40 anos em quatro

Da Copa das Copas à Rússia, futebol se misturou às crises política, econômica e de representatividade no país

Brunno Carvalho e Daniel Lisboa Do UOL, em São Paulo
Jefferson Bernardes/VIPCOMM

Juscelino Kubitschek disse que o Brasil iria crescer 50 anos em cinco. Michel Temer afirmou que seu governo fez o país crescer 20 anos em dois. Para o brasileiro que torceu na "Copa das Copas" e sofreu com o 7 a 1, a sensação até o Mundial da Rússia, que começa nesta quinta, foi a de 40 anos vividos em quatro. Crises de ordem política, econômica e de representatividade, com uma avalanche de acontecimentos abalando o país. Representação fundamental da cultura nacional, o futebol sempre esteve no meio de tudo, no centro das ações ou discretamente misturado a elas. 

O pugilista estava grogue. Aí você leva para o córner e dá um murro nele. Ele desmaia

A analogia é do economista Luiz Gonzaga Beluzzo e remete ao Cristo Redentor alçando voo, na capa da The Economist, ou ao gigante acordando, na propaganda do uísque Johnnie Walker. A Copa que deveria reforçar o Brasil em alta chegou com o país já dando sinais de crises. Fonte de gastos e escândalos políticos, o Mundial foi o pontapé de partida de uma descida ladeira abaixo, dos escândalos de corrupção à crise dos combustíveis, passando pela queda de Dilma Rousseff. 

“No Brasil, o futebol sempre mimetiza a realidade”, analisa o historiador Flávio de Campos, historiador da USP e coordenador do Ludens, grupo de estudo sobre o esporte. A versão futebolística da crise começa no 7 a 1, um golpe na auto-estima do torcedor, e só dá sinais de mudança com a chegada de Tite. O "salvador da pátria", no entanto, apareceu tarde demais, com o país já dividido por cores. 

Como chegamos até aqui

Arte/UOL

Debatemos seriamente sobre intervenção militar. O candidato em primeiro lugar nas pesquisas é o Bolsonaro. Temos uma sociedade onde os valores fascistas estão ganhando corpo.

Flávio de Campos

Flávio de Campos, historiador da USP e coordenador do LUDENS

Nunca vi uma situação como a de hoje. O ambiente era muito melhor mesmo antes do Plano Real em 1994.

José Francisco de Lima Gonçalves

José Francisco de Lima Gonçalves, economista-chefe do Banco Fator

Junior Lago/UOL Junior Lago/UOL

Da arena da Copa para a rua

A torcida verde e amarela saiu dos estádios da Copa de 2014 para ir às ruas pedir o impeachment. Para o historiador Flávio de Campos, esta ideia resume o quanto futebol e política se entrelaçaram naquele momento. Vaiada e xingada pelo público presente à Arena Corinthians no jogo de abertura da Copa, a então presidente Dilma Rousseff veria, poucos meses depois, a camisa da seleção brasileira se transformar em uma espécie de uniforme das multidões que pediam sua saída.

“A foto do Aécio Neves com a camisa verde e amarela assistindo a partida seleção simbolizou uma captura das cores do Brasil. Tanto que, no segundo turno das eleições, seus partidários convocam as pessoas a irem às urnas com a camiseta da seleção. Era assim que os eleitores do Aécio se diferenciavam”, diz o historiador. As imagens de meses depois não deixam dúvidas. Ruas carregadas de multidões de pessoas vestidas como Neymar pediam a queda de Dilma Rousseff. Do outro lado, o vermelho foi escolhido para defender o lado contrário.

“A camisa da seleção brasileira passou a ser identificada por aqueles que foram contra o impeachment como uma camisa que simbolizava a direita, os "reaças", os "coxinhas", diz Ronaldo Helal, coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME). “É uma grande bobagem. Você pode não gostar da camisa da seleção porque tem o escudo da CBF, que é corrupta, mas as cores dela são de todos nós.”

De 2016 para cá, o Brasil vem descendo ladeira abaixo, os casos de corrupção continuam e não tiveram mais panelaços. Temos um país que continua rachado e pessoas que passaram a ter uma implicância maior com as cores do Brasil"

Ronaldo Helal

Ronaldo Helal, sóciólogo e coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte

Seleção já foi afetada por polarização política

A apropriação dos símbolos nacionais por um dos espectros políticos não é exclusividade do período atual do país. Em outros momentos, a própria seleção brasileira chegou a ser rejeitada por quem militava contra a ditadura. O mais marcante aconteceu na Copa do Mundo de 1970, vencida pelo Brasil.

“Gente envolvida na luta contra a ditadura disse que não iria acompanhar a Copa porque a seleção era usada pelo regime. Mas, quando aquela seleção espetacular começou a jogar, há relatos de que até pessoas que estavam presas em quartéis, sob tortura, passaram a torcer pelo Brasil”, relembra o sociólogo Maurício Murad.

Cena parecida é retratada no filme “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, de Cao Hamburger. O personagem de Caio Blat, um comunista que lutava contra o regime, diz que “uma vitória da Tchecoslováquia seria uma vitória do socialismo” na estreia contra o Brasil. Quando o time de Pelé balançou as redes, contudo, as diferenças ficaram de lado e a comemoração imperou.

“As cores do Brasil e a camisa da seleção sempre foram um símbolo flutuante. Em 1982, tinham um quê de reconciliação nacional. De transição da ditadura para a democracia. Em contrapartida, o que acontece é que passa a haver um certo constrangimento em usar o verde e amarelo”, explica o historiador Flávio de Campos.

Folhapress Folhapress

Crise pré-Copa não é exclusividade de 2018

A Copa da Rússia não é a primeira que começará sob a influência da atividade política no país. A história do Brasil tem seus períodos de maior ou menor turbulência, mas uma coisa é certa: com raríssimas exceções, o país passou por algum tipo de crise em quase todos os períodos entre Mundiais.

Se entre 2014 e 2018 a bagunça chegou a níveis alarmantes, entre 1966 e 1970 a ditadura militar entrou em sua fase mais repressiva com a emissão do AI-5 (Ato Institucional 5) e a permissão para fechar o Congresso e suspender direitos políticos. A seleção brasileira também era contestada após a eliminação, ainda na primeira fase, na Copa de 1966.

Entre 1978 e 1982 começava a abertura política e o Brasil embarcou para a Espanha com uma das seleções mais queridas da sua história, mas a economia degringolava com inflação e recessão. No caminho do tetra, a situação era a oposta. Já redemocratizado, o país finalmente voltara a ganhar uma Copa do Mundo e a população aproveitava a estabilidade econômica e a paridade com o dólar trazida pelo Plano Real (que durou até o ano seguinte).

Para o bem ou para o mal, o futebol e as Copas, em especial, sempre "conversaram" com as crises. 

  • Brasília e o vira-lata

    Sob a gestão de Juscelino, o Brasil progredia e tinha até capital nova. Uma das eras de maior desenvolvimento do país desembocou no primeiro título mundial, em 1958. A conquista enterra a "síndrome do vira-lata" de uma década que começou com suicídio de Vargas e Maracanazo.

    Imagem: Folhapress
  • Auge do regime antes do tri

    A caminhada para o tri, em 1970, foi de recrudescimento da ditadura militar com a emissão do AI-5, que cassava mandatos, suspendia direitos políticos e dava ao regime autorização para fechar o congresso nacional. A suposta interferência do regime na seleção "temperou" o clima político tenso.

    Imagem: Roberto Stuckert/Folhapress
  • Seleção das diretas

    O início da abertura culminou com as manifestações pelas "Diretas Já" em 1983 e 1984 e a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985. A seleção, com figuras como Sócrates, se misturou aos processos políticos que pediam a volta da democracia no país.

    Imagem: José Nascimento/Folhapress
  • Plano Real e o fim da fila

    Depois de anos de inflação e crise econômica, o Plano Real e a conquista do tetra após longos 24 anos de jejum na Copa do Mundo foram um alívio para o brasileiro dos anos 1990, que começavam a viver a estabilização da democracia.

    Imagem: Sérgio Tomisaki/Folhapress
  • Penta com crise

    Mais tranquilo se comparado a décadas anteriores, o clima antes do penta, em 2002, foi afetado pela crise de câmbio do fim da década de 1990 e a de energia já perto da Copa. Na política esportiva o clima também era tenso com a CPI CBF/Nike. Nada disso impediu o Brasil de Felipão.

    Imagem: REUTERS/Jamil Bittar
  • Vacas gordas da era Lula

    Nos mandatos de Lula, marcados por crescimento econômico, estabilidade política e alta popularidade do presidente, a seleção não soube surfar a onda do penta e decepcionou tanto em 2006 como em 2010.

    Imagem: Eduardo Knapp/Folha Imagem
Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

O "candidato" perfeito. Justamente porque não quer ser candidato a nada

O justo. O gestor. O não-político. Em época de profunda crise de representatividade política, com a parcela de indecisos girando em torno de 30% nas pesquisas eleitorais, Tite parece ser a única unanimidade do Brasil. O treinador assumiu a seleção quando o time sequer estava na zona de classificação para a Copa do Mundo nas eliminatórias. Como num passe de mágica, fez a equipe começar a jogar bola e chegar à Rússia com espantosos 84% de aproveitamento em 21 jogos.

E passes de mágica são justamente o que muitos eleitores brasileiros parecem desejar hoje. Tite é uma espécie de candidato à presidência ideal, mesmo que apenas no imaginário coletivo do país - ele se incomoda com qualquer menção ao assunto. Será que ele faria com o Brasil o que fez com a seleção? Arrumaria tudo de uma hora para a outra, trazendo paz e otimismo?

Para o sociólogo Maurício Murad, o respeito e a confiança que o técnico da seleção desperta lembram Telê Santana em 1982. “São figuras parecidas. Todo mundo admirava a ética que o Telê tinha em relação ao futebol, o fato de ele jogar sempre para frente, os jogadores o respeitavam muito. São características muito semelhantes”, diz Murad. “O Brasil não tem líder’, diz Juca Kfouri. “Se ganhar a Copa, capaz de lançarem a campanha ´Tite presidente”.

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