1958

Copa Brasileira de Letras: a final da Copa da Suécia derruba o mito de que o futebol moderno começou em 1970

Michel Laub Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A Copa de 1958 é de Michel Laub, que faz uma análise da final entre Brasil e Suécia e discute os avanços que aquele time de Vicente Feola representou para o futebol moderno.

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1958: O sonho da bola no nylon

Ver gols antigos de lendas do futebol é uma coisa, ver antigas partidas lendárias é outra. Até ser convidado pelo UOL para escrever este texto, eu nunca tinha passado pela segunda experiência em relação à final de 1958.

Na verdade, eu pouco sabia sobre a Copa da Suécia além do que foi fixado pelo imaginário mais ou menos comum sobre ela: a dupla Pelé/Garrincha na melhor forma pela única vez na história do torneio, o fim do que Nelson Rodrigues chamava de complexo de vira-lata, a associação entre Bellini levantando o caneco e o possível momento máximo do Brasil no Século 20 – o breve intervalo de democracia e desenvolvimentismo de JK antes da bagunça de Jânio/Jango e das trevas de 1964.

Revisitar a tarde de verão nórdico que firmou essa mitologia pode ser apenas o exercício de reforçá-la. Talvez seja mais interessante, contudo, prestar atenção no que as sínteses de 1958 deixaram pelo caminho. O ufanismo (ou o seu oposto, o catastrofismo) se alimenta da ânsia tão humana por sentidos – as manipulações da memória e seu descarte do que não interessa, no processo hierárquico que forma nosso pensamento e o registro de nossas emoções.

Vale para a política, vale para o futebol. Se os anos JK foram o ambiente material e cultural que veria florescer a Bossa Nova e o Cinema Novo, também respondem por algumas das pragas da vida pública em 2018. É só pensarmos no que viraram nossas grandes cidades, em boa parcela por causa da opção pelo transporte individual que teve como um dos símbolos a vinda da indústria automobilística para o país. Ou no grau de endividamento, isolamento e corrupção dos poderes republicanos atingido durante e depois da construção de Brasília.

Numa analogia possível, a glória de uma equipe campeã sempre omite os pontos frágeis de sua escalação, os momentos de baixa num campeonato, a sorte. No vídeo de Brasil 5 x 2 Suécia, Pelé e Garrincha erram dribles e conclusões. Zito dá passes para o adversário e Djalma Santos recorre a ligações diretas. O time sueco tem domínio territorial em parte do primeiro tempo. Num lance bisonho, Bellini interrompe um contra-ataque dos donos da casa pegando a bola com a mão.

Como em toda reprise não editada de jogos, o fato de sabermos do resultado conspira para um certo distanciamento do espectador. O futebol é inseparável do conceito de tempo real: projetamos nossas expectativas nas pausas de um tiro de meta ou de uma falta na intermediária, sem saber se lances banais do gênero são ou não o preâmbulo de um happy end inesquecível. Na economia que represa e maltrata o desejo do torcedor antes da eventual catarse, um esporte com menos apelo imediato que o basquete ou o vôlei – com menos pontos, menos decisões por minuto – perde muito de seu impacto sem o tempero do inesperado.

Junte-se a isso a falta de memória afetiva, que me faz estar mais longe do êxtase coletivo de 1958 do que de qualquer Grêmio x Lajeadense dos anos 1980. Para quem nasceu quinze anos depois do 5x2, a final da Suécia poderia ser apenas a ilustração de uma lenda respeitável ao som da marchinha A Taça do Mundo é Nossa – uma curiosidade perdida na imagem ruim do YouTube, com suas transmissões em francês ou em fragmentos dos narradores da Rádio Nacional.

E, no entanto, partes do jogo resistem como interesse que não é apenas o do documento. Pensando na dinâmica e da plástica do futebol em si, Brasil 5 x 2 Suécia ainda tem bastante a oferecer. Nos primeiros quinze minutos, os dois times fazem dois gols e perdem cinco chances. São apenas dez faltas num primeiro tempo em que a bola praticamente não para. Há dribles, canetas, chapéus. O entrosamento de Vavá com seus companheiros de ataque por vezes antecipa a geometria de 1970, numa versão em preto, branco e cinza do que passaria a ser definido como futebol arte nas cores da TV mexicana.

Mais do que a parte técnica, merecidamente celebrada nos sessenta anos desde que o francês Maurice Guigue soprou o apito final, há surpresas físicas e táticas. Ao contrário do lugar-comum que considera partidas anteriores aos anos 1970/1980 como outro esporte, dados os espaços maiores em campo e a indisciplina geral da dinâmica das nossas equipes, há bastante correria organizada em 1958.

Da marcação dois-um à pressão na saída adversária, de Zagallo como ponta de recuo a Garrincha roubando a bola para armar pelo meio e no campo de defesa, tudo impulsionado pela energia de Orlando e a visão de jogo de Didi, vemos um time consciente, competitivo e tão compacto quanto era possível nos parâmetros da época.

Nesse sentido, a Copa da Suécia emerge como degrau histórico importante de uma escala evolutiva com menos pontos de ruptura do que se costuma pensar. A teoria dominante de que copas do mundo estabelecem os rumos táticos nos quatro anos posteriores, apagando todas as experiências derrotadas até então, permite muitas nuances e poréns.

A Era Dunga, por exemplo, que teria marcado a substituição abrupta do meio campo festivo de 1982 pelo centromédio pitbull em 1990, foi um processo mais longo e menos linear – que passa pela entrada de Elzo em 1986 e, a despeito do naufrágio na Itália, seria completada vitoriosamente em 1994, nos Estados Unidos, com passes longos e precisos do mais criticado volante de nossa história.

Já o salto da preparação física de 1970, com os métodos científicos do Dr. Cooper incorporados pela equipe de Admildo Chirol, Claudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira, não foi o simples encerramento de um período romântico – do qual 1958 seria um dos pontos fulgurantes – em que cada um corria como queria e quanto podia. Seguindo o raciocínio, seleções marcadas pela atenção ao posicionamento e distribuição de funções em campo – 1970 e 1994 são os casos mais bem-sucedidos – não contrastam tanto assim com a “poesia” dos comandados de Vicente Feola na Suécia.

No fim das contas, o mais datado no vídeo de 1958 está fora de campo: a tecnologia de transmissão sem replays e variedade de ângulos de câmera, a melodia nostálgica de expressões como “vai botar a bola no nylon” e “o couro sai pela lateral”. Entre as quatro linhas, tudo era tão moderno quanto o Brasil urbano e populista de JK prometia ser. A imagem de Pelé chorando na comemoração, um novo e eterno rei do futebol aos 18 anos, é o lado mais bonito desse sonho que virou pesadelo em tantos outros choros de lá para cá. 

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Michel Laub é escritor e jornalista. Publicou 7 romances, entre eles “Diário da queda” (2011) e “O tribunal da Quinta-Feira” (2016).

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