Tremeu na base

Copa repete roteiro e premia seleções com projetos de longo prazo na formação, algo que o Brasil não tem

Dassler Marques e Gabriel Carneiro Do UOL, em Moscou e São Paulo
Arte/UOL

Desde que Espanha e Alemanha venceram as duas últimas Copas do Mundo, a lição apresentada a outros países é que grandes conquistas costumam vir acompanhadas de projetos de longo prazo para o aprimoramento da formação de atletas. Os triunfos em 2010 e 2014 saíram dos pés de gerações que cresceram juntas, com unidade e talento para triunfarem. 

No Mundial da Rússia, as semifinais repetem países com esse roteiro e um investimento forte na formação. A Inglaterra criou um programa para impactar da base, determinando quantidade de treinos e jogos, até a elite, com obrigação por espaço para os pratas da casa nos clubes ingleses.

A Bélgica mudou a parte técnica e estrutural de suas academias e "gerou" jogadores que despertariam a atenção dos países vizinhos, onde esses talentos se desenvolveram até o alto nível. Já a França tem, há anos, uma das academias mais tradicionais do planeta, focada na captação de talentos nas periferias e assegurando que garotos de dupla nacionalidade usem a camisa azul. 

Esses três projetos foram recompensados, na Rússia, com as semifinais da Copa, que outra vez serve de lição ao Brasil.

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

Futebol brasileiro ainda olha pouco para a formação de jogadores

O tema é tão sério que está no centro da discussão sobre a permanência de Tite. Como mostrou o UOL Esporte, a CBF quer dar a ele mais controle sobre as camadas inferiores, que hoje recebem pouca atenção. Enquanto outras confederações desenharam planos que impactaram diretamente na seleção, o Brasil conceitualmente se limita a organizar torneios de base e convocar seleções para os torneios internacionais. Ainda que tenha havido evolução na equipe principal desde a chegada de Tite, a situação das categorias inferiores segue com o mesmo cenário de quatro anos atrás, quando o 7 a 1 expôs a fragilidade verde-amarela.

Nos últimos anos, houve crescimento da quantidade de competições para jovens, mas a política do coordenador Edu Gaspar foi reduzir convocações. A seleção sub-19 que se prepara para o Sul-Americano sub-20 do ano que vem, por exemplo, só teve duas listas neste ano. Se olha pouco para a formação, principalmente desde que deixou de ter um profissional responsável pelo setor, a CBF cuida ainda menos do desenvolvimento do futebol no país.

Com apenas sete Estados representados entre os 23 convocados para a Copa, o Brasil repete a tradição de só extrair jogadores dos principais centros. A perspectiva de criar campos de treinamento pelo país a partir dos US$ 70 milhões a serem recebidos pelo Mundial 2014 como legado da Fifa, até hoje, não se confirmou, e a alternância de poder da base brasileira nos últimos anos escancara a ausência de um projeto real.

Arte/UOL
AP Photo/Antonio Calanni AP Photo/Antonio Calanni

Processo conjunto forjou semifinalistas

Nas seleções semifinalistas da Copa do Mundo há um processo conjunto de formação de jogadores. A Inglaterra é comandada por um treinador que trabalhou por três anos nas categorias de base e teve papel importante no surgimento de nomes como Pickford, Harry Kane, Dele Alli, Lingard e Stones. Gareth Southgate não foi só técnico, como também chefe de desenvolvimento de jogadores na Federação Inglesa, o que torna um dado que poderia ser casual em algo elementar: os ingleses têm a terceira menor média de idade do Mundial, com 26 anos.

No futebol belga também é possível notar métodos unificados, como o Purple Talents. O projeto do Anderlecht formou jogadores que estão com o técnico Roberto Martinez na Rússia, como Tielemans, premiado como "Promessa do Ano" em 2013/2014 e 2014/2015, Dendoncker (único que joga na Bélgica convocado para a seleção) e especialmente o goleador Romelu Lukaku. Nas Olimpíadas de 2008 já atuavam juntos Fellaini, Kompany, Vertonghen e Dembelé, enquanto Courtois e De Bruyne começaram praticamente juntos no Genk. O convívio ao longo dos anos estruturou o grupo até a Rússia.

A França, por sua vez, recebeu em sua estrutura Mbappé, Giroud, Pogba, Matuidi e até Pavard, o lateral que ninguém conhecia e hoje é um dos melhores da Copa. É mais um caso de formação de gerações que treinaram juntas, seguiram modelos táticos semelhantes ao longo dos anos e receberam influências e educação unificadas. O grande objetivo desse processo conjunto está muito perto de ser alcançado por cada uma das seleções.

Divulgação/Premier League Divulgação/Premier League

Apoio institucional e investimentos fizeram a diferença

Os tais modelos unificados são parte de programas institucionais, a exemplo do que é desenvolvido em Clairefontaine, na França. A Premier League, desde 2012, executa um programa chamado EPPP (Elite Player Performance Plan), descrito como uma "estratégia de longo prazo com o objetivo de desenvolver mais e melhor os jogadores locais". Ele foi desenvolvido após consultas com dirigentes de clubes e representantes de todas as divisões do Campeonato Inglês para recrutar e preparar jogadores entre 9 e 23 anos. Há competições, festivais e academias de futebol para formação de jogadores e treinadores, além de educação formal e acompanhamento até a categoria profissional.

A ideia da Federação Inglesa é aumentar o número e a qualidade dos jogadores criados na Inglaterra, para que mais deles sejam utilizados nas principais divisões. Os clubes são auditados em mais de dez fatores e cotados entre 1 e 4, em que 1 é o valor mais alto. Quanto melhor a nota, mais recurso financeiro os clubes recebem para investir, o que favorece um processo em que todos querem sempre crescer. No primeiro ano da EPPP houve investimento de mais de 30 milhões de libras (cerca de R$ 150 milhões) divididos entre federação, liga e governo. Em seis anos já houve aporte próximo de R$ 1 bilhão no desenvolvimento do futebol de base local.

A lógica é a mesma na Bélgica, motivada por um vexame na Eurocopa de 2000, quando a seleção foi anfitriã e caiu na primeira fase. Foi o 7 a 1 deles. No fundo do poço, a federação belga nomeou Michel Sablon, ex-jogador, técnico e auxiliar, como diretor de seleções, e ele comandou uma reestruturação baseada em quatro pilares: análise dos campeonatos de base que existiam, rompimento da tradição de contra-ataque para ser dominante com um esquema tático 4-3-3, participação dos dirigentes de base dos clubes e estabelecimento de modelos de treinos, como jogos reduzidos, em todas as categorias. Foi o que moldou a geração de De Bruyne, Hazard e companhia.

Nossos clubes profissionais estavam falhando e o nível de futebol das seleções não era bom o suficiente, não competíamos com os principais países, como Espanha e França. Então, em 2002, começamos a olhar de perto para a França e tivemos reuniões com eles. Fizemos o mesmo com a Holanda e a Alemanha, tentando entender para melhorar o que estávamos fazendo. Naquela época não estávamos em lugar nenhum. E agora estamos entre os melhores

Michel Sablon

Michel Sablon, Diretor-técnico da Federação Belga entre 2001 e 2012 e hoje diretor da federação de Cingapura. Em 2013, ao Daily Mail

Seleções semifinalistas na base nesta década

  • Inglaterra

    16 participações em 25 torneios; Títulos: Mundial sub-20 (2017), Europeu sub-19 (2017), Mundial sub-17 (2017), Europeu sub-17 (2014), Europeu sub-17 (2010)

    Imagem: Wikimedia Commons
  • França

    17 participações em 25 torneios; Títulos - Mundial sub-20 (2013), Europeu sub-19 (2016), Europeu sub-19 (2011), Europeu sub-17 (2015)

    Imagem: Wikimedia Commons
  • Bélgica

    6 participações em 25 torneios; Campanhas de destaque - Semifinalista do Europeu sub-17 (2015 e 2018)

    Imagem: Wikimedia Commons
  • Croácia

    9 participações em 25 torneios; Campanha de destaque - Semifinalista do Europeu sub-19 (2010)

    Imagem: Reprodução
Adrian Dennis/AFP Adrian Dennis/AFP

"Essa era a seleção em que devíamos nos espelhar?"

Não há uma fórmula secreta para fazer seleções campeãs e formar só grandes estrelas do futebol. A eliminação da Alemanha na primeira fase da Copa da Rússia foi estopim para uma série de ironias. Até Rivaldo, pentacampeão pelo Brasil, tirou uma casquinha:

Essa era a seleção em que devíamos nos espelhar?

A passagem de bastão para a geração seguinte, por uma série de fatores, não funcionou, como já havia ocorrido com a Espanha e outros tantos campeões mundiais antes dela. A base não conseguiu suprir o time principal com talentos à altura de veteranos que saíram, outros que permaneceram não renderam como o esperado e a queda na primeira fase caiu como uma bomba.

Mas o desastre na Rússia não mudou os rumos. Joachim Low seguirá no comando de um projeto que começou 18 anos antes, com a construção de centros de treinamento para jovens no país e o direcionamento de investimentos em jogadores estrangeiros para desenvolver a estrutura local. O projeto, que já rendeu uma taça, está mantido, enquanto a Copa mostra que outros que seguiram o mesmo caminho devem ser premiados. E o Brasil?

Curiosidades da formação na Inglaterra

Divulgação/Premier League Divulgação/Premier League

Até no frio

As equipes sub-15 disputam um campeonato noturno em condições climáticas hostis, como o rigoroso inverno do país, ou o sol forte do meio-dia. A ideia é preparar os jovens para os desafios que terão como profissionais por meio de uma experiência única ainda durante o processo de formação. Esse torneio, Floodlit Cup, rola desde 2015/2016.

Divulgação/Premier League Divulgação/Premier League

Música na quadra

Algumas categorias disputam torneios no formato "Power Play". São competições de futsal em que músicas são tocadas no ginásio em momentos aleatórios. Enquanto a música é tocada os gols valem dois. A ideia é aumentar níveis de concentração dos jogadores diante da distração proporcionada pela música e exercitar a visão como comunicação.

Divulgação/Premier League Divulgação/Premier League

Só mistão

Há festivais de futebol em que jovens jogadores de clubes diferentes são divididos para atuar na mesma equipe com o objetivo de socializarem e criarem soluções criativas em campo, já que conhecem pouco os novos companheiros. Há o surgimento de lideranças em campo neste tipo de atividade, de acordo com os organizadores das competições.

Reprodução/FA Reprodução/FA

Tamanho certo

Há diretrizes específicas para todas as categorias, dos 9 aos 17 anos de idade. Os campos para as crianças menores são quase três vezes menores, assim como a dimensão das traves. A partir do período entre os 15 e 17 anos, até 23, é tudo igual ao profissional. A ideia é que os jogadores tenham mais contato com a bola em espaços proporcionais ao seu tamanho.

Curtiu? Compartilhe.

Topo