"Faraó" do povo

Mohamed Salah, o ídolo que banca casamentos, perdoa ladrão e é visto como figura quase sagrada no Egito

Bruno Freitas Do UOL, em São Paulo
Islam Safwat/NurPhoto via Getty Images

O homem mais importante do país

Mohamed Salah Ghaly nasceu em 1992 no Egito e, em seu tempo de vida, jamais viu seu país disputar uma Copa. Neste período, a nação passou por turbulências políticas e trocas de chefe de estado, mas nada de Mundial. No futebol, foram quatro títulos africanos no longo intervalo sem o torneio da Fifa. Mas eis que o garoto de um vilarejo enfim conseguiu saciar o sonho de várias gerações.  

Os dois gols da dramática vitória sobre Congo em 2017, no Cairo, alçaram Salah a uma condição quase sagrada perante os compatriotas. O atacante conseguiu isso em paralelo a outra façanha. Um festival de atuações decisivas pelo Liverpool fez do jogador o primeiro egípcio na história a figurar entre os melhores do mundo.

Nas ruas do Egito, uma população apaixonada por futebol espalha o vermelho das camisas da seleção e do Liverpool – à espera da final da Champions League neste sábado e da Copa. Mas a devoção a Salah já transcendeu o futebol, graças a um ídolo capaz de ajudar doentes, noivos sem dinheiro e até pequenos criminosos. 

Salah teve cerca de 1 milhão votos nas eleições deste ano, numa rasura de cédula que unia protesto e adoração. O garoto que há uma década viajava 320 km por dia para treinar é hoje, sem dúvida, a grande personalidade na terra dos faraós. 

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O garoto de Nagrig

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Salah ajuda em casamentos e financia hospital

Nagrig é uma pequena cidade a 130 km do Cairo, localizada no delta do Rio Nilo. O ídolo da seleção cresceu no local, como o mais velho de quatro irmãos. Apesar de ter deixado o vilarejo há uma década, ainda faz questão de se manter presente, com atenção e ajuda em dinheiro. O jogador que embolsa no Liverpool R$ 575 mil por semana separa uma pequena fatia para os conterrâneos. 

Entre outras ações, Salah bancou a compra de uma ambulância, uma máquina de diálise e duas incubadoras de bebês prematuros para o hospital local. O atacante de 25 anos também costuma doar dinheiro para noivos da cidade em dificuldades para pagar cerimônias de casamento.

O menino que no passado imitava os ídolos Totti, Ronaldo e Zidane nas peladas de Nagrig hoje dá nome ao campo de futebol na escola da cidade. O espaço, assim como a academia esportiva municipal, saiu do papel graças a sua ajuda.

"Ele é o maior jogador da história do Egito, uma lenda em campo, mas um homem incrível fora dele", comentou Marwan Ahmed, do site local Kingfut. "Ele é mais do que um herói nacional. Se tornou um ícone para todos os egípcios, gostem ou não de futebol. Posso dizer que ele é a luz na escuridão para o povo egípcio", comentou Mohammed al-Banna, jornalista esportivo egípcio. 

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"Milagre" em combate às drogas

Em abril passado, Salah emprestou seu poderoso prestígio no Egito a uma campanha que combate o uso de drogas entre jovens. Na principal ação do projeto, o jogador do Liverpool estrelou um comercial de TV, com veiculação nacional.

Em apenas três dias de campanha com o uso da imagem de Salah, o número de pessoas que procuram tratamento em vício em drogas quadruplicou, de acordo com Ghada Waly, ministro da solidariedade social no Egito. Nas 72 horas iniciais, oito milhões de pessoas assistiram à peça através de Facebook e Instagram. 

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Cinco ônibus e mais de 320 km por dia como jovem jogador

Salah e sua família aceitaram passar por sacrifícios durante sua formação como jogador. Recrutado aos 14 anos pelo El Mokawloon, time do Cairo, o garoto de Nagrig teve que topar uma rotina extenuante. Todo dia o aspirante a atacante precisava tomar cinco ônibus e encarar 320 quilômetros de estrada para ir e voltar da capital do país.

Em alguns dias, quando estava disponível, o pai de Mohamed servia de motorista ao filho no trajeto. Mas na maioria das vezes o futuro atacante do Liverpool encarava o trajeto sozinho.

Depois de um período, o El Mokawloon convidou Salah a se instalar no alojamento do time, num quarto dentro do estádio Osman Ahmad Osman. O jovem era considerado um jogador quieto e disciplinado, que mantinha uma rotina regrada de treinos e refeições leves – sopa, frango e salada. 

Sorte de escapar do antagonismo Zamalek x Al-Ahly

Quando Salah era um jogador promissor de 18 ou 19 anos, os gigantes egípcios Zamalek e Al-Ahly poderiam ter comprado ele. O presidente do Zamalek disse que ele precisava trabalhar muito, e o Al-Ahly não se aproximou. Um ano depois ele foi jogar na Suíça e começou a brilhar. E adivinhe: os torcedores dos dois times passaram a insultar os dirigentes por não trazer Salah quando possível. Pensamos que foi a melhor coisa que aconteceu a ele. Não seria a unanimidade de hoje se tivesse passado por um dos rivais

Mohammed al-Banna, jornalista egípcio

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Perdoou ladrão e doou mais dinheiro

Como um jogador promissor do El Mokawloon, Salah teve a casa roubada enquanto jogava na cidade de Alexandria. O ladrão foi apanhado alguns dias depois, e o pai do atacante quis denunciá-lo às autoridades. Então o atleta ainda adolescente interveio de forma surpreendente.

Salah convenceu o pai a não prestar queixa e ainda chamou o ladrão em sua casa para doar uma quantia em dinheiro. Pessoalmente, ainda prometeu ao rapaz que o ajudaria a encontrar um emprego.

"Uma das minhas histórias favoritas é quando ele foi roubado. Ele convidou o cara que o roubou para lhe dar dinheiro. Não sei se ele é um santo ou coisa assim por ter perdoado", disse a jornalista egípcia Reem Abulleil em contato com a reportagem. 

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Saindo do Egito

REUTERS/Stringer REUTERS/Stringer

Tragédia que matou 79 pessoas mudou sua carreira

O futebol do Egito sofreu um duro golpe em 1º de fevereiro de 2012. Durante uma partida entre o Al-Masry e o Al-Ahly, um confronto generalizado de torcidas tomou o gramado e deixou 79 mortos, além de dezenas de feridos. O incidente chocou o país e resultou no cancelamento da temporada do futebol local.  

Então, para manter as seleções em atividade, a federação marcou partidas amistosas. Numa delas, em março, a equipe sub-23 enfrentou o Basel da Suíça, em jogo que teve Salah como destaque, com dois gols marcados. O atacante partiria para reforçar o time suíço já no mês seguinte.

"O incidente mudou sua carreira. Por causa do que aconteceu não era possível jogar futebol no Egito por um tempo. A seleção nacional foi duramente prejudicada. Isso acelerou o processo para que Salah chegasse a um clube da Europa", relatou Marwan Ahmed, jornalista do site Kingfut, sobre futebol egípcio.

Reuters/Carl Recine Reuters/Carl Recine

Champions já vale Copa para o Egito

Caso conduza o Liverpool ao título da Liga dos Campeões neste sábado, Salah dará um passo considerável para quebrar o domínio Messi-Cristiano Ronaldo no prêmio de melhor do mundo. Dentro do Egito, em particular, uma possível vitória sobre o Real Madrid na Ucrânia converterá o atacante nascido em Nagrig em uma espécie de mito já antes da Copa do Mundo.

"O país inteiro para em cada partida do Liverpool em que ele joga. Pessoas em cafés, todas juntas em volta das TVs", disse a jornalista Reem Abulleil.

"Três anos atrás, se alguém dissesse que teríamos um jogador disputando a final da Liga dos Campeões, considerado um dos dois melhores do mundo, ririam na sua frente", refletiu Marwan Ahmed, jornalista egípcio do site Kingfut.

Após a Champions, Salah se juntará à seleção do Egito. Na Copa, a equipe africana está no Grupo A e encara Uruguai, Rússia e Arábia Saudita. 

Como o Egito chegou à Copa

Salah foi o herói em jogo decisivo das eliminatórias

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