1966

Copa Brasileira de Letras: em um vilarejo no interior do Ceará, o Brasil foi tricampeão mundial na Inglaterra

Xico Sá Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1966 é de Xico Sá. Ou melhor: do velho Antônio Januário, que fez todo mundo em Sítio das Cobras acreditar que o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1966.

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1966: Como o Brasil ganhou o tri

Naquela pequena aldeia, e em nenhum outro lugar do planeta, o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1966.

A conquista foi mais épica do que em 1958 e 1962. Edu, menino de 17 anos, fez mais do que Garrincha e Pelé nos mundiais anteriores. Os três gols do tri, em peleja contra a Inglaterra, foram do ponta do Santos Futebol Clube: 3 a 1 para a seleção canarinha.

“Tive dó do melhor amigo da Rainha Elizabeth, o Bobby Moore. O menino santista, um mero plebeu de Jaú, acabou com ele. Humilhou os ingleses no Estádio de Wembley, quase cem mil nobres súditos do atacante brasileiro”, narrava o velho Antônio Januário, na calçada alta da sua casa, povoado do Sítio das Cobras, município de Santana do Cariri, Ceará. “Humilhou”, resumia o feito do herói nacional. “Humilhação”, repetia.

Tinha este cronista quatro anos de idade. Durante muito tempo mantive tal ilusão. Exímio na arte da rasteira, Januário, dono de um dos poucos rádios da área, transmitia os acontecimentos do planeta para aquele povoado de meia dúzia de casas, se muito. Fazíamos uma roda, crianças e adultos, para ouvir as histórias.

Somente na Copa de 70 comecei a entender um pouco o poder das suas ficções.

Pelo rádio do nosso narrador, o Brasil vencera a Bulgária fácil no primeiro jogo – dois de Edu, um de Pelé, Garrincha e o quarto de Tostão. O jogo contra os húngaros foi duríssimo: o menino santista salvou a Pátria aos 45 do segundo tempo, 1 a 0.

Antes de começar a partida contra Portugal, o craque Eusébio fez questão de abraçar Edu, a quem presenteou com edições de luxo dos sonetos de Luiz de Camões.

“O amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói, e não se sente;/É um contentamento descontente;/É dor que desatina sem doer.” Januário fazia questão de recitar o poeta lusitano. Era louco também por Augusto dos Anjos.

Eusébio marcou o primeiro logo aos dois minutos de jogo, Pelé empatou aos dez. Brito fez contra aos 40, 2 a 1 para os portugueses. É dada a saída para o segundo tempo e Edu surpreende o arqueiro José Pereira com um chute do meio do campo, 2 a 2. Paraná, de canela, faz o gol do triunfo, depois de o garoto de Jaú deixar os dois beques lusos sentados, o relógio marcava 44 da etapa final. “Os beques ficaram perdidos, procurando Edu como quem espera a volta do rei dom Sebastião”, assim narrou Januário, depois de uns goles de Genebra Gato Preto.

O contador de histórias se divertia alterando os fatos para crianças e também para os adultos. Ninguém escapava. Todos eram seduzidos pela forma como ele tecia os acontecimentos. Contos de mil e uma noites.

Não apenas no futebol. Um primo lembra que Januário, no seu patriotismo sem freios, escalou Ronnie Von nos Beatles, naquela segunda metade dos anos 1960. “O Príncipe” fazia muito sucesso. “Meu bem” tocava a todo volume naquele rádio da marca “ABC: A voz de ouro” que nos levava as novidades. Ainda durante a mesma Copa de 66, o nosso ficcionista relatou, em detalhes, como Paul McCartney atraiu o músico brasileiro para o grupo. A transação envolveu milhões, além de um castelo para o Ronnie na Inglaterra.

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Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “A Pátria em sandálias da humildade” (editora Realejo), entre outros livros. 

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