1930

Copa Brasileira de Letras: a história do árbitro que apitou a primeira final de Copa. Por ele mesmo

José Roberto Torero Colaboração especial para o UOL
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Mas o que é Copa Brasileira de Letras?

O que você tem a dizer sobre as Copas do Mundo? Foi essa pergunta que fizemos a algumas personalidades da literatura brasileira. O resultado é o projeto "Copa Brasileira de Letras", histórias únicas, reais ou de ficção, de cada um dos Mundiais de futebol, de 1930 até 2014.

A cada dia, você lê uma história diferente. São textos de Alex Castro, Edney Silvestre, Eliane Brum, José Roberto Torero, Michel Laub, Paulo Lins, Reinaldo Azevedo, Luiz Ruffato, Vanessa Barbara e Xico Sá.

A estreia fica com Torero e a história do belga John Langenus, o árbitro que apitou a primeira final da Copa do Mundo. Nas palavras do próprio Langenus.

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1930

Meu nome é John Langenus. Nasci em Berchem, na Bélgica, no distante ano de 1891. Quando eu era criança, adorava futebol. Mas a bola não tinha nenhuma simpatia por mim. Batia-me na canela, fugia dos meus pés, acertava o meu nariz. Resultado: troquei a bola pelo apito. Virei juiz de jogos escolares. Chegava a fazer três partidas por domingo. E fui aprendendo os segredos da coisa. Mas não passei no meu primeiro teste para ser árbitro oficial. Os dois ingleses que me aplicaram o teste, juízes de juízes, me perguntaram:

- O que você deve fazer quando a bola bater num avião voando baixo?

Eu não soube responder e fui reprovado. Três meses depois fiz novamente a prova e me fizeram perguntas decentes. Aí passei.

Tive um único apito na vida. Custou-me trinta centavos. Levei-o comigo quando fui chamado para apitar a Copa do Mundo de 1930.

A viagem

Peguei um trem de Antuérpia até Paris, depois outro até Barcelona e lá embarquei no Conte Verde, um navio luxuoso que também levaria as delegações da Romênia, da França, da Bélgica e da Fifa. O Jules Rimet, por sinal, não largava o troféu que entregaria ao país vencedor. Naquele tempo, a estatueta ainda se chamava Vitória.

Foram catorze dias muito divertidos até o Rio de Janeiro. Cantamos, bebemos e rimos muito. Os romenos eram os mais animados. Até fizeram um número de balé.

No Rio demos uma carona para a seleção do Brasil e para o Gilberto Rego, que seria o juiz brasileiro daquela Copa. Ficamos muito amigos. Quando paramos em Santos, ele até me comprou um cacho de bananas. Deve ter custado uma fortuna.

Gilberto me explicou que naquela cidade pegaríamos o único jogador paulista da seleção brasileira, o Araken Patuska. A seleção só tinha jogadores cariocas, pois os dirigentes de São Paulo, como não foram chamados para compor a delegação, não aceitaram ceder seus jogadores. Só o Araken, que estava sem clube, é que pode ir.

Meu amigo explicou que aquilo era uma pena, pois o goleiro Athié e o atacante Feitiço certamente seriam titulares. E um tal de Friedenreich, mesmo com 38 anos, ainda devia ser o melhor jogador do mundo.

Finalmente, no dia 4 de julho chegamos a Montevidéu. Dez mil uruguaios nos esperavam no porto. Que festa!

Pontapé inicial

Só treze equipes aceitaram o convite para participar da Copa. Assim formaram dois grupos com quatro equipes e dois com três. Só os primeiros colocados passariam às semifinais.

O jogo de estreia foi França x México. E meu amigo Gilberto atuou como um dos bandeirinhas. Nevava quando o Lucien Laurent fez o primeiro gol das Copas do Mundo. Foi um belo voleio. Ele nem sabia que estava entrando para a história.

No dia seguinte, eu e Gilberto assistimos ao jogo entre Iugoslávia e Brasil. 2 a 1. O Brasil parecia intimidado. Só Fausto e Preguinho mostravam alguma atitude. Aliás, o Preguinho fez o primeiro gol do Brasil em Copas do Mundo. O Gilberto me contou que o garoto era campeão em oito esportes: futebol, natação, remo, polo aquático, saltos ornamentais, atletismo, basquete e vôlei. Ah, que inveja os juízes têm dos atletas...

Logo eu apitaria meu primeiro jogo naquela Copa: Uruguai x Peru. Coloquei minhas calças bufantes, minhas meias longas, uma camisa social branca, minha gravata e, é claro, meu paletó. Elegância é fundamental.

Foi uma partida nervosa, que o time da casa acabou vencendo por 1 a 0, marcando só no segundo tempo, com Héctor Manco Castro.

Depois assisti com o Gilberto ao segundo jogo do Brasil. A seleção estava mais solta e ganhou de 4 a 0 da Bolívia, gols de Moderato e Preguinho. Mesmo assim, como a Iugoslávia havia vencido a Bolívia uns dias antes, o Brasil estava fora do campeonato.

- Talvez esse negócio de Copa do Mundo não seja para nós - disse o Gilberto, conformado.

Fui escalado como juiz no jogo entre Argentina e Chile. Quem vencesse iria à semifinal. Desconfio que estes países não se dão muito bem, porque houve uma tremenda briga entre os atletas. Normalmente eu expulsaria um monte de cada lado, mas as autoridades pediram e fui condescendente. A Argentina venceu por 3 a 1 e foi à semifinal contra os Estados Unidos.

Também apitei este jogo. Logo aos dez minutos, um norte-americano se contundiu. Não havia substituição e o time ficou só com dez jogadores. Aí foi um passeio: 6 a 1 para a Argentina. Nesta partida houve um fato curioso: Depois que marquei uma falta, o médico norte-americano entrou em campo para tirar satisfação. Ao chegar perto, intimidado pelo meu um metro e noventa, ele desistiu de brigar e apenas atirou sua maleta no chão com raiva. Todos os frascos se quebraram, inclusive um de clorofórmio. O sujeito desmaiou e teve que ser levado de maca. Ou seja, o médico é que precisou de atendimento médico.

A outra semifinal foi entre Uruguai e Iugoslávia. O juiz foi o Gilberto Rego. E o placar também foi 6 a 1. A decisão seria entre Uruguai e Argentina. Um jogo de sair faísca.

Estava passeando em Buenos Aires quando me deram a notícia: eu tinha sido escolhido para apitar a partida decisiva e deveria retornar imediatamente.

O que eu fiz? Voltei na mesma hora? 

Não mesmo!

Aquele seria um jogo de vida ou morte. E a morte poderia ser minha. Então fiz três exigências para entrar na arena.

  1. Queria um seguro de vida para mim e para os meus dois assistentes.
  2. Uma escolta policial deveria me levar até o porto depois do jogo.
  3. E o navio Duílio, que partiria às 15h00 para a Europa, deveria me esperar, pois o jogo só terminaria às 17h00. 

Só quando eles me garantiram que as três exigências seriam cumpridas é que atravessei o Rio da Prata de volta para o Uruguai.

O barco estava repleto de argentinos. Foi uma invasão. Muitas armas foram apreendidas na alfândega e houve várias brigas entre as torcidas nas praças de Montevidéu.

Viver é perigoso. Ainda mais para um juiz de futebol.

Afinal, a final

Quando entrei no Centenário, meu queixo quase caiu. Nunca tinha visto um estádio tão cheio. Pensei que ele se chamava Centenário porque o país festejava o centenário de sua constituição. Mas acho que era porque cabiam cem mil pessoas.

Antes de apitar o início do jogo já surgiu o primeiro problema: os argentinos queriam a bola argentina, os uruguaios só aceitavam a uruguaia. Apelei para a diplomacia. Usaríamos uma bola no primeiro tempo e a outra no segundo.

Começou a partida. Os uruguaios marcaram logo aos 12’, com Dorado. Oito minutos depois, Peucelle empatou. E aos 37’, Stábile, o artilheiro do campeonato, virou o jogo: Argentina 2 a 1. Neste momento ouvimos um tiro na arquibancada. Acho que foi de comemoração, mas fiquei assustado do mesmo jeito.

Na etapa final, os uruguaios voltaram enlouquecidos. Logo aos 12’ igualaram a partida, com Cea. E, aos 23’, num chute de fora da área, o grande Iriarte revirou o placar: 3 a 2 para o Uruguai.

Foi a vez dos argentinos atacarem. Houve uma chuva de cruzamentos, chutes batendo nos beques, bolas na trave e o guardião Ballestrero fazendo milagres.

O empate parecia inevitável. Mas, num contra-ataque, o pequeno Manco Castro subiu como se tivesse molas nos pés e deu uma cabeçada certeira: 4 a 2.

Os argentinos alegaram toque de mão, mas como Manco era maneta, fiz-me de surdo.

Alguns minutos depois soprei o apito final. O Uruguai era o primeiro campeão do mundo. A festa no estádio foi imensa. Mas nem fiquei para ver. Saí correndo para o porto. Para minha surpresa, não havia cem policias para minha escolta. Só um civil. Mesmo assim, chegamos sãos e salvos.

- Já podemos partir – falei ao capitão.

- Não podemos, não – ele me respondeu. – O nevoeiro está muito forte. Só amanhã.

- Teremos que ficar aqui? E se uma horda de argentinos atacar o navio?

Ele deu de ombros. E eu passei a noite escondido no camarote.

Apitar é perigoso.

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José Roberto Torero é autor de 37 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti, 1995, romance), Papis et Circenses (Prêmio Paraná de Literatura, contos, 2012), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti, contos, 2002), Futebologia e Zé Cabala e outros filósofos do futebol. Foi colunista na Folha de S.Paulo de 1998 a 2012, e do Jornal da Tarde de 1994 a 1998. Como roteirista, escreveu a série FDP para a HBO, dez roteiros de longas-metragens (entre eles Pelé Eterno) e dez roteiros de curtas-metragens, entre eles Uma história de futebol, que concorreu ao Oscar em 2002.

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