Lugano ao sol e à sombra

Sem saudades da carreira de futebol, uruguaio vai à Copa, duvida de Putin e explica "serpentes" de Tite

Bruno Grossi Do UOL, em São Paulo (SP)
Alex Livesey - FIFA/FIFA via Getty Images

Diego Lugano está vivendo a terceira Copa do Mundo de perto. Depois de disputar duas como capitão da seleção uruguaia, agora conhece uma nova realidade. Como referência no futebol sul-americano, foi convidado pela Conmebol para viajar à Rússia, deixando por alguns dias o trabalho de dirigente no São Paulo.

Ele curte a oportunidade de ver um Mundial sem o estresse de liderar uma nação e da carreira de atleta. "Normalmente, quando para, o jogador sente falta do vestiário. Mas no vestiário eu ainda convivo. Isso preenche muito o vazio, faz com que eu me sinta muito feliz e com pouca saudade de jogar", confessa. 

A distância dos gramados, porém, não impede que ele sofra por seus compatriotas. O Uruguai aposta em uma nova geração, moldada à imagem e semelhança de seus ídolos e do lendário técnico Óscar Tabárez. E precisa aprender a se impor, fugindo do histórico de roteiros dramáticos da Celeste.

Direto e sarcástico. Lugano reclama de quem pensou que "encantador de serpentes" significava uma crítica a Tite. Diz que admira Neymar por passar por cima da invasão de privacidade em sua vida. E se arrisca até a provocar o controverso presidente russo Vladimir Putin: "se interferiu na eleição americana, por que não na Copa?".

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"Se Putin interferiu na eleição americana, por que não na Copa?"

Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos em novembro de 2016. O pleito teve resultado surpreendente, após Hilary Clinton liderar as pesquisas por quase todo o tempo. E não demoraram para que denúncias sobre interferência no processo eleitoral aparecessem. Elas envolvem produção de fake news e auxílio da inteligência russa por parte da equipe de campanha do republicano.

Por incrível que pareça, isso traz reflexos para o futebol. É Lugano quem alerta, apesar do tom de brincadeira em seu questionamento: "se Putin interferiu na eleição americana, por que não na Copa?".

Seu temor é justificado pela presença de Uruguai e Rússia no mesmo grupo da Copa. Eles se enfrentam na última rodada do Grupo A e agora já estão classificados, mas o primeiro lugar ainda não está definido e pode evitar um embate com a badalada Espanha nas oitavas de final.

"Não queria chegar no último jogo tendo que definir contra a Rússia. Se puderam manipular a eleição americana, imagina se não conseguem manipular o VAR. Eu estou com terror (risos). Imagina?"

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Tensão política faz Lugano relembrar Mussolini e ditadura

"Há na Rússia um contexto político diferente e especial. Por ser uma potência querendo se levantar, pela própria figura do Putin e pelas dúvidas sobre como eles ganharam o direito de organizar o Mundial. Assim como já havia acontecido com Brasil e Qatar. Tem ainda a Inglaterra, que fez um complô orientando os funcionários públicos a não viajarem para a Rússia.

É um Mundial com mais segurança interna, com um controle muito chato e muito grande. E isso mostra uma preocupação real com essa tensão. Há um contexto político, em meio de guerras, com a Rússia envolvida. Se voltarmos na memória, tivemos outros Mundiais assim. Em 1978 (com a ditadura na Argentina) e em 1934 e 1938, com a Itália de Benito Mussolini, o contexto pré-guerra. Essa é a história do mundo e do esporte."

  • Força albanesa

    A Suíça venceu a Sérvia de virada por 2 a 1 na segunda rodada. Os gols foram marcados por Xhaka e Shaqiri, cujos pais são da Albânia e sofreram com a repressão do governo sérvio. A dupla, então, decidiu homenagear as raízes dos familiares fazendo um pássaro com as mãos, em alusão à bandeira albanesa. Alguns sérvios radicais que estão na Rússia passar a fazer protestos contra os suíços.

    Imagem: Laurent Gillieron/AP
  • Faces do Irã

    De um lado, o avanço da sociedade iraniana ao ver mulheres do país assistirem a jogos de futebol em estádios pela primeira vez na vida. Elas se emocionaram e levaram faixas clamando pela liberdade de expressão. Do outro, os reflexos da sanção comercial imposta pelo governo dos Estados Unidos. A Nike, por exemplo, não pôde entregar as chuteiras para os atletas que patrocina no Irã.

    Imagem: Reprodução/Iran Human Rights
JOE KLAMAR/AFP JOE KLAMAR/AFP

"Mania de sofrer" faz Lugano se preocupar com a seleção uruguaia

"Vejo o Uruguai muito sólido, muito bem. Ou seja, chega muito forte, quase no máximo das nossas possibilidades. É um time muito competitivo, não se pode subestimar. O uruguaio tem um futebol de reagir diante das dificuldades, não de escrever a própria história. 

Eu mesmo, como jogador, tinha esse sentimento de sempre reagir diante das dificuldades, sempre levantar. Mas sempre tinha dificuldade em traçar o próprio destino, ser protagonista.

O que dá esperança real é que o Uruguai chega bem e em silêncio para o resto do mundo. Acho que temos potencial para ganhar de qualquer um. Estamos um degrau abaixo de Brasil, Alemanha e Espanha. E talvez a França também esteja um pouco por cima. Mas temos condições."

Lugano exalta história de Tabárez: "É difícil explicar a dimensão"

Ele está com uma saúde delicada, mas o respeito que ele tem não se compra, se conquista. E em torno da figura dele se criou um processo sólido, principalmente de identificação com o povo. Os resultados são diversos, como no futebol. Mas identificação e conduta são chave

Diego Lugano

Diego Lugano, Sobre o técnico da seleção uruguaia, Óscar Tabárez

Conmebol/Oficial Conmebol/Oficial

Imagem de líder persiste e motivou convite da Conmebol

Lugano está na Rússia por uma iniciativa da Conmebol, que convocou figuras históricas de suas seleções afiliadas para realizar simpósios de futebol e uma rede de observação e análise da Copa. Há figuras como Reinaldo Rueda, pela Colômbia, Mauro Silva, pelo Brasil, e até Diego Forlán, pelo próprio Uruguai.

"Tive o privilégio desse convite para falar tecnicamente da Copa, de coisas a se implementar, como o VAR e o futuro da competição. Eles (Fifa) querem mudar, o número de participantes, número de sedes. Vamos participar de coisas interessantes que me fazem crescer como pessoa. Acho que vou levar o São Paulo comigo em toda essa bagagem de conhecimento e contatos. E estar perto da Celeste e ver um Mundial do lado de fora, sem a pressão em cima, vai ser bom também (risos)". 

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As Copas de Lugano

  • 2010

    O Uruguai estava no Grupo A ao lado da anfitriã África do Sul, da França e do México. E surpreendeu ao se classificar em primeiro. Nas oitavas, eliminou a Coreia do Sul. Nas quartas, tirou Gana, em jogo marcado pela defesa de Suárez para evitar gol. A queda aconteceu na semi, diante da Holanda, na única partida sem Lugano. A Celeste ficou em quarto e teve Diego Forlán como craque.

    Imagem: PEDRO UGARTE/AFP
  • 2014

    Lugano foi capitão do Uruguai pela segunda Copa consecutiva. Mas acabou jogando apenas a estreia, com derrota, para a Costa Rica. Na arrancada para a classificação, contra Itália e Inglaterra, ficou no banco. Depois, ficou afastado de vez devido a uma lesão no joelho esquerdo, que já o incomodava há tempos. Os uruguaios caíram nas oitavas de final para a Colômbia.

    Imagem: AFP PHOTO / RONALDO SCHEMIDT

Não percebi o fato de parar de jogar. Pelo contrário, estou bem feliz porque tem coisas que são as mesmas, que eu sempre gostei, mas agora com a liberdade de horário, que a gente nem sempre teve como jogador

Diego Lugano

Diego Lugano, sobre a decisão de ter parado no fim de 2017

Robert Cianflone/Getty Images Robert Cianflone/Getty Images

Apreço ao "lado humano" moldou ídolos conscientes

"Quando cheguei à seleção, lembro de Tabárez falar que exigia conduta, bom comportamento e respeito à história. E fui um dos líderes dessa mudança de conceito. Para ele, mesmo sendo craque, o primeiro fator que conta para ir à seleção é a parte humana. Assim, tivemos muita influência na formação da personalidade de Suárez e Cavani. Nós éramos os exemplos.

Lembro de falar: 'quando vocês forem craques no mundo, não se esqueçam de que isso aqui é o principal. E vocês vão ser referências, não só pelos gols. Vai surgir outra geração igual a vocês'. Acho que eles encarnaram bem o contexto do grupo e colocaram como prioridade real a seleção.

Hoje, entram em conflitos extra-futebol para ajudar os jogadores do país. Muitas vezes jogaram machucados pela seleção. Ganham bilhões com seus contratos são grandes e, jogando, vocês sabem que são bons. Mas como pessoas... Recentemente jantamos com uma fundação do Uruguai e eles foram os primeiros a chegar, os que mais tiraram fotos com as crianças. Uma mentalidade muito comprometida, onde o exemplo aos mais novos está acima de tudo." 

"Entre o cínico e o ridículo": Lugano vê Suárez perseguido pela Fifa

Ficou quatro meses sem treinar em nenhum clube e dois anos sem jogar na seleção. Mas, muitos politicamente corretos e eticamente perfeitos, acharam uma punição exemplar por um golpe pelas costas com a mandíbula. Isso estava entre o cínico e o ridículo, mas fazer o quê?

Diego Lugano

Diego Lugano, Sobre a mordida de Suárez em Chiellini, na Copa de 2014

André Mourão / MoWA Press André Mourão / MoWA Press

"Encantador de serpentes" foi crítica "só para quem não enxerga"

Em novembro de 2016, Tite começava bem sua trajetória na seleção brasileira. Lugano, em participação no programa "Bola da Vez", da ESPN Brasil, elogiou o trabalho do técnico, mas fez uma ressalva. Chamou Tite de "encantador de serpentes" pela forma como se blindava diante da imprensa. Muitos, principalmente os torcedores do São Paulo, encararam como uma crítica ao treinador. Mas não foi bem assim.

"Quem pensou que eu não gosto deve ter o mesmo pensamento de quem achou a punição ao Suárez justa. É um pessoal que não enxerga muito bem. Gente que escuta, mas não ouve. Faz parte. O trabalho que ele faz com a imprensa, para que a opinião social esteja contente, traz energia positiva para ele e para a seleção".

"Isso é trabalho de um líder consciente. Tudo bem, talvez não seja tão espontâneo, e seja mais estratégico. Mas mostra que ele sabe o peso que tem no país. Pegar jornalistas um por um e explicar, deixar todo mundo feliz, falar para a torcida, imprensa. Isso só gera coisa positiva. E tem funcionado muito bem. Ele é muito inteligente e tomara que o Brasil faça uma grande Copa, mas pare no Uruguai". 

"Não entendo como Neymar se desliga do mundo para jogar"

Eu nunca vi o Brasil chegar tão sólido a uma Copa do Mundo. Este Brasil é completo, técnico como sempre, físico como às vezes e tático como nunca. Ainda com uma inteligência de um treinador que conseguiu canalizar a energia do povo na seleção. Para mim isso faz com que o Brasil seja o grande candidato real a ganhar a Copa

Diego Lugano

Diego Lugano, Sobre a seleção brasileira

AFP PHOTO / NORBERTO DUARTE AFP PHOTO / NORBERTO DUARTE

Jogadores precisam se expressar mais

Não é uma obrigação, mas também não pode haver a proibição que existe hoje. Qualquer jogador que tenha contrato com marcas importantes está proibido de falar em qualquer tema polêmico. Um clube possivelmente aconselha você a ficar longe de polêmica. Então, você vira um pouco refém do sistema.

Todo jogador deveria se informar primeiro e se posicionar. Viver em democracia é isso: expressar o que vê e o que sente. É como falava Sócrates, o irmão do Raí: "tem 80 mil pessoas que não vão me ver jogar bola. Tem 80 mil que vão me escutar falar”. Tem muita gente que se espelha em você e quer te escutar, porque confia em você.  

Jogador de futebol tem uma energia natural de ajudar os outros. A maioria de nós sofreu muito para chegar ao topo, viemos de famílias de classe média ou pobre. E sempre encontramos alguém no caminho que ajudou. Um dia com passagem de ônibus, com carona, prato de comida ou indicação. Você nasce com esse sentido de gratidão. É da raça do jogador, que é uma raça muito nobre

Diego Lugano

Diego Lugano, Sobre a solidariedade demonstrada por atletas

"Brasil é o país que mais ridiculariza os jogadores de futebol"

Daniel Vorley/AGIF Daniel Vorley/AGIF

Imprensa "rebaixa" atletas e insiste em explorar o "mórbido"

Lugano usa o são-paulino Petros para externar uma de suas insatisfações com a imprensa. Para ele, o volante é criticado acima do tom porque comentaristas e jornalistas querem explorar sua personalidade na hora de dar entrevistas. "'Fala muito, joga pouco'. Erra um gol e vão falar, porra! 'Toma um gol e quer falar de política?'. Isso é inferiorizarão da classe e está implantado na sociedade", desabafa.

"A imprensa até tem melhorado desde a minha primeira passagem. E sei que vocês têm a obrigação de dar resultado à empresa. E se o povo quer escutar circo, mentiras, xingamentos, briga, você é obrigado a falar isso. Sei que parte de vocês sofre demais com a incapacidade de falar de coisas mais bonitas, reais, profundas, mas com menos resultado midiático".

"É sempre o mesmo. O jogador chorando, volta por cima, algo mórbido. Não há reportagem de jogador diferente disso. Acho que é o que o povo quer ver. Então, temos que entender que a imprensa fica atada".

Hoje, qualquer um opina, qualquer um fala sobre coisas que não tem a mínima ideia. O mundo mudou, mudou a comunicação. Aconteceu muito na eleição dos Estados Unidos. Você está bombardeado de informação e não sabe no que acreditar. Por isso, é importante que figuras públicas se posicionem. Isso transmite transparência e legitimidade

Diego Lugano

Diego Lugano, Sobre o mal das fake news

Atraso da América do Sul deveria impedir guerra esquerda x direita

"A América Latina, juntamente com a África, é o continente mais corrupto. Por isso somos o terceiro mundo, por isso nunca crescemos, por isso morre tanta criança de fome, tanta pessoa por não ter medicamento. Por isso tem má educação, por isso não tem dinheiro para pagar professores. Então, hoje, com informação mais acessível, o povo está mais indignado e uma hora a paciência acaba e isso explode, não tem jeito.

Na Argentina, no Brasil e, quase o mesmo no Uruguai, muita gente está aparecendo fora dos partidos políticos. Os trabalhadores estão se juntando para gerar novas propostas para o país. Uma hora vai chegar porque é irresistível, é muito duro viver em uma sociedade onde você vê a corrupção passar por tanto tempo e nada acontece. Chega um momento que algo tem que ser feito. 

Se a política tivesse o mínimo de ética e honestidade muito mais gente viveria bem. Parte daí o principal, o valor está aí. Não precisaria haver discussão de esquerda ou direita ou centro. Não faz diferença, o princípio parte dos valores."

Uruguai exemplar? "Pelo caos ao redor, sim. Mas há decadência"

Alex Caparros/Getty Images Alex Caparros/Getty Images

Futebol tem racismo, mas não reflete a sociedade

"Eu ainda não sei o que é, como é o racismo no futebol. Já joguei em todo o continente, com todas as linguagens, já xinguei e abracei todas as raças e já vi isso em todo jogo. Mas não sei. É um esporte que deve dar exemplo, mas também não pode ser usado como reflexo exato da sociedade, pois há um entorno tão competitivo, tão passional, tão diferente. 

Eduardo Galeano, em seu livro 'Futebol ao sol e à sombra', tem uma teoria que permanece igual. O futebol tem a capacidade de colocar 70 mil intelectuais em um estádio e fazer com que eles sejam 70 mil animais por 90 minutos. Só o futebol pode fazer isso. E se você não conhece um caso que prove isso, eu conheço mil.

Tem caso em que há exploração da imprensa para dar um pouquinho de Ibope e não tem nada a ver. E há outros casos mais sérios. E esses casos reais de discriminação, os mais fortes, às vezes nem se vê na mídia. Esses não interessam. Há 20 anos, quando você tomava cotovelada, a televisão não via. E hoje, Sérgio Ramos faz um gesto e tem mil câmeras. Sempre se xingou na vida, mas hoje são mil câmeras. E nisso, obviamente, entram outras discussões sociais." 

Como vive um ídolo

  • Cinema

    "Um Ato de Coragem", estrelado por Denzel Washington, foi lançado em 2002 e mostra um pai invadindo um hospital para conseguir à força um tratamento para o filho pequeno. Lugano viu o filme quando Nicolas, seu primeiro filho, havia acabado de nascer e se comoveu com a história.

    Imagem: Mike Nelson/AFP
  • Gastronomia

    Lugano diz não ter nenhum apego à culinária uruguaia, resumida a carne, batatas ou massas. O ex-zagueiro gostava mesmo é de conhecer a gastronomia de cada país que conhecia na carreira. E foi assim que se encantou pelos pratos da Turquia. "Gosto dos aromas, dos sabores e dos temperos".

    Imagem: Divulgação
  • Literatura

    O premiado uruguaio Eduardo Galeano está entre os autores favoritos. "Gosto de tudo relacionado à história. História das nações, do futebol, de grandes pensadores, religiões, meu país. Estou lendo dois: um sobre a criação da ONU, bastante interessante. E um sobre as origens uruguaias, mistura de raças.

    Imagem: Pablo Porciuncula/AFP Photo
  • Música

    "Sou mais da música folclórica uruguaia porque lembra minha terra, meu pai, meu avô, ao campo onde vivia. E gosto de rock, mas de rock uruguaio. Tem boas opções uruguaias para se ouvir". Lugano elenca as bandas Cuarteto de Nos e La Vela Puerca entre as melhores do estilo musical no Uruguai.

    Imagem: Divulgação

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