A nova cara da Copa

Destaques multiculturais do Mundial traduzem realidade de seleções poderosas da Europa

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL

Você já deve ter lido em algum lugar da internet uma frase do atacante Lukaku, um dos destaques da Copa do Mundo da Rússia, ao site Player's Tribune: "Quando as coisas corriam bem eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga. Mas quando as coisas não corriam bem eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga descendente de congoleses". 

Lukaku fala por ele e por outros. Há presença nítida de jogadores imigrantes ou descendentes de imigrantes nas seleções da Europa que estiveram em campo no Mundial, reflexo da internacionalização que os países sofreram graças às ondas migratórias, especialmente de antigas colônias da África e da América, além de Ásia e Oriente Médio à União Europeia. Há mudanças no quadro demográfico do Velho Continente fruto destes fatores sociais e imigratórios, e quem está jogando futebol é parte deste processo.

A Copa do Mundo mostra a nova cara da Europa. O futebol acolhe e é efeito de fenômenos como a imigração e o fluxo de refugiados, que mudaram os times nacionais e contribuíram para a formação de seleções mais fortes em razão da miscigenação. Mbappé, o finalista pela França, é filho de pai camaronês e mãe argelina, ambos imigrantes. Rakitic, que também disputará a decisão pela Croácia, é nascido na Suíça, filho de pais croatas que moravam na Bósnia e emigraram em razão de tensões étnicas. Entre os que caíram na semifinal a ascendência africana vai além de Lukaku. Dele Alli, da Inglaterra, por exemplo, é neto de um rei da tribo Iorubá, na Nigéria, onde também nasceu seu pai.

Ao todo são 114 jogadores considerados "multiculturais" nas 14 seleções do continente (a Fifa considera o próprio jogador, pais ou avós nascidos em outros países neste recorte). Isso acontece justamente porque o futebol tem a função de integração. O esporte restringe menos a determinados perfis étnicos do que universidades ou cargos de comando, e a vitória destes destaques multiétnicos também pode ser um tipo de conquista social.

Destaques multiculturais da Europa

  • Ashley Young

    Nascido em Stevenage, Inglaterra; Tem ascendência jamaicana. Joga pela Inglaterra.

    Imagem: Divulgação
  • Umtiti

    Nascido em Yaoundé, Camarões; É naturalizado francês. Joga pela França.

    Imagem: Laurence Griffiths - FIFA/FIFA via Getty Images
  • Kompany

    Nascido em Uccle, Bélgica; Tem ascendência congolesa. Joga pela Bélgica.

    Imagem: Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images
  • Thiago Alcântara

    Nascido em San Pietro Vernotico, Itália; Filho do brasileiro Mazinho, hoje joga pela Espanha.

    Imagem: Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images
  • Rakitic

    Nascido em Möhlin, Suíça; Filho de imigrantes croatas e bósnios. Joga pela Croácia.

    Imagem: Patrick Smith - FIFA/FIFA via Getty Images
  • Rashford

    Nascido em Manchester, Inglaterra; Tem ascendência são-cristovense. Joga pela Inglaterra.

    Imagem: Divulgação
  • Fellaini

    Nascido em Etterbeek, Bélgica; Tem ascendência marroquina. Joga pela Bélgica.

    Imagem: Mike Hewitt - FIFA/FIFA via Getty Images
  • Pogba

    Nascido em Lagny-sur-Marne, França; Tem ascendência guineana. Joga pela França.

    Imagem: Laurence Griffiths - FIFA/FIFA via Getty Images
Buda Mendes/Getty Images Buda Mendes/Getty Images

Miscigenação tira "exclusividade" da seleção brasileira

A mistura de etnias é base da formação da população brasileira. Nativos, escravos trazidos pelos colonizadores e imigrantes de diversas nacionalidades constituíram um indivíduo miscigenado, de variadas identidades culturais. Essa característica agora também passa a ser dos europeus. O homem miscigenado, portanto, está em mais países, e o jogador miscigenado está espalhado por mais seleções. A França e seus 21 atletas multiculturais é exemplo disso. 

Houve uma internacionalização, uma globalização que afetou tudo. Na minha pesquisa fui pegar desde a criação da Lei Bosman (regra que permitiu que jogadores de países membros da União Europeia poderiam atuar em qualquer nação da UE sem serem considerados estrangeiros, além de acabar com o "passe" dos jogadores). Somada a legislação à expansão do futebol com mercado e televisão, isso mexeu no perfil dos clubes. Houve um trânsito de transferências, mais jogadores de outros continenentes e novas características das ligas locais. Isso influenciou as seleções e esse impacto atrapalha, de certa forma, os brasileiros também, porque há o êxodo de atletas e o crescimento da capacidade dos adversários
ler mais

Guilherme Freitas

Guilherme Freitas, Jornalista e mestre em estudos culturais, autor da dissertação "As seleções de futebol multiculturais da União Europeia"

Robert Pratta/ Reuters Robert Pratta/ Reuters

Da "ruptura com a população" ao "Bravo, França!"

A questão sobre identidade é um tabu na França, e o futebol faz parte das discussões.

Marine Le Pen, candidata votada por mais de 10 milhões de pessoas, mas derrotada por Emmanuel Macron nas eleições presidenciais do país em 2017, tem postura combativa e irônica sobre a seleção miscigenada. Ela já deu parabéns à Costa do Marfim depois de uma vitória francesa e, durante uma crise de resultados do país nas Eliminatórias para 2014, disse que havia "ruptura entre a população francesa e a seleção" porque os jogadores eram "uma espécie de quadrilha de rapazes rebeldes mal-educados que não têm qualquer orgulho nacional". Segundo ela, isso ocorria porque o futebol é "ultraliberal" e a seleção "demasiadamente multicultural".

Na época houve diversas reações contrárias, mas Le Pen manteve a posição radical. Aparentemente ela só mudou de ideia diante do sucesso francês na Copa da Rússia. Após a classificação contra a Bélgica ela foi ao Twitter: "Bravo, França! Agora é domingo". A postagem teve mais de 3 mil interações, e a mais comentada delas foi uma montagem que representava os jogadores de ascendência africana da equipe. "Onde está a França?", perguntou o internauta, acompanhado de um emoji dando risada.

Reprodução/Twitter Reprodução/Twitter
Arte/UOL
Arte/UOL
Ueslei Marcelino/Reuters Ueslei Marcelino/Reuters

Europeus restringem imigração durante crise humanitária

Há dez anos, um acordo do Conselho de Ministros da União Europeia buscou limitar a chegada de imigrantes ao necessário para o mercado de trabalho, com firmeza total contra ilegais e sem processos de regularização frequentes. Mais recentemente, entretanto, a delicada situação humanitária vivida por refugiados principalmente do Oriente Médio e da África criou um novo fluxo migratório para a Europa. Eram fugitivos de conflitos e violações de direitos humanos que forçaram atualizações neste controle de fronteiras.

Alguns países recusam-se a receber refugiados, como Polônia e Hungria, enquanto outros são mais abertos em relação à entrada de estrangeiros, como Espanha e Alemanha. Fato é que a entrada no continente foi endurecida, também pelo aumento das taxas de criminalidade locais.

Trazendo para a Copa: de acordo com o Aida (Asylum Information Database), os quatro países mais bem colocados do Mundial têm sido majoritariamente restritivos quanto à entrada de estrangeiros. Em 2017, em números arredondados, as taxas de rejeição são de 46% na Bélgica, 67% no Reino Unido (do qual faz parte a Inglaterra), 69% na Croácia e 73% na França. A taxa alemã, para efeito de comparação, foi de 37%. O futuro de novos Lukakus, Dele Allis e Mbappés pode ser afetado.

Caso marroquino evidencia que também existe fluxo inverso

Nas 14 seleções da Europa na Copa do Mundo foram 114 jogadores multiculturais (35% do total). O fluxo, porém, também é inverso: são 41 jogadores deste perfil nas seleções africanas - os mesmos 35% nas cinco equipes classificadas para o torneio na Rússia.

Esse aumento expressivo também vem desde os anos 90, e a maior parte é de jogadores nascidos na Europa, mas descendentes de imigrantes que deixaram seus países para buscar uma vida melhor, e que acabam se identificando mais com o país dos pais e avós. Às vezes a questão da concorrência menor em seleções africanas também pesa. Um exemplo é Hakim Ziyech, que jogou a Copa do Mundo por Marrocos.

Ziyech é holandês, veste a camisa 10 do Ajax, mas recusou defender a seleção da terra natal e irritou o ídolo holandês Van Basten, que o chamou de "garoto estúpido". Ele rebateu: "Eu nasci aqui (Holanda), mas minhas raízes estão lá (Marrocos), meu pai está enterrado lá e as pessoas gostam muito de mim lá. Aqui parece que sempre tentam encontrar algo negativo".

Além de Ziyech, outros três jogadores nascidos na Holanda jogaram por Marrocos na Copa do Mundo da Rússia.

Oli Scarff/AFP Oli Scarff/AFP

Até no Brasil, perfil da seleção fala sobre a realidade dos países

Enquanto as seleções europeias miscigenadas mostram a nova cara do continente após fluxos migratórios recentes, a convocação do Brasil para a Copa do Mundo da Rússia evidencia uma realidade interna. O Nordeste, segunda região mais populosa do país, teve apenas um representante na equipe nacional, que foi o atacante Roberto Firmino - reserva, o jogador nascido em Maceió, Alagoas, atuou em quatro partidas do Mundial em um total de 82 minutos. Além dele foram 15 nascidos no Sudeste e 7 no Sul.

"Poder levar um pouco do meu sangue nordestino para a seleção é muito especial", disse o atacante, ao "Diário do Nordeste", antes da Copa. O jogador do Liverpool sabe que representa uma região que sofre com as desigualdades sociais do país.

O IBGE mostrou, em abril, que a concentração de renda aumentou no Nordeste em 2017. O 1% mais rico da população recebe 44,9 vezes mais que a camada 50% mais pobre, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc). Isso dificulta o acesso a oportunidades, inclusive no esporte. 

Curtiu? Compartilhe.

Topo