O jogo virou

A difícil inserção feminina no ambiente da Copa e um esporte que ainda sofre para aceitar mulheres em seu meio

Luiza Oliveira e Felipe Pereira Do UOL, em Moscou e São Petersburgo (Rússia)

#nãoénão

Uma brasileira agora narra jogos de Copa do Mundo na televisão. Uma senegalesa ocupa o segundo cargo mais alto no escalão da Fifa. Uma croata manda na seleção e fica até no banco de reservas. As iranianas, proibidas de entrar em um estádio em seu país, tomam as arquibancadas na Rússia. As sauditas comemoraram a conquista de um lugar nas arquibancadas em seu território no país da Copa.

Copa do Mundo é coisa para todo mundo e as mulheres estão na Rússia porque gostam do que o evento oferece seja por trabalho ou diversão: futebol. Algo tão simples, mas que ainda soa estranho. Há pouco tempo, cabia a elas apenas o papel de enfeitar as capas do jornal, com o título de musa e, de preferência, com um celular entre os seios. Não é mais assim.

Mas como o establishment do futebol ainda reluta em aceitar essa transformação, vemos a enxurrada de vídeos machistas com assédio e ofensas no meio da Copa do Mundo. As mulheres que acompanham a Copa, na Rússia ou não, trouxeram o #meucorpominhasregras e #nãoénão para o debate. E o choque com o pretenso "macho alfa" abastecido por álcool não conseguiu lidar com isso.

A explosão dos assédios

AFP PHOTO / GREG BAKER AFP PHOTO / GREG BAKER

Mulher, negra e chefe na Fifa

Ela é mulher, negra, africana, muçulmana e secretária geral da Fifa. Fatma Samoura deu um chute em todos os preconceitos para ocupar o cargo número 2 da entidade máxima do futebol. Substituiu Jérôme Valcke, aquele do “chute no traseiro do Brasil” em 2014, acusado de ilegalidades justamente na Copa no Brasil.

A posição de Samoura é política: ajuda a Fifa a melhorar um pouco a sua imagem, sempre atrelada a escândalos de corrupção. Para isso, precisou vencer o machismo de cada dia. "Há pessoas que não pensam que uma mulher negra deveria liderar a administração da Fifa. Às vezes é simples assim. É algo que estamos lutando diariamente em campo. Não quero nenhuma pessoa racista ao meu redor”, desabafou ela, em entrevista à BBC.

"Ninguém pergunta a um homem quando ele toma uma posição se ele é competente para fazer o trabalho. Eles apenas assumem que ele pode fazer o trabalho. Quando uma mulher faz o seu caminho até o topo precisa provar a cada dia que é a melhor solução para essa posição”.

Samoura representa uma conquista importante das mulheres em uma entidade tão tradicional. Hoje, a Fifa tem 287 mulheres e 353 homens em seu quadro funcionários. Em 2016, 42% do estafe era composto por elas. Este número cresceu para 45%, números expressivos e bem mais igualitários que outros setores da sociedade.

Recentemente, a Fifa ainda criou uma regra para todas as confederações filiadas. Cada uma precisa indicar uma mulher para o Conselho da entidade.  O conselho tem 37 pessoas hoje e seis mulheres de Burundi, Turks and Caicos, Samoa e Itália. Na Conmebol, o cargo é da equatoriana Maria Sol.

Felipe Pereira/UOL Felipe Pereira/UOL

"Lugar de mulher não é no estádio"

Os casos de machismo não são restritos aos vídeos gravados por celular que você deve ter recebido no grupo de amigos – ou às entradas ao vivo de repórteres em aglomeração de torcedores. Parece ser difícil para os homens entenderem que mulheres podem viajar para a Rússia só pelo futebol ou pela festa. Ou seja, pelo mesmo motivo que eles estão viajando. O problema se torna maior quando a bebida entra e o machismo sai à caça.

É nesse momento que elas ouvem algo que dói: “Lugar de mulher não é estádio”.

A brasileira Erica Cláudia Reis, 31 anos, mora em São Paulo e está em São Petersburgo para a Copa do Mundo. “Eu escutei um conterrâneo falando que mulher não devia estar no estádio. Foi no primeiro jogo do Brasil, em Rostov”.

“O cara tentou chegar numa amiga minha. Ela não quis ficar com ele e, de raiva, ele falou isso: ‘estádio não é lugar para mulher’. Na boa, o que uma pessoa que age dessa forma passa para os outros é que não tem estrutura, não tem educação. O mundo evoluiu, não tem mais esse pensamento”.

Erica observa que hoje as mulheres gostam de futebol e querem fazer parte da Copa, mas nem todos entenderam isso ainda. “O perfil da Copa mudou. Antes era dedicado só aos homens. Hoje as mulheres gostam de futebol, principalmente na Copa”.

Reporudção/Twitter Iva Olivari Reporudção/Twitter Iva Olivari

Ela manda na Croácia

Ver uma mulher no banco de reservas de uma seleção nacional na Copa do Mundo é algo impensável. Mas a Copa do Mundo de 2018 vem quebrando paradigmas. Iva Olivari ocupa o topo da hierarquia na seleção croata de futebol. É a gerente de futebol do time dos craques Lukas Modric e Ivan Rakitic.

Chegou ao cargo que seria o equivalente ao de Edu Gaspar na seleção brasileira em 2016. Desde então, vem sendo elogiada por seu trabalho relacionado a logística e infraestrutura da seleção. É apontada como responsável pelo crescimento do time, que hoje tem mais tranquilidade para trabalhar. Os resultados são vistos em campo. A Croácia é uma das seleções com melhor desempenho neste início de Copa. É líder do grupo D com duas vitórias expressivas, uma delas por 3 a 0 sobre a Argentina.

Oliva colhe os frutos de 20 anos trabalhando na entidade, mas reconhece que percorreu um caminho espinhoso. Viu que a única saída era arregaçar as mangas e trabalhar. Agora se tornou referência em seu país e é considerada uma inspiração para as mulheres no mercado de trabalho.

Felipe Pereira/UOL Felipe Pereira/UOL

"Acharam que eu era puta"

A restrição de liberdade chega ao ponto de uma mulher não poder tomar uma cerveja em paz. A brasileira Lívia Aguiar, de 27 anos, foi confundida com uma prostituta. “Em Moscou, eu estava com uma amiga e um amigo em um bar e acharam que ele era nosso cafetão. Só porque tinham duas mulheres e um homem bebendo em um bar”, disse ela, que veio de Volta Redonda para ver a Copa.

Agora, se sente intimidada e tem medo dos homens. “Quando estou num lugar com torcedores, tenho medo de assédio verbal. Acho que é porque machuca muito. Se estou num bar e começam a beber muito, fico com medo de me chamarem de puta”.

Hector Vivas/Getty Images Hector Vivas/Getty Images

Grito de liberdade

De todas as conquistas, nenhuma é tão emblemática como a das mulheres islâmicas. A briga delas não é pelo topo da pirâmide, é apenas por um direito básico do ser humano: o de ir e vir. E nesta Copa do Mundo elas puderam dar o seu grito de liberdade.

As iranianas até hoje são proibidas de entrar em estádios de futebol em seu país. Na Rússia, muitas delas puderam, enfim, ver o campo inteiro, acompanhar a bola rolando, sentir o calor da torcida e torcer por seus ídolos correndo sem  precisar de uma caixa com milhares de pixels. Muitas se emocionaram com a primeira vez no estádio.

As torcedoras da Arábia Saudita sabem exatamente o que é passar por isso. Elas também eram proibidas de ir a jogos de futebol e protagonizaram uma intensa luta de protestos pelos seus direitos. Em janeiro, finalmente foram autorizadas a entrar no estádio. Pintaram os rostos, pegaram suas bandeiras e foram para as arquibancadas. Na estreia da Copa, o clima era de vitória e comemoração. Para as que viraram frequentadoras assíduas e para as que estavam iniciando sua vida como torcedoras de verdade.

Felipe Pereira/UOL Felipe Pereira/UOL

"Ele pegou no meu peito"

A brasileira Luciana Inácio, de 29 anos, passou por uma situação ainda mais constrangedora. Foi ao estádio Luzhniki, em Moscou, para conhecer a sede da abertura e da final da Copa. Jamais poderia esperar que sofreria um abuso sexual no principal palco do Mundial.

“Eu estava vestida de Brasil e vieram dois caras e pediram para tirar uma foto. Na hora, ele pegou no meu peito. Eu senti muita raiva. Classifico um cara desse como lixo”, disse ela.

Divulgação/Fox Sports Divulgação/Fox Sports

Mulheres na narração

Você não precisa ir até a Rússia para ver que as mulheres invadiram a Copa. Basta ligar a TV. A mineira Isabelly Morais é a primeira brasileira a narrar uma partida de Mundial na telinha. Ela faz jogos com comentários de Vanessa Riche no Fox Sports. O feito marcante aconteceu na goleada da Rússia por 5 a 0 sobre a Arábia Saudita na estreia.

E não parou por aí. Também nesta edição do Mundial, pela primeira vez uma emissora contou com uma equipe 100% feminina na narração e nos comentários do jogo da seleção brasileira. Mais uma vez, Isabelly Morais e Vanessa Riche comandaram a transmissão junto com a goleira Bárbara, no empate do Brasil por 1 a 1 com a Suíça na estreia.

As mulheres também têm conquistado espaço ocupando bancadas como comentaristas em canais fechados e reportagens in loco na Rússia.

Felipe Pereira/UOL Felipe Pereira/UOL

Assediadas no metrô

Não são só brasileiras que sofrem. As russas Daria Mugalinova e Yulia Oleynikova têm apenas 19 anos, mas já sabem o que é ser assediada no transporte público. “Ontem, no metrô, estávamos sentadas e entrou um grupo de mexicanos. Eles fizeram: ‘UAU’. Depois ficaram com uma cara de espanto olhando para a gente”.

Elas não têm tido sossego para curtir a Copa. Todos os dias são abordadas no centro de São Petetsburgo por homens de várias nacionalidades. Já contaram mais de 100 entre mexicanos, iranianos, americanos e egípcios.

Alguns são mais tranquilos, outros mais inconvenientes. Puxam papo, dizem que querem conhecê-las, fazem perguntas. A maioria deles é adulto. Muitos são casados.

A jovem russa Oksana Andreiiashina também não tem escapado de ser alvo dos homens. Cerca de dez já tentaram ficar com ela sem terem liberdade para tal. E não escapa um. Brasileiros, egípcios, americanos, mexicanos, alemães são algumas das nacionalidades que ela lembra.

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Enfrentando o machismo

Na Copa do Mundo, Cristiano Ronaldo quebra recordes, Messi sofre com a sua Argentina, a anfitriã Rússia surpreende. Mas nada chamou mais atenção do que os torcedores brasileiros que assediaram as estrangeiras com palavras ofensivas. Se a Copa, um reduto tão masculino, deixou o futebol de lado por instantes para reparar nisso, é porque a sociedade está, sim, evoluindo.

Em 2010, Larissa Riquelme nem precisou ir à África do Sul ou ver a sua seleção do Paraguai ir longe para se tornar o símbolo do Mundial. Bastou colocar um decote profundo e usá-lo como bolso para seu celular. Virou notícia no mundo inteiro e até fundo de tela de computadores. Hoje, as redações jornalísticas lutam contra os títulos de "musa", apesar da tentadora possibilidade de atrair audiência sem precisar pensar muito.

Recentemente, na Copa de 2014, o beijo do torcedor croata na bochecha da repórter Sabina Simonato virou um caso engraçadinho da Copa. Desses causos curiosos do Mundial. Hoje, o comportamento invasivo seria inaceitável.

Mas nenhuma transformação é fácil e a resistência é grande. O Mundial na Rússia tem protagonizado casos bem mais escancarados de abusos e assédio sexual.

“Agora mesmo a gente estava passando e uns brasileiros falaram que somos muito corajosas de vir para a Copa sozinhas. Quando eu ouço isso, acho ridículo. Os homens não entenderam que a gente está aqui porque gosta de futebol”, diz Camila Cabral, 36 anos, torcedora de Vitória. “Tem bastante machismo na Copa. A diferença é que hoje é diferente e a mulher tem liberdade e consciência para reclamar. Antes, ela não sabia, não tinha consciência, mas também havia preconceito”, completa Sarah Lotif, 25 anos.

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Máquina de satisfação sexual

A francesa Mahmoudi Waja, de 33 anos, também virou presa. Ela se sente um objeto sexual quando eles ficam bêbados. “Antes de beber tudo é tranquilo. Mas quando bebem, vem a mudança de comportamento. A mulher é tratada como uma máquina para satisfação sexual. É nojento”.

Mahmoudi não tem o direito nem de ir e vir. Ela tem medo de ficar em um bar à medida que os homens vão ficando bêbados. No dia em que a Rússia venceu o segundo jogo e praticamente selou sua vaga nas oitavas de final, decidiu não ficar na rua diante da festa na avenida Nevsky, a principal de São Petesburgo. “Fui para o hotel e não saí porque estava com medo. Estava com aquela impressão de que a rua não era mais um lugar seguro”.

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Acredite: Brasil está mais maduro que a Rússia na discussão

Irina Izotova é criadora do "FemFest", o mais importante evento de feminismo da Rússia. Ela ficou surpresa com a repercussão que os vídeos machistas ganharam no Brasil. Para ela, a sociedade brasileira está mais madura para discutir as questões de igualdade de gênero do que os anfitriões da Copa do Mundo. Ela espera que o episódio possa afetar positivamente a sociedade russa, marcada pelo conservadorismo.

“As russas acharam que é uma piada estúpida”, diz Irina, admitindo que não houve indignação entre as suas compatriotas comparável ao barulho do Brasil. “A sociedade não consegue pensar do outro jeito. As pessoas não conseguem ver a situação do outro lado. Às vezes, nem percebem a seriedade da situação. O feminismo ajuda a pessoa a ver a situação de um jeito mais amplo. Eu acho que as discussões que vocês estão tendo no Brasil agora vão afetar a sociedade russa. Isso vai ajudar porque vai mostrar a situação de um jeito diferente. A gente vai entender que isso não é apenas uma piada, mas é um problema cultural. A gente tem que reconsiderar isso”.

Irina conta que o movimento feminista é recente no país. Segundo ela, não é comum nem que veículos abordem esse tipo de pauta. “Não temos os jornalistas com interesse neste assunto. Isso significa que vocês estão prontos para discutir, vocês estão mais abertos a isso. Acontece, provavelmente, porque o seu país tem uma história mais longa do feminismo. O feminismo aqui começou nos anos 2000-2010, ou seja, a discussão existe há apenas 10 anos. Claro que tinha algumas discussões antes, mas o movimento oficial começou recentemente”.

Irina lamenta que os assuntos não sejam tratados da mesma forma na Rússia e que o próprio governo não dê atenção a casos de assédio e violência contra a mulher. “Claro que é uma discussão grande, é discutido no nível do governo. Na Rússia, temos os casos de assédio, mas, normalmente, quando você denuncia, não tem nenhuma reação do lado do governo ou da Duma (o Parlamento russo). Eles normalmente falam que o problema não está tão grave. A nossa sociedade tem a atitude mais tradicional e por causa disso falam que está tudo bem”.

Para a feminista, há uma explicação para mais casos estarem vindo à tona em 2018 do que no Mundial realizado no Brasil, quatro anos atrás. "Tudo começa com pequenas coisas. Se a gente não tratar, fica mais sério e pode crescer", analisa. "Os torcedores representam o país. Para o brasileiro, a imagem que ele passa é importante. Se o torcedor faz isso, o que vão pensar dos outros brasileiros? Se esse movimento não parar, o Brasil vai passar a ser visto como exemplo de sexismo. Para onde vai parar o orgulho do país?", comenta.

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