2010

Copa Brasileira de Letras: Rumo ao portal. Ou "Memórias nada sentimentais de Ulrich em Banânia"

Reinaldo Azevedo Colaboração especial para o UOL
UOL

Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 2010 é de Reinaldo Azevedo, sobre as lembranças do Mundial de um cronista de Banânia.

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Rumo ao portal. Ou: Memórias nada sentimentais de Ulrich em Banânia

Ulrich acordava todas os dias na esperança de ter se transformado num inseto. Ensaiara certa feita rabiscar as razões de seu anseio: “Uma vida voraz, sem propósito nem paixões; eis a verdadeira liberdade. Desenvolver a ideia”.

Ao alongar os braços e as pernas, espreguiçando-se como quem grita em silêncio por socorro; ao sentir aquele misto de dor e orgulho que o impediria de mijar por algum tempo, até que o sangue refluísse dos corpos cavernosos e voltasse a irrigar ambições mais flácidas; ao devolver às próprias narinas, mão em concha, o hálito pesado de comidas e ideias mal digeridas... Teve tempo para um pensamento besta. Nos filmes, casais acordam e se beijam com paixão. Roteiristas se recusam a aceitar a nossa condição, entre cheiros e fraquezas. Ulrich teria de encarar a sua melancólica humanidade.

Ao pôr os pés no chão, uma algazarra no mundo dos outros. Nenhum homem é um besouro. Ou uma ilha. Gol. A Seleção de Banânia disputava as quartas de final com a Holanda. Não é que a alegria alheia incomodasse Ulrich. Percebesse assim e afastaria o pensamento porque inclinado, em algum lugar entre a afetação e a convicção, a certa aristocracia do espírito que condescendia com fraquezas. Mas não bastava para afastar o desconforto físico que sentia diante da excitação alheia. Uma vez comentara com um amigo que a alegria tinha cheiro de suor. O outro se limitou a dizer um “É mesmo” sem convicção.

Alguém na vizinhança esmagou o seu ouvido com uma vuvuzela, a trombeta do capeta. “Este país não está preparado para ideias magras e severas”, pensou, tomando o primeiro dos muitos cafés do dia. “Magras e severas”... Lera em algum livro esse par de adjetivos. E pensou em fundar em Banânia uma categoria filosófica que fundisse pragmatismo e ética. Mas sobreveio o desencanto antes mesmo de desentranhar as primeiras palavras de seu manifesto. Teria de explicar em nota de rodapé por que a magreza está para um como a severidade... Nem completou a frase. “Seria meu Manifesto Desinteressantíssimo”. E contraiu a comissura dos lábios, no riso possível para uma piada feita só para loucos, só para raros.

Outro café. Teria de escrever depois sobre o jogo. O jornal tinha a mania de pedir que sapo de fora chiasse em ocasiões assim. A praia do seu tédio era a economia, não o futebol. Dizia ver mais humanidade no triângulo “política monetária, expansão do consumo e inflação” do que em Hamlet, Ofélia e Fortinbras. Não via. Mas sabia que isso irritava algumas pessoas. Preferia o cheiro do ódio ao do suor amistoso.

Pensou num país em que as pessoas só falassem por intermédio de livros. Jorgiânia. A Constituição traria o Livro dos Livros. O governo seria dos que leram um maior número de obras ou dos que se dedicaram mais profundamente a um grupo delas? A que se chamaria crime em Jorgiânia: ler o que não presta ou não ler o que presta? Mas quem se encarregaria da seleção? “Uma ditadura de leitores seria como uma ditadura de juízes”. Achou a frase espirituosa e a anotou com o acréscimo: “Desenvolver a ideia”.

Escreveria sobre o jogo, sim. Abordaria uma lateralidade qualquer. Mas daí a ter de assistir à partida... Largou-se na poltrona. Nunca sabia o que fazer quando não tinha o que fazer. “Só as pessoas sem tempo são produtivas”. Se não fosse literatice, poderia ser um pensamento econômico. Ficou lá se alisando, em semi-erecção, por cima do short. Não era tesão. Não era nada. Sangue entrando nos corpos cavernosos, de onde havia fugido. Cultivava certo fatalismo: todos os homens fazem isso quando estão sozinhos. Achou que a percepção poderia render alguma coisa no ramo da biologia, não do erotismo.

E um luto grave invadiu sua janela. Agora entendia por que a implosão era a explosão para dentro. É ruidosa, mas não espoca; ela ronca. Não é a disrupção da alegria — apavorante para ele —, mas a demolição surda da esperança. Em vez de um suspiro magro e severo, milhões deles a sufocar o rigor técnico e frio com que Ulrich ambicionava filtrar as mesquinhas paixões alheias.

Só então ligou a televisão. A Holanda havia empatado a partida logo no começo do segundo tempo com um gol contra de Banânia. As câmeras de televisão se esmeravam em closes no rosto dos bananeses. Aquilo era a morte na alma. Ulrich tinha a ambição de ler sinais e sabia que se ganha ou se perde uma batalha antes da luta e fora do terreno propriamente cruento. Agora era questão de tempo para que as más escolhas pudessem, como sempre acontecia em Banânia, se confundir com um destino. Fosse um inseto voraz e sem paixões, não dominaria as palavras com que designar os relevos dessa irresignação passiva e solitária.

No pouco que o futebol mobilizava seu tempo e seus instintos, conseguiu formar um juízo sobre o técnico, que tinha um apelido de personagem de fábula infantil e a marra dos pais amorosos, autoritários e sem imaginação. Os miasmas sentimentais que emanavam da Copa anterior, a de 2006, não eram bons. Os patrulheiros bananeses investiram na falácia de que faltaram, então, aos jogadores rigor, disciplina, dureza, firmeza, caráter, dedicação, aquela cadeia de abstrações que excita a fúria dos moralistas ocos, com seus elmos cheios de nada. Ulrich tinha clareza de que disciplina não se confunde com moralismo vulgar, que ele chama de “túmulo da moral”. E do talento.

Segundo gol da Holanda. E a espada do vencedor pendeu sobre a cabeça do vencido. O que faltava a Banânia para entender que o rigor técnico é a base material da imaginação criadora? Sem esta, aquele é um fetiche; sem aquele, esta não passa de uma promessa, a compor a triste lista das coisas que foram sem nunca terem sido. Ficou quase indignado, mas voltou a se refugiar no tédio que pretendia uma forma de elegância, de decoro. Mas nunca de covardia.

Sentou-se ao computador e começou: “Banânia ainda há de descobrir as virtudes das ideias magras e severas, que não se confundem com o moralismo barato, que é o túmulo da moral...”

Pouco mais de um ano depois daquela derrota, coube a Ulrich analisar o discurso que a dita presidenta de Banânia fez na abertura da Assembleia Geral da ONU. O sangue lhe desceu aos pés, sem tempo para distrações gratuitas. Lá estava ela: “Uma parte do mundo não encontrou ainda o equilíbrio entre ajustes fiscais apropriados e estímulos fiscais corretos e precisos para a demanda e o crescimento. O desafio colocado pela crise é substituir teorias defasadas, de um mundo velho, por novas formulações para um mundo novo. Enquanto muitos governos se encolhem, a face mais amarga da crise – a do desemprego – se amplia. Banânia tem sido, até agora, menos afetada pela crise mundial. Queremos – e podemos – ajudar, enquanto há tempo, os países onde a crise já é aguda.”

Ulrich já havia escrito centenas de artigos, exercitando não mais do que a aritmética do óbvio, apontando que o modelo adotado pelo governo de Banânia conduziria o país à ruína, e lá estava Dona Doida a esculhambar a disciplina fiscal que a Alemanha de Angela Merkel impunha à Zona do Euro. Enquanto ela falava, Ulrich experimentou “uma sensação ruim no coração e no estômago, que tinha o direito de considerar compaixão”. Anotou para mais tarde: “Meu Deus! Desta vez, nem o talento que despreza a disciplina nem a disciplina que esmaga o talento”...

Embora cético por natureza e profissão, Ulrich cultivava certo simbolismo que era seu modo de ser místico. “Acho que atravessamos um portal que vai nos levar ao fundo do poço. Vamos ver quando se sai de lá”. E censurou a si mesmo, como de hábito, porque não tinha muita paciência para essas imprecisões e clichês.

Três anos depois daquele discurso, Banânia foi eliminada nas semifinais, em seu próprio território, pela disciplina fiscal alemã. Por 7 a 1.

Na poltrona, e desta vez ninguém lhe pediu texto nenhum porque acharam o de 2010 muito aborrecido, Ulrich disse para si mesmo: “Atravessamos o portal e estamos no território em que a falta de talento e a falta de disciplina se estreitam num abraço insano”.

E se alisou por nada. Todos os homens fazem isso quando estão sozinhos.

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Reinaldo Azevedo, jornalista, é colunista da Folha, comentarista da RedeTV!, em cujo site mantém um blog, e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM. É autor de “Contra o Consenso”, “O País dos Petralhas (I e II)”, “Máxima de Um País Mínimo” e “Objeções de um Rottweiler Amoroso”.

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