Investir só após eleição

Cenário indefinido faz empresa segurar inauguração de lojas para depois da eleição, diz chefe da Sephora

Do UOL, em São Paulo
Simon Plestenjak/UOL e Arte/UOL
Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

Beleza brasileira

O cenário eleitoral em 2018 não permite dizer com certeza nem quem serão os candidatos, muito menos quem pode vencer, o que coloca entraves para investimentos no Brasil. A análise é da diretora-geral da Sephora no Brasil, Flávia Bittencourt, em entrevista na série UOL Líderes. Ela afirma acreditar no país, mas optou pela cautela na hora de decidir por expansão neste momento.

Ela fala ainda das preferências da consumidora brasileira na hora de escolher maquiagem, da maior variedade de tons para a pele negra e diz qual é a posição da Sephora em relação a produtos testados em animais. Também conta como concilia a carreira com a rotina de mãe de quatro filhos.

Eleição complicada trava investimentos no país

UOL – Qual é a meta de abertura de lojas no Brasil?

Flávia Bittencourt – Não temos muito uma meta de abertura de lojas. Vamos abrindo conforme percebemos a resposta do consumidor. Estamos abrindo loja também dependendo um pouco do momento econômico do país.

Hoje os grandes questionamentos são: vem uma eleição aí, mal sabemos quem são os candidatos, quem é esse novo presidente, se ele é um presidente que vai ter uma pauta de reformas. Se as reformas não forem feitas, a gente começa a patinar de novo. Então essas são as coisas que fazem com que seguraremos um pouco a expansão.

Eu gosto disso porque não tem de abrir por abrir, abrimos conforme vai fazendo sentido.

Como você leva essa incerteza no cenário político para os investidores fora do país? É mais complicado planejar investimentos?

É muito complicado, muito complicado.

Tudo o que investidor pede é estabilidade, é saber para onde nós estamos indo. Imagina, não conseguimos nem dizer quem são os candidatos, como é que vamos dizer quem vai ganhar? Esse cenário é muito ruim, eu diria que é o pior cenário.

Você precisa ter um pouco de leitura do que pode acontecer, e quando a leitura é nenhuma...

Sabemos que a economia anda sem estar 100% correlacionada com a política por algum tempo, mas não por muito tempo, principalmente num lugar como o Brasil onde reformas são essenciais. Então isso faz você parar, pausar e avaliar um pouco, antes de tomar decisões para frente.

E isso vale para qualquer coisa: para abertura de lojas, para saber se você vai abrir ou não uma fábrica. Quando você está falando com uma multinacional, por melhor que estejamos indo no Brasil, [isso pesa].

As consumidoras são apaixonadas pela gente aqui, mas você vai botar dinheiro no Brasil quando poderia abrir mais lojas nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia? Há tantos lugares, por que eu abriria no Brasil?

Você tem que dar uma “reason why” [justificativa] que não seja só o mercado consumidor, mas também porque o mercado está mais estável, as reformas estão sendo feitas, a inflação e a taxa de juros estão controladas. São coisas que, obviamente, dão mais segurança.

O que você tem dito para o mercado internacional?

Venho dizendo ‘vamos continuar’, até porque a resposta do público aqui é muito boa. Todos os indicadores de retorno das clientes só crescem, crescem muito.

O “brand awareness” [conhecimento de marca] da Sephora é forte no Brasil, a lealdade das consumidoras, a resposta a cada uma das marcas que estamos trazendo, os eventos que fazemos. As respostas do ponto de vista de clientes não poderiam ser melhores. Então eu tenho dito 'pisa no acelerador'.

Mas neste ano eu fui uma a dizer 'calma', vamos ver o que vai acontecer primeiro. Há muita coisa para fazer com as lojas que já temos. Não precisamos abrir novas lojas para crescer, conseguimos crescer do jeito que estamos, com a quantidade de lojas e de quiosques, com o e-commerce que temos, conseguimos continuar com um crescimento bacana sem precisar abrir novos pontos, sem precisar fazer novos investimentos desse tipo.

Eu acredito no Brasil. Muito. Sou uma apaixonada pelo Brasil, não penso em morar fora, em sair daqui. Na verdade, para mim, sucesso é fazer com que a Sephora possa crescer e ser sustentável aqui dentro e que este país seja um sucesso.

Sou uma eterna otimista, mas em um ano de eleição, ainda mais neste ano... Não lembro a última vez em que falamos de uma eleição com tanta incerteza. Então podemos pausar, esperar seis meses, não vai atrasar em nada os nossos planos.

Como é trabalhar com um produto supérfluo, principalmente nesse cenário de crise que o país está atravessando?

Não é supérfluo, de forma alguma. A beleza é uma coisa tão importante, porque não é a beleza em si, a beleza clássica, tradicional, do tipo 'eu quero ser igual à capa dessa revista ou igual àquela modelo'. É você gostar de você. É você se olhar no espelho e se reconhecer, gostar daquela imagem. Esse poder é muito forte para uma mulher.

A partir do momento em que você se olhou no espelho e gostou do que viu, você sai mais confiante para uma reunião de trabalho, para uma entrevista, para um jantar com o seu namorado, para uma noite com as amigas. Aquilo faz você se sentir bem. É realmente uma coisa de autoestima e de confiança.

Na crise, talvez eu não possa comprar uma bolsa, um sapato, um vestido novo, mas um batom sempre dá para comprar. O tíquete [gasto médio] de entrada é muito baixo, e aquele batom lhe dá um prazer enorme. É como se você estivesse comprando uma roupa nova ou uma televisão nova, é o prazer de poder comprar uma coisa que vai lhe fazer bem.

A incerteza da política

Brasileira só ousa nas cores se for moda na novela

UOL – Como descreveria as preferências da consumidora brasileira em termos de cores, texturas, tipos de produto?

Flávia Bittencourt – A brasileira é apaixonada por beleza. Segue tendências, mas também gosta de experimentar e descobrir. Tem uma preocupação muito grande com a personalização do que é bom para ela. Se a pele é oleosa, ela sabe. Se o cabelo é muito seco ou muito enrolado, ela quer uma solução. Isso é interessante.

A brasileira não é muito de se autoatender dentro de uma loja de beleza. Ela quer uma consultoria, quer aprender a fazer. Tem também uma preocupação muito grande com o clima, então, apesar de muitas vezes gostar de uma maquiagem mais pesada, ela diz: 'onde eu moro está muito quente agora, então eu queria uma coisa mais fresca'.

Ela gosta mais dos tons tradicionais. Embora experimente o azul, o roxo, acaba indo para uma coisa mais tradicional. A menos que saia na novela das oito dizendo que a nova tendência é essa cor muito diferente, elas são um pouco mais básicas.

A brasileira tem uma preocupação muito grande com o tom da pele, se está combinando ou não, com uma textura mais matte [fosca] para não ficar com aquela impressão oleosa.

Ela gosta muito da descoberta. Toda vez que trazemos uma marca nova, um produto novo, quer ser a primeira a experimentar, a testar, já dá a opinião dela para todo mundo. É bacana.

Eu tenho, numa loja normal, 5.000 produtos diferentes. Realmente, é muita informação. E até pouco tempo atrás você não tinha no Brasil essa quantidade de opções, o mercado era muito mais restrito. É agora que a brasileira está tendo acesso a tudo isso, e ela quer uma ajuda para se encontrar dentro da nossa loja.

Você ouve a blogueira falar, presta atenção no que está sendo lançado. Mas, e para mim, o que é certo para mim? O que combina comigo? É um mercado de muita inovação, muita novidade, muito lançamento, muitas marcas, muita gente falando a respeito. Então, como é que eu acerto aquela compra, porque, afinal de contas, não deixa de ser um investimento que você está fazendo.

Diria que a nossa loja é menos uma loja com objetivo de compra e mais como entretenimento. Você pode ousar, pode testar, pode ter essa consultoria, sentar no 'bureau studio' e fazer uma minimaquiagem. É muito mais um entretenimento do que só uma compra e venda de produtos.

Maquiagem para homens e para peles negras

Outro dia eu estava em uma loja, e entrou um casal e quem sentou no 'beauty studio' foi ele, não foi ela. Era um casal com filho, inclusive. A mulher falou assim: ‘olha, queríamos alguma coisa para a pele dele’, e o vendedor: ‘ah, sim, um produto de tratamento de pele?’ ‘Não, uma base, porque ele tem uma pele muito marcada de acne e é uma coisa que o incomoda’. E ele experimentou vários tipos de base, comprou também produtos para tratar a pele e saiu de lá feliz da vida.

Era muito comum para as mulheres fazerem esse tipo de coisa, usarem uma maquiagem para se sentir bem, e nesse caso era um homem fazendo isso, com a mulher, com o filho, e saiu gostando da imagem dele, se sentindo mais poderoso. É um barato ver essa transformação.

Qual é a participação do público masculino nas vendas?

É difícil dizer, porque ainda há muita mulher comprando para homem. Quando falamos de fragrância, é um mercado 45% homem x 55% mulher, mas temos outros produtos. O homem vai ficando cada vez mais vaidoso, e o espaço dele acaba aumentando dentro da loja. Maquiagem, por exemplo, é uma coisa muito mais nova que está vindo, mas você já os vê vindo numa boa.

Muitas consumidoras no Brasil têm dificuldade de achar -falando de maquiagem especificamente- produtos para o seu tom de pele. Pessoas de pele negra, por exemplo, têm um número limitado de produtos. Por que isso acontece? O mercado ainda não descobriu esse público? Isso está mudando?

Essa é outra tendência de mercado: ter mais ranges [opções] de cores, principalmente para bases. Estávamos até estudando trazer uma marca para o Brasil chamada Black Up, que é focada no público negro e já está disponível na Sephora na Europa e nos Estados Unidos. Só que começamos a perceber que outras marcas que não têm só esse foco na pele negra já estavam produzindo cada vez mais “shades” [tonalidades] para esse tom de pele.

Um exemplo é a Fenty, que é a marca da Rihanna que acabou de ser lançada lá fora, e que estamos vendo como trazer para o Brasil. A própria Kat Von D, com tons mais escuros. No Brasil, quando você vai para o Nordeste, e mesmo em São Paulo, Rio de Janeiro, há uma procura grande por esses tons de pele. Na nossa curadoria, tentamos ter um volume grande de marcas de tons de pele mais escuros.

Do que a brasileira gosta

Pode usar produto de beleza fora da validade?

UOL – É possível usar produto de beleza fora da validade? Existe alguma diferença entre a validade no Brasil e no exterior?

Flávia Bittencourt – Data de validade no exterior é normalmente depois que abriu o produto. Vai passar uma máscara, normalmente vem escrito: ‘vale por seis meses após a abertura do produto’, porque aí, sim, ela pode ressecar e não ficar com a mesma qualidade que teria se estivesse fechada. Um batom, a mesma coisa, ele pode derreter, pode ficar no sol.

No Brasil, a data de validade é a partir da data de fabricação, o que é muito diferente do que acontece lá fora. E isso é complicado, principalmente quando você trabalha com importação. Imagina, tem de estar preocupado em mandar para o Brasil logo o primeiro lote que foi fabricado e fazer o acompanhamento dessa data de validade em todos os nossos sistemas, em todas as lojas. É muito difícil. E os nossos sistemas, até por ser uma companhia internacional, não estavam preparados para isso, porque isso só acontece no Brasil.

Posso usar depois da data de validade? É isso. Se for da data de fabricação e ele está fechadinho, você nunca usou, dificilmente vai ter algum problema. Em nenhum lugar do mundo tem. Agora, depois que você abriu, aí sim tem de tomar certo cuidado, onde é que você deixou, que exposição teve ao calor, ao sol, se foi corretamente fechado ou não, enfim.

Imposto é um vilão no caso dos importados? Existe alguma possibilidade de termos no futuro preços menos assustadores de importados?

Imposto é um problema de importação? Claro que é. Óbvio que ter um produto produzido no Brasil é mais barato do que um produto importado. Por outro lado, também depende da escala.

Quando é produzido em escala mundial, o custo daquele produto muitas vezes fica baixo e, mesmo com a carga de imposto que você tem no Brasil, ele não chega tão caro. São várias coisas que têm de ser levadas em consideração.

Diria que o setor de cosmético como um todo tem bastante imposto em cima, justamente por ser considerado supérfluo. Quando você olha a quantidade de imposto que há sobre um perfume, um batom, um produto para a pele, é bem pesado, seja ele nacional, seja importado. Claro que o importado acrescenta mais, até porque existem o transporte e o imposto. Mas o cosmético, como um todo, tem uma base tributária alta.

A maior parte dos produtos vendidos na Sephora é importada. Há alguma perspectiva de mudança?

A barreira é você encontrar produtos que sejam bacanas, que a consumidora queira, que sejam bons, de qualidade. Esse é o filtro que nós fazemos. Não é se o produto é importado ou nacional. Temos marcas nacionais bacanas, e não há problema nenhum em aumentar isso.

Na verdade, fico procurando marcas bacanas no Brasil, que tenham uma qualidade alta, que tenham um valor percebido pelo cliente para colocar na loja.

A Sephora, na verdade, é uma grande curadora de marcas, porque tenho a possibilidade de olhar no mundo todo e ver o que há de bacana para a brasileira. Se essa solução estiver aqui no Brasil, melhor ainda.

Qual é a política da Sephora para produtos testados em animais? Vocês têm alguma barreira para isso?

Temos, por exemplo, a Kat Von D, que é uma marca vegana, completamente focada em ter o produto mais clean, que é uma nova tendência do mais natural possível, com menos testes.

Tudo isso, claro, encarece um pouco o produto, porque você quer que ele não tenha teste, que seja o mais natural possível, mas, ao mesmo tempo, que tenha alta fixação, alta pigmentação. Então é sempre um balanço de como você faz essas coisas todas.

Temos uma Kat Von D, uma Clinique, uma série de marcas que têm essa bandeira de não testar em animais. Mas não é uma política necessariamente da Sephora como um todo, nem no Brasil nem globalmente.

Até porque as marcas que são do grupo da Sephora não são cruelty free...

Mesmo as marcas do grupo LVMH [união dos nomes Louis Vuitton e Moët Hennessy, o grupo francês reúne marcas de luxo em vários segmentos. Produtos Dior, Guerlain, Givenchy, Kenzo, Kat Von D, entre outros, fazem parte do portfólio; a Sephora também integra o grupo] não temos obrigação nenhuma de tê-las ou não no nosso portfólio. A curadoria de marcas que vendemos aqui no Brasil é feita no Brasil, para brasileiras.

O que tentamos ver é a aceitação e a adaptação dessas marcas, e já trouxemos para o Brasil marcas que não funcionaram e são top ten vendidas lá fora. Se no Brasil a consumidora não se identificou por algum motivo, não temos problema nenhum, a gente tira a marca e traz outra.

Essa é uma das coisas que estamos aprendendo cada vez mais, dificilmente trazemos uma marca que entra ocupando um espaço muito grande na loja, começamos com 'one bay' [uma parte], testamos, vemos se há uma conexão, colocamos no site primeiro e, a partir daí, vamos expandindo.

É possível fazer um produto de qualidade sem usar testes?

Com certeza é. De novo: custa mais caro. É sempre uma questão de custo, é muito mais do que só da qualidade. Vai ficando mais caro, vai ficando mais difícil. Mas é possível fazer, e já existem muitas marcas.

Essa é uma tendência cada vez maior, principalmente o consumidor millennial vem buscando cada vez mais isso, e as marcas têm tentado responder. Acho que é esse o balanço: como trabalho custo, como trabalho um produto o mais clean possível e ao mesmo tempo de alta qualidade, alta durabilidade, muito eficiente.

Estávamos comentando outro dia que a geração da turma de 40, 50 anos acredita menos em produtos naturais. Talvez porque na época em que começamos a testar produtos de beleza, os naturais não eram tão eficientes, era uma escolha entre um produto natural ou um produto de qualidade.

Hoje em dia isso já não é mais verdade. Você tem produtos naturais com qualidade enorme, e é isso o que tentamos mostrar para a consumidora.

Você apostou num modelo de quiosque. Foi com a intenção de trazer um público que não seria atraído de imediato para as lojas?

Foi para tentar resolver um problema. As pessoas pensam: ‘puxa, na loja da Sephora, é tudo importado, então deve ser caro’. Brasileiro tem essa ideia de que, se é importado, é caro. A segunda coisa é que as pessoas pensavam que a nossa loja é tão luxuosa, tão bonita, então é cara.

Não era essa a nossa intenção. Queríamos ser democráticos, queríamos que todo cliente pudesse entrar e comprar na nossa loja. Com esse objetivo, eu fiz uma análise, pegamos a nossa marca própria que é a Sephora Collection e baixamos o preço no Brasil, alinhamos com o preço dos competidores locais, marcas tradicionais brasileiras, que todas as brasileiras consomem.

As vendas subiram, mas pouco. Nós fizemos uma pesquisa, e as clientes continuavam não entrando [nas lojas]. Havia produto que elas costumam comprar, no preço que elas costumam comprar, colocamos o produto na vitrine e, mesmo assim, havia um bloqueio de ela entrar na nossa loja.

Bloqueio esse que não acontece no site. No site, 60% das nossas vendas é para cliente classe C. E na loja essa conexão com a cliente de uma renda mais baixa, mais média, não acontecia. Qual foi a ideia? Vamos tirar a marca de dentro da loja.

O quiosque é muito democrático, você não tem nem de passar pela porta. Vamos ver se essa consumidora vem e interage com o nosso produto e cria uma conexão. E o resultado foi fantástico, realmente elas vieram, compraram. E depois ela continuava essa compra, passava a entrar na loja, ia para o site.

Há outras coisas que o quiosque ajuda, a testar alguma marca, aumentar o conhecimento de marca, e para expansão é muito mais fácil abrir um quiosque do que abrir uma loja. Mas o objetivo principal foi esse: falar com uma consumidora que, por algum motivo, se sentia inibida de entrar na nossa loja.

Beleza da pele negra

A Sephora é assim

  • Ano de fundação (no mundo)

    1970

  • Início da operação no Brasil

    Em 2012, foi a inauguração da primeira loja física

  • Funcionários no Brasil

    650

  • Unidades no Brasil

    23 lojas e 13 quiosques

  • Unidades no mundo

    2.300 lojas em 33 países

  • Produtos

    Mais de 200 marcas comercializadas

Pode ter quatro filhos e investir na carreira ao mesmo tempo

UOL – Como foi criar quatro filhos enquanto crescia na carreira? Sentiu que estava abrindo mão de alguma coisa em algum momento?

Flávia Bittencourt – Com certeza, você sempre abre mão. Abre mão de uma reunião com professora, de uma consulta no médico, abre mão às vezes de estar no aniversário deles, ou no dia em que eles vão fazer uma apresentação na escola. São escolhas. Você tem sempre de abrir mão? Não.

A minha terceira filha nasceu, de um segundo casamento, quando eu já era diretora e já havia 400 pessoas reportando para mim. Uma posição de enorme visibilidade. Mas isso não me impediu de ter essa filha. Era um casamento novo, meu marido não tinha filhos, queríamos ter um filho juntos.

Engravidei e levei as coisas numa boa. Abria mão ora de um lado, ora do outro, você tem sempre de adaptar. O marido participando muito, porque ele tem de ajudar, não tem jeito, você tem de ter um companheiro que esteja a fim de fazer.

Depois que essa minha filha nasceu, houve uma explosão de gravidezes de mulheres na empresa. E várias chegaram para mim e disseram: só tive coragem de engravidar depois que vi você, como diretora, engravidar, o que mostra que eu não preciso escolher entre uma coisa e outra, que dá para fazer as duas coisas e que a minha carreira não vai parar aqui porque tomei a decisão de ter um filho.

Acho isso superbacana. Quando você é diretora, você tem essa visibilidade dentro da empresa e pode influenciar a vida de outras mulheres.

Pequenas escolhas como essas, você faz o tempo todo, está sempre negociando, não há jeito. Está negociando no trabalho, em casa, com o seu marido, com os seus filhos, mas dá para fazer tudo.

O que você tem de colocar na balança é: tudo tem um custo, e esse custo é para a mulher, como também é para o homem. Muitas vezes o meu marido também tem de abrir mão de uma série de coisas, de reuniões ou de coisas que ele está fazendo, para me ajudar com as crianças.

O quanto você quer aquilo? O quanto aquilo é importante para você, seja a sua família, os seus filhos, o tempo com o seu marido, o trabalho?

E não é só isso que você tem de encaixar quando você é mulher. Tem de encaixar academia, tem de fazer um esporte, eu tenho de fazer o cabelo, a unha, tenho de ter um tempo para mim, para ler um livro, para assistir a televisão.

Você, de certa forma, tem esse privilégio de poder escolher, talvez nem todas as mulheres possam. Como vê o caminho a trilhar para que todas tenham oportunidades de escolha?

Quando comecei, minha primeira filha foi no meu primeiro ano de trabalho, eu havia acabado de me formar. E não pude ir para o mercado de trabalho porque estava grávida. E durante muito tempo eu não tinha dinheiro para ter uma babá, para colocar no berçário, na escolinha... Já passei por momentos complicados também.

A primeira coisa que eu digo é: você tem de saber o que você quer e tem de ter muita resiliência. Vai haver dias bons e ruins, dias difíceis, por isso precisa ter muito claro o que você quer e por que você quer, o que a motiva.

A segunda coisa é um companheiro que ajude e dê suporte. Porque, se ele é o primeiro a reclamar, fica difícil. Você tem de dividir os seus sonhos com o seu companheiro para saber que ele vai ajudar você nesse caminho.

A terceira coisa é na sua empresa. Você tem de ser muito honesta.

Quando era muito jovem ainda, falei com o meu chefe: olha, tenho de sair daqui às seis da tarde, haja o que houver, porque tenho de buscar minha filha na escola, não há solução, não há quem busque, eu moro em São Paulo, não tenho parente aqui, a escolinha fecha.

E levantava no meio da reunião, seis horas da tarde, e ia embora. Nunca fui mandada embora por causa disso, porque sempre fui muito honesta com o meu chefe sobre qual era a minha limitação, e eu chegava em casa muitas vezes e ia trabalhar depois do horário para terminar o que tinha de fazer.

Já aconteceu uma cena muito no início da minha carreira que eu também gosto de contar. Estava no carro com o presidente da minha empresa. Estávamos indo para um encontro com a imprensa sobre um projeto que estávamos lançando.

Eu era responsável pelo marketing, então um encontro com a imprensa era uma função minha. E estava no carro com ele, o celular tocou e era da escola do meu filho dizendo: ‘o Lucas bateu a cabeça aqui, abriu um buraco na testa, e a gente sugere que você o leve agora para o pronto-socorro’. Você faz o quê? ‘Para o carro, eu vou descer’.

O presidente olhou para mim com os olhos arregalados: ‘você não vai ao evento com a imprensa?’ ‘Não, vou buscar o meu filho porque ele abriu a cabeça e vou levá-lo ao hospital’. E realmente saí dali, peguei um táxi, fui para a escola do meu filho, fui para o hospital, e o evento ocorreu sem eu estar presente. Nunca houve nenhum problema por causa disso, porque, de novo, eu fui muito transparente. E ele entendeu claramente aquela situação.

É muito importante saber que empresa é essa em que você está? Que chefe é esse que você tem? Ele entende o outro lado? Ele entende as suas necessidades? E quando você está presente, você está realmente presente, está realmente entregando o melhor? Sempre existem os dois lados.

Sempre isso que eu tentei fazer na minha carreira e acho que tive muita sorte de ter pessoas bacanas ao meu lado, que sempre entenderam quando tinha de optar entre uma coisa e outra.

No início da carreira, você tinha em mente que queria chegar ao topo da hierarquia? Como foi a construção da sua carreira, principalmente sendo mulher, quais entraves enfrentou?

Nunca pensei: 'quero ser presidente de uma empresa'. Queria fazer parte das decisões estratégicas de uma empresa, queria ajudar a empresa a definir os rumos, os caminhos. Essa sempre foi uma parte, desde o início da minha carreira, que me instigou. Era isso o que eu sabia.

E aos poucos você vai indo e sempre assim: 'puxa, mas eu queria fazer ainda mais, queria ser mais dona dessas decisões'. E aí você acaba chegando onde eu cheguei. O que me moveu não foi o cargo – ‘quero ser presidente’ –, nunca foi o dinheiro – ‘quero ter esse salário ou esse bônus’ –, sempre foi 'o que eu posso fazer a mais'.

Simon Plestenjak/UOL e Arte/UOL

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