1998

Copa Brasileira de Letras: um mendigo e a final da Copa entre Zidane e os fenômenos do Brasil

Paulo Lins Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1998 é de Paulo Lins, que conta a história de um mendigo e sua relação com a final da Copa da França.

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1998

Com os poros todos jogados naquela dor, prometeu: se a porra do Brasil não ganhasse, meteria um tiro na cabeça e acabaria com o sofrimento que tinha como cobertor. Era um domingo de merda. Morava na rua e, nesse dia, o centro da cidade fica vazio. Pensou em ir pra zona sul, mas lá não poderia ficar na porta dos bares, porque os seguranças enxotavam os mendigos na base da porrada. As lojas estavam fechadas. Foi correndo pelas ruas, dobrando as esquinas no frio de julho. Com a roupa molhada, ouviu, de algum lugar, o locutor anunciando a escalação.

Saiu correndo pelo Largo de São Francisco, quebrou em direção à Rua Sete de Setembro, onde ficava um pé sujo, com televisão, que abria aos domingos. Conhecia a cidade como ninguém. Viu os bêbados dormindo, alheios ao jogo, sendo mais felizes do que ele, e quando dobrou esquina, topou logo ali na frente com o bar fechado.

Andou devagar, tentando se recuperar. Ouvia gritos dos torcedores, trancados nos poucos apartamentos do centro da cidade. Pensou em voltar pra favela, mas tinha jurado que nunca mais botaria o pé ali. Ele era meu amigo e eu sei o porquê. Mas não vou contar. Que se fodam vocês que querem saber.

Ninguém ligava se ele, no último mês, só comia resto. Tudo que possuía tinha pegado no lixo. Não pensava mais em banho. Só conseguia bom dinheiro quando transava com homossexuais, no cinema da Rua da Carioca. Não gostava de ganhar a vida como michê. Às vezes, preferia passar fome.

Tinha quem achasse que o time não estava bom, mas a seleção brasileira jogava certinha, todo mundo entrosado.

Parou na porta de uma lanchonete americana fechada, futucou o lixo e nada. Deu a volta em direção à Lapa, com aquela fragilidade de quem não tem nenhum centavo, na cidade vazia querendo dar um grito de gol.

A partida rolando, o tal do Zidane fazendo o que queria com os babacas dos jogadores fenômenos do nosso time. Indo pra lá e pra cá com a bola na zaga daquele Brasil de merda. Sem achar uma televisão, ele nem viu o lençol que o atacante brasileiro levou. Na Lapa, tinha uns bares abertos, mas não encontrou nenhum mendigo igual a ele, tentando descobrir se a gente ia ou não se danar. Estavam todos sentados, bebendo cachaça embaixo dos arcos.

O jogo já indo pros seus minutos finais. Não sabia quem estava ganhando, mas pode imaginar, pela falta de fogos, que o Brasil ia perder.

Queria ser jogador quando era moleque. Eu mesmo o vi várias vezes pedindo ao pai pra colocá-lo na escolinha de futebol do Botafogo, mas nada. O velho nunca levou fé no potencial do menino. Dizia pro filho estudar à noite e correr atrás de um trabalho de dia, pra ajudar em casa. Futebol não era mais coisa de pobre. As escolinhas estavam cheias de garotos da zona sul. Ele, desnutrido, com uma perna maior que a outra, não teria chance.

O juiz deu apito final. Os torcedores foram saindo do bar. Foi quando ele ouviu o que estava acontecendo. Sem revólver para poder se matar, se jogou embaixo do primeiro ônibus que passou e foi dessa para uma melhor.

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Paulo Lins é poeta, romancista, roteirista de televisão e de cinema.

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