mas está correndo um outro sério risco, esse de vida ou de morte, talvez o maior de sua biografia como oficial do Exército e parlamentar.

"Mi-to! Mi-to! Mi-to!", "Eu-vim-de-gra-ça! Eu-vim-de-gra-ça!", saúdam seus eleitores.

Espreitando o então candidato a presidente e acompanhando o cortejo de perto, quem surge é Adélio Bispo de Oliveira, 40, natural de Montes Claros (MG), desempregado e ex-militante do PSOL.

Ele chega perto, gesticula, estica o braço uma, duas vezes, parece querer encostar no "mito" como um daqueles fãs extasiados, mas a multidão o leva para longe. Ele retorna, decidido. E, numa brecha entre as pessoas, finalmente se aproxima mais e desfere o golpe no abdômen, um único, firme, rápido, com o objeto que carrega na mão envolto em notícia velha de jornal. 

E o mito, afinal, era homem: grita um grito lancinante de dor, verga-se para trás e é socorrido por seguranças e apoiadores, levado por muitas mãos. Mudava neste instante a campanha a presidente do Brasil em 2018.

Raysa Leite/Folhapress Raysa Leite/Folhapress

Acertaram o Bolsonaro! Esfaquearam o Bolsonaro!"

Adélio Bispo de Oliveira é preso em flagrante e escapa do linchamento iminente.

Levado para a Santa Casa de Juiz de Fora, constata-se que a facada em Bolsonaro lesionara gravemente o intestino grosso e acertara também o intestino delgado. Cirurgia de emergência, litros de sangue perdidos.

Haveria ainda a transferência para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Outra cirurgia e o auxílio exterior de uma bolsa para a coleta das fezes, que o acompanhará até que o intestino, refeito, possa cumprir sua missão de absorver nutrientes e eliminar excrementos.

"A facada o preservou do embate com outros candidatos e do enfrentamento de temas que não queria debater. Não teve mais que lidar com os adversários e fez campanha no ambiente em que bem quis", sublinhou o cientista político Malco Camargos, da PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais).

Para Camargos, o ataque teve o poder de valorizar a figura do homem e de expor uma fragilidade que até comove, aproximando-o dos eleitores. "A gravidade da lesão, seu relato, as minúcias de seu quadro de saúde explicadas, tudo isso foi humanizando o candidato para as pessoas."

Ao mostrar-se vulnerável e frágil, o "mito" tornara-se ainda mais potente.

Bolsonaro tem um pouco de anti-herói, um herói bem às avessas, porque o herói tradicional é mais bem-comportado. Bolsonaro não é a valorização das qualidades, que é o que faz um herói. Expõe os defeitos, faz declarações polêmicas, é um pouco machista, misógino, homofóbico, por isso a construção da figura do mito, complexa, é mais adequada para ele

Malco Camargos, cientista político

A batalha das redes

Quando o "exército" bolsonarista entrou em campo

Com cerca de 8 milhões de seguidores no Facebook e 2 milhões no Twitter, o mais alto índice entre os concorrentes ao Planalto, ele é o rei da mídia social. Ninguém soube, como Bolsonaro, aproveitar o potencial de comunicação direta das redes sociais para cativar e conquistar o eleitor.

A gravação de vídeos caseiros, primeiro nas ruas e depois do atentado em casa, meio improvisados, com inserções ao vivo; a produção de conteúdos simples e, às vezes, bem toscos, de memes, foi o combustível para um eleitorado ávido por alguma autenticidade.

Isso somado ao caráter excêntrico de sua figura, animada por um discurso forte e sem autocensura, agradou parte do eleitorado descrente com a política tradicional, como notou a cientista política Esther Solano, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), estudiosa do eleitorado de Bolsonaro.

Um exército de apoiadores voluntários, trabalhando em rede ou de forma isolada, combatendo a cada post, a cada comentário, fazendo prevalecer sua #hashtag: era como se a campanha pertencesse a cada um deles, gente empenhada em produzir, reproduzir e até inventar material a favor do seu "mito", o homem com jeito de super-homem capaz de enfrentar (e vencer) "tudo que tá aí", como repetiu à exaustão durante a campanha. Era o "Meu Capitão!"

"Nesse momento de crise econômica, política e social, Bolsonaro se apresentou como a grande figura, a ideia masculina, uma figura forte, salvadora, meio messiânica, meio heroica, o único que conseguiria botar ordem, e a internet o ajudou absolutamente a construir isso, a coisa do 'mito'", observou Esther Solano.

Para Roberto Romano, filósofo da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a emergência de um "novo salvador", como já teriam sido Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, deve ser creditada à ineficiência crônica do Estado brasileiro: incapaz de oferecer serviços de qualidade, como de segurança e saúde.

"Enquanto acontecer isso, vamos sempre ter a projeção de um salvador da pátria, que vai resolver todos os problemas. O da vez agora se chama Bolsonaro."

O lado escuro das redes

A batalha eleitoral das redes não excluiu práticas obscuras e ilegais. Proliferaram denúncias de que apoiadores de Bolsonaro investiram pesadamente na multiplicação deliberada de notícias falsas (fake news) contra seu adversário, valendo-se de empresas especializadas na divulgação em massa de mensagens nas redes sociais, sobretudo no WhatsApp. Tudo negado pela campanha de Bolsonaro, que por sua vez acusou o adversário da prática.

"Bolsonaro foi beneficiado pelas campanhas nas redes sociais, sobretudo o uso do WhatsApp. Ferramenta que, pela primeira vez no Brasil, tomou tanta importância eleitoral e pela qual se passou muito conteúdo infantilizado politicamente e muita fake news com ataque ao aniversário", apontou Esther Solano. "Um conteúdo que sai do controle da típica campanha profissional clássica, essa ideia de não estar nos debates, então, foi uma outra retórica e forma de fazer campanha."

Não há nenhuma política pública que cumpra sua função mínima, porque o Estado brasileiro é concentrador de recursos. Isso desperta no eleitor a esperança de que alguém venha a melhorar. Enquanto acontecer isso, vamos sempre ter a projeção de um salvador da pátria, que vai resolver todos os problemas. O da vez agora se chama Bolsonaro.

Roberto Romano, filósofo

A polêmica como estratégia

Deputado federal do chamado baixo clero, isto é, do grupo de parlamentares com influência política restrita, normalmente filiados a partidos de médio e pequeno portes, Jair Messias Bolsonaro se valeu intencionalmente da virulência e da agressividade do seu discurso para chamar a atenção.

"Sem contundência ninguém é ouvido. Temos excelentes deputados que expressam suas ideias de forma polida e por isso não encontram eco na mídia", justificou-se em entrevista com leitores da revista "Época", em 2 de julho de 2011.

Por sua postura belicosa nos embates e declarações polêmicas, apontadas como racistas, homofóbicas e contrárias à dignidade do homem, foi alvo de representações e processos no Conselho de Ética da Câmara, com acusações de quebra do decoro parlamentar e pedidos de cassação do mandato.

A mais recente, em 2016, foi motivada pelo elogio ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador declarado durante a ditadura e morto em 2015. A citação ocorreu durante o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT), na Câmara.

Acusado de apologia à tortura, em sua defesa, no Conselho de Ética, afirmou que fora amigo de Ustra e o considerava um "herói". Conseguiu ser absolvido na comissão em todas as oportunidades em que foi contestado.

Bolsonaro rivalizou com colegas e protagonizou muitas polêmicas na Câmara, entre elas, com a deputada petista Maria do Rosário (RS). A animosidade entre os dois se acirrou em novembro de 2003, quando o tema da redução da maioridade penal voltou à agenda, impulsionado por crime hediondo cometido por um adolescente infrator, o Champinha.

Após entrevista à TV em que atacou quem defendia o menor, Bolsonaro bateu boca em salão da Câmara com Maria do Rosário, acusando-a de o ter chamado de "estuprador". O embate foi gravado em vídeo.

"Jamais ia estuprar você porque você não merece", atacou o deputado, para reação furiosa dela. "Olha, eu espero que não, porque senão dou-lhe uma bofetada." "Dá, que eu te dou outra", disse e repetiu o deputado. "Você me chamou de estuprador, e você é uma imoral."

Também repercutiram embates com o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), quando, em 2013, Bolsonaro foi acusado de ter desferido um soco no parlamentar em visita à antiga sede de aparelho da ditadura no Rio; e com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), ativista LGBT, por exemplo na votação do impeachment de Dilma, que culminou com a cusparada de Wyllys na direção do capitão.

Reprodução Reprodução

... pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.

Jair Bolsonaro, ao homenagear o militar torturador, no voto 236 a favor da abertura do impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara dos Deputados, 17/4/2016

Combate a kit contra homofobia

Um dos movimentos que conduziu Jair Bolsonaro ao centro da esfera pública foi o de reação à elaboração, pelo governo Dilma Rousseff, em 2010, de medidas contra a homofobia, que incluíam vídeos e cartilhas para orientar professores da rede pública escolar.

A iniciativa foi apelidada por Bolsonaro de "kit gay".

Acusando o plano de incentivar a homossexualidade e a promiscuidade de crianças do ensino fundamental, o deputado iniciou uma cruzada no plenário da Câmara e na mídia por sua rejeição, ganhando notoriedade como "defensor da família e dos bons costumes" e a ira de ativistas e defensores dos direitos humanos.

"Atenção, pais de alunos de 7, 8, 9 e 10 anos, da rede pública: no ano que vem, seus filhos vão receber na escola um kit intitulado 'Combate à Homofobia'. Na verdade, é um estímulo ao homossexualismo, à promiscuidade. Esse kit contém DVDs com duas historinhas. Seus filhos de 7 anos vão vê-las no ano que vem, caso não tomemos uma providência agora", discursou na Câmara, em 30 de novembro de 2010, cobrando providências de seus pares e descrevendo o conteúdo.

A mobilização de Bolsonaro e de outros deputados das bancadas católica e evangélica acabou por levar o governo a suspender a produção e distribuição do material, anunciada no dia 25 de maio de 2011.

O que diz Jair Bolsonaro

Infância dourada

No Vale do Ribeira, através das matas e dos rios

Jair Messias Bolsonaro nasceu no dia 21 de março de 1955, no pequeno município de Glicério, no oeste paulista, e foi registrado dias depois em Campinas (SP), que se tornou sua cidade de nascimento oficial. É o terceiro dos seis filhos do casal formado pelo dentista prático (que aprendeu a odontologia na prática, sem frequentar a universidade) Percy Geraldo Bolsonaro e pela dona de casa Olinda Bonturi Bolsonaro, descendentes de imigrantes italianos.

Nos anos seguintes, a família se mudaria para o Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo e de natureza mais exuberante devido à presença extensiva de Mata Atlântica preservada. O município escolhido para os Bolsonaros se fixarem foi o de Eldorado (SP), onde se desenvolveram, no início do século 17, atividades de mineração de ouro.

Nessa época dourada, o personagem desta história atendia pelo apelido de Palmito, porque era muito magro, alto e branquelão --na idade adulta, alcançaria 1,85 metro de altura. O jovem Bolsonaro viveria em Eldorado até os 18 anos, concluindo o segundo grau.

Na infância e adolescência, eram constantes algumas atividades, como pescar no rio Ribeira de Iguape, caçar passarinhos nas matas da região, jogar futebol (ruim de bola, segundo testemunhos, foi parar no gol de time local) e assistir a filmes de Mazzaropi. O jovem chegou a pescar para comercializar o pescado na região e ajudar a família.

Nas matas, atrás de Lamarca

Um episódio marcaria a vida dele dali por diante, estabelecendo o caminho: a passagem por Eldorado, em abril e maio de 1970, de militares do Exército com a missão de capturar o líder guerrilheiro e ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, escondido com outros guerrilheiros na região.

Durante a perseguição, o jovem Bolsonaro teria ajudado a guiar os soldados pelas matas atrás do capitão, que era um ícone da esquerda e da luta armada durante a ditadura militar (1964-85). Um desses soldados acabaria se tornando o "padrinho" de Bolsonaro, entregando a ele folheto com instruções de como ingressar na carreira militar.

Bolsonaro prestaria então concurso para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas, etapa da formação do futuro oficial, nela ingressando em 19 de março de 1973, dois dias antes de completar 18 anos.

Alertado pela direção da escola de que já poderia pleitear vaga na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ), etapa mais longa e final da formação do futuro oficial, uma vez que já se formara em segundo grau, ele presta (e passa) no concurso. Transfere-se em 1974, assumindo vaga em fevereiro.

Escolheria a arma da artilharia e se especializaria em paraquedismo, formando-se em 1977, tornando-se bacharel em ciências militares (curso de nível universitário) e aspirante a oficial.

Um capitão rebelde e contestador

Aos 31 anos, já como oficial do Exército e ocupando o posto de capitão do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista, no Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro teria sua primeira projeção pública, para além dos muros dos quartéis.

Essa primeira aparição para fora da caserna foi um artigo seu publicado em espaço nobre da revista "Veja" em 3 de setembro de 1986. Tratava exatamente do problema da perda de valor dos soldos militares por causa do descontrole da inflação, reivindicando reajuste.

No artigo, intitulado "O salário está baixo", o capitão expunha que o problema real do crescente abandono da carreira se devia "à crise financeira que assola a massa dos oficiais e sargentos do Exército brasileiro". Complementava: "Uma crise e uma falta de perspectiva profissional cujos reflexos de desestímulo já atingem a Academia das Agulhas Negras, celeiro histórico da oficialidade da força terrestre [Exército] --que hoje se encontra ameaçado".

Bolsonaro listava motivos, apresentava números e encerrava o artigo dizendo que tornava público seu depoimento para que "o povo brasileiro soubesse a verdade" sobre o que estava ocorrendo na "massa de profissionais preparados para defendê-lo".

"Corro o risco de ver minha carreira de devoto militar seriamente ameaçada, mas a imposição da crise e da falta de perspectiva que enfrentamos é maior", ponderava.

A exposição pública gerou, de fato, reações do comando. Num caso flagrante de quebra da hierarquia e da disciplina, bases da instituição militar, uma vez que Bolsonaro expusera publicamente questões internas sem a autorização de seus superiores, o capitão teve sua prisão decretada por 15 dias.

Entretanto, a defesa aberta da categoria ganhou a simpatia de parte dos militares, incluindo oficiais de alta patente, como o general Newton Cruz, ex-chefe da agência central do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão de segurança criado pela ditadura militar. Mulheres de oficiais se mobilizaram e foram às ruas do Rio para protestar.

Não pleiteio aumento salarial. Reclamo --como fariam, se pudessem, meus colegas-- um vencimento digno da confiança que meus superiores depositam em mim.

Jair Bolsonaro, então capitão do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista do Exército, no artigo "O salário está baixo", publicado na revista "Veja" no dia 3/9/1986

O caso das bombas

Objetivo seria pressionar por reajuste dos soldos

Em 28 de outubro do ano seguinte, 1987, a revista "Veja" publicou reportagem que revelava um suposto plano para explodir bombas-relógio em unidades do Exército, no caso de o governo do presidente José Sarney anunciar reajuste do soldo abaixo do esperado pela classe militar.

Os artífices do suposto plano, denominado "Operação Beco sem Saída", seriam os capitães Jair Bolsonaro e Fábio Passos da Silva, que estudavam à época na Escola Superior de Aperfeiçoamento do Exército, no Rio, e negaram a existência do plano.

Segundo o relato da reportagem, Bolsonaro teria dito, sorrindo, que seriam colocadas "só algumas espoletas" em instalações militares, como os banheiros da escola de aperfeiçoamento, com o cuidado para não ferir ninguém, de modo a pressionar o governo e o ministro do Exército de então, general Leônidas Pires Gonçalves.

A divulgação do suposto plano, com a apresentação de croqui que seria de próprio punho de Bolsonaro, tornou-se, de pronto, uma bomba virtual que explodiu no comando da corporação. Investigação interna, chamada de Conselho de Justificação, considerou os capitães culpados, apesar da negativa deles, e o caso foi parar no STM (Superior Tribunal Militar), juntamente com o do artigo assinado.

Exames grafotécnicos no croqui foram divergentes e, em benefício da dúvida, os capitães foram inocentados por maioria de votos.

Porém, o episódio precipitaria o fim da carreira militar de Bolsonaro, que seguiria para a reserva remunerada do Exército como capitão em 1988.

Lançado à posição pública de liderança militar, Bolsonaro se candidataria pela primeira vez a cargo político e seria eleito vereador do Rio de Janeiro com votação expressiva da classe militar. Era novembro de 1988.

De encontro à parede

Nos anos 80, como paraquedista, viu a morte pela primeira vez

Na academia militar e depois em cursos de aprimoramento, o artilheiro Jair Bolsonaro, pertencente à arma da artilharia, especializou-se em salto militar bélico e tornou-se paraquedista, integrante do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista do Exército.

O paraquedismo de artilharia, aplicado à guerra, tem especificidades: os militares saltam com alvos específicos e carregam consigo equipamentos e armas, por exemplo.

Foi na década de 1980, em exercícios finais de curso de salto livre militar, depois de ter se formado em primeiro lugar na Escola de Educação Física do Exército, que Bolsonaro flertou com a morte pela primeira vez.

Segundo o livro "Bolsonaro: O Homem que Peitou o Exército e Desafia a Democracia", do jornalista Clóvis Saint-Clair, o capitão perdeu o controle do paraquedas a algumas dezenas de metros do chão devido ao vento forte, atravessou a movimentada avenida das Américas, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, se chocou contra um edifício e despencou de uma altura de oito metros. Bolsonaro fraturou os braços e os tornozelos, salvou-se por um triz.

Bolsas feitas de paraquedas

Na época de Exército, Bolsonaro também se valeu dos paraquedas, mas desta vez para subir seu ordenado, em 1987. Ele adquiria, em leilões do próprio Exército, paraquedas antigos e, com o náilon desses equipamentos, pedia ao alfaiate do seu grupo de artilharia para costurar bolsas a tiracolo.

A indumentária era então vendida aos militares interessados, dentro das próprias instalações militares, o que é proibido. Além de algum lucro para si e para o alfaiate, esse comércio rendeu também processo disciplinar e a proibição da atividade.

No tocante a negócios mercantis para além da vida militar, Bolsonaro foi também repreendido, quando, já capitão, decidira garimpar ouro na Bahia durante as férias, levando consigo subordinados seus.

Em relatório, o Conselho de Justificação, espécie de auditoria interna aberta sobre problemas envolvendo Bolsonaro, acusou o capitão de "demonstração de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente, revelando com isso conduta contrária à ética militar".

E complementava: "Faltou ao Justificante [Bolsonaro] coragem moral para sair do Exército, onde não encontrava perspectivas e se dizia angustiado por não poder atender à família".

Da caserna para a tribuna: voz militar no Legislativo

Depois dos embates com os comandantes sobretudo por questões de soldo e a exposição na mídia de campanha reivindicatória, Bolsonaro assumira alguma liderança e admiração entre militares.

Com base nisso é que se candidataria pela primeira vez a um cargo político: o de vereador do Rio de Janeiro. Em grande maioria com votos vindos da classe militar, Bolsonaro, filiado ao PDC (Partido Democrata Cristão), se elegeria com 11.062 votos, na eleição de novembro de 1988. Tornava-se, assim, capitão da reserva remunerada do Exército, deixando a caserna.

Desde o princípio, Bolsonaro fez questão de ser uma voz representativa dos assuntos militares dentro do Legislativo, defendendo-os com unhas e dentes e principalmente com discursos duros e inflamados.

Na Câmara do Rio, ele ficou apenas dois anos, pois foi eleito deputado federal em 1990. Seriam, depois, mais seis mandatos como deputado federal, até ser o mais votado no estado do Rio de Janeiro, em 2014, com mais de 460 mil votos.

Em entrevista concedida em 1993 a pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, o general Ernesto Geisel -- presidente do Brasil entre 1974 e 1979, durante o regime militar -- criticou Bolsonaro ao comentar a participação de militares na política brasileira.

"Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar", afirmou Geisel.

Apesar de enfrentar alguma resistência, Bolsonaro cultivou a imagem de defensor intransigente das questões militares de ordem prática, como soldos e previdência, e tornou-se o mais ativo defensor da imagem das Forças Armadas no Congresso Nacional.

Daí a defesa do suposto legado do golpe militar de 1964, que ele denomina de "gloriosa contrarrevolução", que impedira, na sua visão, a instalação de um regime comunista no Brasil. No Parlamento, tornou-se tradição anual seu discurso de homenagem ao regime militar, a cada aniversário do golpe.

Também atacou constantemente movimentos sociais, por exemplo os de luta pela democratização da terra, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), cujos integrantes chama de "vagabundos".

Entre seus projetos polêmicos propostos, está o que "aumenta a pena para os crimes de estupro e estupro de vulnerável, exige que o condenado por esses crimes conclua tratamento químico voluntário para inibição do desejo sexual como requisito para obtenção de livramento condicional e progressão de regime", conforme descreve o projeto de lei 5398/2013.

Arte UOL

Bolsonaro ganhou no campo da negação da política, da politização da antipolítica, da retórica antipetista e antiesquerdista e também num campo que é muito caro ao brasileiro, que é o da segurança, obviamente com uma ideia muito demagógica e infantilizada, de que 'bandido bom é bandido morto'. Ele se apresenta como um grande pai, um salvador."

Esther Solano, cientista política

O clã Bolsonaro

Jair Messias Bolsonaro tem quatro filhos, uma filha e uma enteada, de três casamentos.

Três dos filhos se originaram do primeiro casamento, com Rogéria Nantes Nunes Braga, e seguiram a trilha aberta pelo pai na política, todos hoje filiados ao PSL e com cargos legislativos:

  • Flávio Bolsonaro, o mais velho, 37, advogado e empresário, deputado federal, candidato a prefeito do Rio derrotado em 2016 e eleito agora senador (4,3 milhões de votos);
  • Carlos Bolsonaro, 35, formado em ciências aeronáuticas, vereador do Rio (eleito pela primeira vez com 17 anos, em 2000);
  • e Eduardo Bolsonaro, 34, policial federal de origem, reeleito deputado federal por São Paulo em 2018 com a maior votação da história para um postulante ao cargo (1,8 milhão de votos).

Do segundo casamento, com Ana Cristina Valle, nasceu Jair Renan Bolsonaro, hoje com 19 anos.

E com a terceira mulher, Michelle de Paula Firmo Reinaldo Bolsonaro, cerca de 25 anos mais nova e com quem está casado desde 2013, após cerimônia celebrada pelo pastor Silas Malafaia, teve a filha Laura, 8. De Letícia, filha de relacionamento anterior de Michelle, tornou-se também padrasto.

Em nome da família

Como um padrinho abençoado e que abençoa, o líder político compartilha ou doa seu sobrenome como emblema e sinal de integrante ao clã, à sua tribo, como fez nessa eleição com uma ex-mulher candidata e um colega, o militar Hélio Negão, que virou Hélio Bolsonaro na urna.

Não deu certo para ela, mas para ele, sim: o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro, com 345 mil votos.

Mais do que isso, a vitória nas urnas marca provavelmente o maior feito da trajetória do capitão do Exército que virou político. A eleição coloca, definitivamente, a família Bolsonaro -- e seus agregados -- às portas do poder.

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