Expectativa de vida: 55 anos

Enquanto Copa acaba com estoque de cerveja na Rússia, 1 a cada 4 russos morrem cedo por conta do álcool

Luiza Oliveira Do UOL, em Moscou (na Rússia)
Marcos Mesquita/UOL

Acredite: está faltando cerveja no país da Copa do Mundo

Nem o mais otimista dos torcedores imaginaria uma Rússia tão forte na Copa do Mundo. Na última terça-feira, a seleção anfitriã venceu o Egito, se tornou líder do grupo e o buzinaço tomou conta das ruas de Moscou. O que mais fazer para comemorar? Beber, beber e beber! Naquela noite, os torcedores que foram ao bar El Asador tomaram todas as cervejas do estabelecimento. Todas!

Já é esperado que a combinação bebida e Copa do Mundo dê match, mas quando se fala em Rússia, isso ganha outras proporções. O país da Copa vem passando por problemas de abastecimento de cerveja por causa da sede dos donos da casa e dos turistas. Em um hotel de uma grande rede internacional, o estoque de cerveja do tipo clara acabou e não há previsão de reposição. Em alguns bares nas proximidades da Praça Vermelha, o problema é que os carros de fornecedores só conseguem circular no centro depois da meia noite - quando ainda há torcedores na rua.

Os bares esperavam, claro, que todo mundo ia encher a cara no Mundial. Mas nem tanto assim. “Com certeza a demanda está sendo maior que a esperada. O futebol motiva as pessoas a beberem mais’, disse o funcionário de um bar. No pub Haggi estava habituado a receber 200 pessoas, o público passa de mil em certas noites. Eles tiveram até que aumentar o número de garçons.

O que poderia ser uma anedota sobre Copa é bebida, porém, representa um problema no país em que o Mundial está sendo disputado. Na Rússia, o álcool vai muito além da diversão após um jogo de futebol. O país da Copa do Mundo tem uma relação histórica com a bebida, não só com a vodca: é dono de um dos maiores índices de alcoolismo do mundo. Os números assustam. O álcool é responsável por diminuir a expectativa de vida dos homens. Boa parte deles não passa dos 55 anos. O álcool que diverte é também o que mata.

"Russos bebem vodca. E ursos andam de bicicleta"

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Sergey

Com shorts xadrez, meias e uma camiseta polo azul, Sergey surge na porta de uma da sala da clínica de reabilitação para alcoólatras nos arredores de Moscou. Ele anda com dificuldade até se apoiar na cadeira. O olhar fundo com olheiras e a cara abatida causam um desconforto que aumenta à medida em que ele vai contando como chegou até ali. Não sorri, não chora, não tem expressão. Sergey é um zumbi. Hoje, diz que está sóbrio, mas é claro que o álcool não deixará de ser um problema em sua vida.

Sergey tinha apenas 14 anos quando começou a beber na escola. Seus pais trabalhavam muito e ele ficava sempre sozinho. O álcool virou sua companhia, maior aliado nas brigas com os colegas. O adolescente desobediente deu um lugar a um homem extremamente agressivo que brigava em baladas e perdia todo o dinheiro do abastado salário do Exército russo. Foram muitas tentativas de parar. Mas cada uma delas só fazia a bebida voltar com mais força.

Chegou ao ponto de agredir a mulher: jogou-a pela escada abaixo. Mais litros de álcool, mais tentativas de ficar sóbrio, altos e baixos. Depois, da boa posição na Gazprom, uma das maiores empresas da Rússia, foi parar na rua. “Eu começava a manhã, me levantava tremendo, tentava me arrumar. Ia para o supermercado, roubava álcool e ia ficar com os mendigos e alcoólatras do meu bairro. Passei dois anos assim. Tive mais problemas com a lei, sérios. Quando bebo, eu fico muito agressivo. Em geral, sei lutar muito bem e bato nas pessoas. Geralmente, sem razão. Tudo acaba desse jeito”.

Sergey tem plena consciência de que perdeu tudo na vida, mas segue na luta até para se levantar da cadeira. Na saída da clínica, um grupo que acabou de tomar seus remédios circula pelo corredor. Todos têm a mesma aparência de Sergey. Ali fica claro que o problema não é só dele. Assola o maior país do mundo.

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O vício que dizima os homens do país

O alcoolismo é um dos maiores problemas do país. E basta conversar com algumas pessoas em Moscou ou nos arredores da capital para perceber. É comum os russos terem um alcoólatra na família ou conhecerem alguém que morreu vítima da bebida.

“Com certeza isso afeta a sociedade em nível micro e macro. Esse problema não tem só uma dimensão. De um lado, nosso país tem uma herança cultural. Todos os eventos, tristes ou alegres, são acompanhados pelo ato de beber. Tem pessoas que conseguem controlar o consumo, enquanto outras têm predisposição à doença. Dá para entender que alcoolismo é ruim. Que o álcool destrói as famílias e traumatiza as pessoas. Ao mesmo tempo, a maioria da população russa tem um conceito gravado na cabeça: o álcool fica sempre por perto e não é tão ruim. Acham que está frio no país e tem que se aquecer. Nem todo mundo entende as consequências destrutivas”, conta o médico da clínica Única, Mikhail Vasilievich Vandysh.

A dependência afeta até a economia do país. Quase um terço dos homens russos morre antes dos 55 anos, uma expectativa de vida de países subdesenvolvidos. A maioria das mortes é por causa do álcool, seja por doença do fígado, intoxicação, acidentes de carros e até brigas, segundo um estudo da renomada revista científica The Lancet.

A Rússia está entre os líderes mundiais de consumo de álcool, com cerca de 10 litros de etanol por pessoa a cada ano.

E engana-se quem coloca toda a culpa na vodca. A cerveja representa 41,5% do consumo total no país e ganha do tradicional destilado, que soma 38%. O vinho, cada dia mais popular (e incentivado por Putin por ser mais saudável), leva 10,3% da preferência, contra 10,2% de outros drinks que fazem sucesso no país e nem são conhecidos no Brasil, segundo o Rosstat.

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De onde vem o problema?

A relação da Rússia com a embriaguez vem de longa data desde o século XVI. Foi nessa época que a vodka se tornou um símbolo e se popularizou. O historiador russo Kirill Beregela lembra que os lugares simples para beber, os chamados Kabakis, apareceram ainda na época do czar Ivan, o Terrível. No final do século XVIII, o álcool já era vendido para a população em grandes quantidades e a um preço acessível. A monarca Catarina, a Grande, dizia: "lidar com os povos bêbados é fácil."

“Durante vários séculos, as condições e as nuances da distribuição de álcool em todo o país mudaram muitas vezes e, no início do século XX, a tradição de obter renda do álcool tornou-se característica do orçamento russo”, relata Beregela.

Além disso, a partir de meados da década de 1960, alguns jovens da União Soviética adotaram o estereótipo da contracultura. Passavam seus dias bebendo, mostrando sua rejeição aos valores da propaganda soviética. A moda passou, e a URSS também, mas a compulsão constante permaneceu.

Na URSS, foram várias as tentativas para reduzir o consumo de bebidas alcoólicas, especialmente com a campanha do final dos anos 1920 e a lei seca no governo de Mikhail Gorbatchev entre 1985 e 1990. Na época, reduziram para 5 horas por dia o período em que as vendas de bebidas alcoólicas eram permitidas e aumentaram os preços. Ainda assim, não foi possível derrotar a vodca.

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Uma reunião do AA no interior da Rússia

“O Alcoólicos Anônimos é uma comunidade que reúne as mulheres e os homens que compartilham um com o outro a sua experiência, a sua força e a sua esperança com o objetivo de se ajudar e ajudar aos outros a se livrarem do alcoolismo”. A frase entoada pela voz grossa do homem de meia idade com bigode anuncia exatamente às 18h de uma sexta-feira que o encontro começou na pequena cidade Elektrostal, região metropolitana de Moscou.

Nas mesas de madeira que circundam uma pequena sala, 14 pessoas se unem para dar risadas e falar do mal de suas vidas. Em sua maioria mulheres entre seus vinte e poucos anos até a meia idade. Sob as mesas com toalhas verdes quadriculadas, cinco potes com biscoitos de água e sal são acompanhados por xícaras de chás.

O homem com a voz grossa é bravo e interrompe o burburinho e pede um minuto de silêncio para lembrar das pessoas que morreram "dessa doença horrível e incurável". Em seguida, convida a todos para se libertarem dos antigos pensamentos e a perderem o medo. Lembram que "o álcool é esperto, forte e que te desvia do caminho".

Ali eles precisam admitir perante os outros e principalmente a si mesmos. “Eu sou alcoólatra”, entoa cada um em alto e bom som, ainda que estejam limpos há 20 anos. Cada integrante lê um dos 12 passos do AA que também está impresso no cartaz da parede ao lado de vários outros quadros de motivação. Os dois primeiros soam quase como um mantra paradoxal:

Nós aceitamos que nós somos fracos com álcool e perdemos o autocontrole. Aceitamos que apenas a força, a vontade e o poder pessoal podem trazer de volta o bom senso”

E nesse eterno duelo entre fraqueza x força, o que une todos ali é o pertencimento. À vontade para dividir necessidades e pecados sem julgamentos. Um homem, do alto de seus 40 anos, pede ajuda para pernoitar em São Petersburgo. Não se importa de dormir na casa de um alcoólatra. Outra pessoa, uma mulher, quer se livrar da tentação da bebida.

“Eu fiquei sóbria durante muitos anos, mas comecei a falhar. Uma amiga sempre quer beber comigo. E chegou ao ponto em que disse: ‘se você não beber dessa vez, não vamos continuar amigas’. Ela falou que não ia me levar mais para o círculo dE amigos dela. Eu fiquei preocupada. É claro que eu sei dar desculpas para não ir. Por exemplo, digo que tomo antibióticos. Eu não gostaria de falar diretamente que não bebo há muitos anos. Me parece que eu já vou passar limite, embora eu não tenha bebido nos últimos 15 anos. Mas eu tenho medo agora porque às vezes sinto que eu tenho que beber com as minhas amigas. É um sentimento que me perturba e parece que estou doente”.

Ela sente o conforto que precisava e logo cai na gargalhada.

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Clínicas de alcoolismo privada tem até 'rehab delivery'

Há muitas alternativas na Rússia para enfrentar a doença. As clínicas privadas são bem comuns. Centenas delas se espalham pela Rússia. Recebem homens, mulheres e crianças viciadas e oferecem até um serviço de ‘rehab delivery’ em que vão até a residência dos pacientes.

Na residência, os médicos fazem exames e tomam as providências de acordo com o estado da pessoa. Se não for grave, aplica medicamentos e vai embora. Se o cardiograma não estiver bom, o paciente é recomendado a ir para a clínica. Mas ele nunca é obrigado, tem sempre que concordar com o tratamento.

Ao chegar, um grupo de especialistas com psiquiatra, neurologista, dermatologista, venereologista, ginecologista e enfermeira estão à sua espera. Mas é preciso lidar com o chamado estado de ambivalência, já que é comum os pacientes mudarem de opinião.

Na clínica espaçosa, cada quarto tem uma função. No das mulheres, o ursinho de pelúcia em cima da cama chama a atenção. A sala terapêutica talvez seja a mais aconchegante e as paredes já dão o recado de motivação ou alerta. O cartaz indica: ‘As conversas sobre consumo levam ao consumo’. Do outro lado, palavras como ‘medo, amor, timidez, culpa, receio, incerteza, pânico, confiança, calmaria, afeição, prazer, animação, inspiração dão a deixa de que ali eles trabalham o lado emocional.

“Quando os meninos chegam, eles não têm emoções. E eles também não entendem a relação entre causa e consequência. A gente os ensina a sentir as emoções de novo. Se a pessoa não trabalhar com as suas emoções, pode despencar”, diz o responsável. Ali algumas pessoas ficam por dias, outras chegam a morar por anos até estarem aptos a voltarem para a sociedade.

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A cura na base do medo

Para combater o problema, a Rússia tem um tratamento inusitado e controverso. O ‘Coding’ não é reconhecido na Europa, mas é bastante comum nos países da extinta União Soviética. O método é usado para mexer com o lado psicológico do paciente e instalar o sentimento de medo. E só é recomendado para formas mais brandas de alcoolismo.

“Há jeitos de fazer diferentes. Ou usa-se um placebo ou alguém insere no corpo da pessoa substâncias que não têm boa reação com o álcool, como o Dissulfiram. Esse medicamento faz com que toxinas se acumulem mais no corpo. Com mais toxinas, o paciente se sente mal e evita usar álcool”, explica o médico Mikhail Vasilievich Vandysh.

Dessa forma, o paciente tem medo de tomar a primeira dose de álcool e inicia a sua recuperação. É comum também que, por influência desse método, o paciente procure outras terapias alternativas. Como a hipnose.

Na visão do médico, o ‘Coding’ não serve para qualquer paciente. “Depende da estrutura da personalidade da pessoa. Isso é efetivo com os pacientes que tem infantilidade, que confiam em tudo, que não tem visão ampla do mundo. Neste caso, começa a remissão. Esse tipo de pessoa até pode ir para bruxas. E depois disso realmente não bebem por algum tempo”, conta - e bruxas, no caso, são realmente feiticeiras, que fazem encantos para que a pessoa evite beber.

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Alcoolismo infantil

Não bastasse o estrago do vício em álcool nos homens e mulheres, a Rússia também sofre com o alcoolismo infantil. A clínica Única recebe crianças a partir de dez anos de idade. Isso é comum e atinge famílias pouco estruturadas em que os jovens não recebem a atenção da família.

“O problema existe, mas é relacionado a famílias disfuncionais. As pessoas podem ver como os pais se comportam. Crianças que não recebem educação na família ou com pais ocupados ganhando dinheiro saem e ficam fora da casa”, avalia o médico Mikhail Vasilievich Vandysh. “O perigo do alcoolismo infantil é que o vício se forma mais rápido. O organismo não está maduro e as consequências são mais rápidas, principalmente relacionadas aos danos dos neurônios do cérebro”, explica.

O tratamento envolve medicamento, mas também psicoterapia e reabilitação. Nas clínicas, as crianças aprendem as habilidades da vida, de comunicação e fazem um trabalho de longo prazo até por dois anos. O tratamento médico atua em conjunto com a psicoterapia contínua e a participação dos pais.

Julian Finney/Getty Images Julian Finney/Getty Images

O álcool e a Copa

Quando atingiu níveis alarmantes, o governo da Rússia passou a fazer um grande esforço para diminuir o consumo de álcool na Rússia. Nos últimos anos, o presidente Vladimir Putin aumentou os impostos sobre a vodca, fechou fábricas ilegais e restringiu o horário para venda da bebida. Hoje, ninguém compra a bebida depois das 23h. Agora, estuda proibir a comercialização nos fins de semana.

Uma cena já virou cotidiana na vida dos russos. Quando o relógio está a poucos minutos de 23h, jovens entram correndo nos supermercados e furam a fila com o apoio de outros clientes para garantir seus ‘spirits’. As medidas vêm dando certo. Estudos mostram que houve de fato uma redução de consumo - até pelo aumento dos hábitos de vida saudáveis da população. Os russos que bebiam até 16 litros por ano de etanol em 2008, hoje consomem cerca de dez.

No período da Copa do Mundo, o consumo promete subir, já que a combinação futebol e bebida sempre deram "match". Mas nada de vodca na terra Putin. A Fifa só permite a comercialização de cerveja da marca patrocinadora nos estádios e nas Fan Fests durante a Copa.

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