Álcool ou gasolina, chefia?

Há 15 anos (completados em março), motor bicombustível prometeu se tornar referência tecnológica mundial

Leonardo Felix Do UOL, em São Paulo (SP)
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Antes da "revolução", a dor de cabeça

Antes da "mobilidade alternativa", do "dieselgate" e da onipresença global de projetos de carros elétricos dominarem a discussão, o mercado automotivo brasileiro já se notabilizava pela peculiaridade de usar uma matriz considerada (com alguma polêmica) "limpa", o etanol, como fonte energética em seus motores a combustão.

Herança do programa Pró-Álcool, adotado em 1975 como resposta interna à crise internacional do petróleo, o combustível vegetal abriu ao consumidor nacional uma curiosa independência em relação às oscilações do petróleo.

Mas nem tudo foram flores. Primeiro porque os motores carburados a álcool impunham dificuldades quando operavam a baixas temperaturas -- e teimavam em não pegar, por vezes.

Além disso, no fim da década de 1980 o país enfrentou uma séria crise de abastecimento do produto, motivado pelo baixo retorno financeiro aos usineiros, ao mesmo tempo em que 90% dos emplacamentos de veículos zero-quilômetro no país eram formados por unidades movidas a álcool.

À época se tornou comum ver motoristas de veículos movidos a etanol formarem filas gigantescas em frente aos postos. "As demais alternativas eram deixar o carro em casa ou fazer gambiarra para usar gasolina", relembra Robson Cotta, gerente de engenharia experimental da FCA e que participou do desenvolvimento dos primeiros automóveis bicombustíveis da Fiat, ainda nos anos 1990.

Tal dificuldade contribuiu demasiado para a retração do mercado do etanol, mas também serviu de motivação para que engenheiros locais desenvolvessem os primeiros estudos de criação do carro flex. Afinal, se já tínhamos gasolina e etanol consolidados, por que não criar automóveis capazes de aceitar os dois combustíveis simultaneamente, dando ao usuário a opção de escolher qual usar de acordo com a conveniência?

"Desde a época do carburador já se pensava em como permitir a utilização conjunta de gasolina e etanol, mas sem injeção eletrônica seria impossível. A chegada da injeção [nota do editor: tal tecnologia estreou por aqui com o Volkswagen Gol GTi, em 1989] foi um grande passo para a criação do motor flex", aponta Cotta.

Mesmo assim, foram necessários mais de 10 anos de estudos e experimentos até que o carro movido a etanol e tivesse alguma confiabilidade enfim se tornasse realidade. Só em 23 de março de 2003 a Volkswagen apresentou, durante a festa de comemoração de 50 anos de operação no país e com direito à presença do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o Gol 1.6 Total Flex.

Ele seria o primeiro de uma enxurrada de modelos que invadiriam o mercado e com uma nova tecnologia: o "flex" brasileiro, como foi batizado, permitia o uso de etanol, gasolina ou qualquer mistura dos dois combustíveis no tanque.

Naquele momento, uma ampla janela de oportunidades se abria.

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VW acelerou antes com Gol Total Flex

5 curiosidades do Gol Total Flex

  • Presente ao presidente

    Ele foi a grande estrela da festa de 50 anos de operação oficial da Volkswagen no Brasil, em 23 de março de 2003. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou e recebeu a unidade nº 1 como doação ao "Programa Fome Zero".

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  • Apareceu, mas não chegou

    Volkswagen anunciou o Gol Total Flex em 21 de março e iniciou a pré-venda três dias depois. No entanto, primeiras unidades só foram entregues no final de abril. Concessionárias levaram um mês para ter fluxo normal de vendas.

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  • Que motor era aquele?

    Estamos falando conhecido AP 4-cilindros 8V de 1,6 litro, sendo 97/99 cv (gasolina/etanol). Curioso observar a taxa de compressão de 10,1:1, no meio termo entre o que era usado à época com etanol (cerca de 12:1) e gasolina (menos de 9:1).

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  • Uma pitada de Fiat

    O sistema de leitura do combustível que viabilizou a comercialização da tecnologia flex foi desenvolvido pela Magneti Marelli, uma empresa pertencente à... Fiat. Mais adiante contaremos como se desenrolou a história.

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  • O preço da novidade

    O Gol Total Flex custava R$ 950 a mais do que a versão equivalente, Power, equipada com propulsor AP 1.6 movido apenas a gasolina. Valor, atualizado pelo índice IPCA de inflação, equivale a cerca de R$ 2,2 mil nos dias atuais.

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Controvérsias sobre o Gol

Volkswagen celebra, mas Fiat e GM brigam pelo título de "primeiro flex". Conheça os argumentos

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VW: a primeira a mostrar

A Volkswagen tem como grande trunfo o fato de ter sido a primeira a fazer um evento e mostrar o motor bicombustível ao público, o Gol 1.6 Total Flex, em março de 2003. Também apresentou o primeiro modelo 1.0 flex, o Fox, em outubro.

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GM: a primeira a vender?

A General Motors reclama para si o mérito de ter sido a primeira a colocar efetivamente um carro flexível nas lojas, no caso o Corsa FlexPower, em junho de 2003. Isso porque a Volks demorava a entregar unidades encomendadas do Gol flex.

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Fiat: a primeira a popularizar

Já a Fiat se considera a primeira a responsável por ter popularizado a tecnologia bicombustível, ao oferecer configurações 1.0 flex em Palio e Mille a partir de 2005, no segmento que mais entregava carros. Corsa e Fox, à época, não eram os modelos de entrada de Volkswagen e GM.

Cliff Schiappa/AP Cliff Schiappa/AP

Nem tão pioneiro assim

Quem lançou mesmo a tecnologia?

Uma pausa antes de prosseguirmos a história do motor flex no Brasil. É preciso observar que o Brasil não foi, de verdade, o primeiro país no mundo a adotar tecnologia bicombustível. Esse mérito é dos Estados Unidos. Pois é.

Empresas norte-americanas já experimentavam sistemas de injeção eletrônica capazes de fazer a leitura de outros combustíveis fora a gasolina desde meados dos anos 80. Afinal, o governo de lá também tentava adotar medidas que tornassem os carros menos poluentes e o país, menos dependente do petróleo.

Assim, em 1992 chegavam ao mercado de lá os primeiros automóveis flex do mundo. A foto que ilustra esse bloco, por exemplo, é do anúncio da iniciativa de uso de motores flex no Estado do Missouri. O ano é 1997, a figura da imagem é o governado local de então, Mel Carnahan, e o carro é um Chrysler Town & Country. 

De lá até 2005 foram comercializados mais de 3 milhões de veículos munidos da tecnologia em solo americano.

Só que havia um "pequeno" problema: ninguém queria vender ou usar o etanol de fato -- tanto que o número de postos de combustíveis aptos a trabalhar com o combustível vegetal sempre foi ínfimo --, o que significa que o programa amargou um fracasso retumbante.

No fim das contas, grande parte desses carros encerrou seu ciclo de vida útil sem nunca ter visto uma gota de álcool depositada no tanque.

Arquivo/Folha de S. Paulo Arquivo/Folha de S. Paulo

Nosso primeiro flex real: Omega

Por que a indústria brasileira adotou o flex? O que avançou desde então?

Voltando ao Brasil...

De acordo com artigo chamado "Motor Flex", publicado pelo "Instituto DNA Brasil", o sistema flexível usado pelos modelos americanos funcionava a partir de um sensor eletrônico na linha de combustível. Engenheiros brasileiros da Bosch se inspiraram nessa solução para desenvolver por aqui o primeiro protótipo bicombustível da história da indústria automotiva brasileira: um Chevrolet Omega 2.0. É por isso que temos uma imagem (meramente ilustrativa) de um Omega junto a este texto.

Tal modelo foi escolhido porque, no princípio dos anos 1990, o Omega se tornou o primeiro automóvel a álcool dotado de injeção eletrônica multiponto no mundo -- já existiam outros modelos movidos a etanol e dotados de injeção, só que monoponto --, elemento importante para a implantação do sistema flex. O protótipo, pronto em 1994, utilizava um sensor de densidade dentro do tanque de combustível, que media a condutividade elétrica do ar e estabelecia, a partir disso, qual era a mistura do combustível ali presente.

Do ponto de vista de engenharia a ideia deu certo.

No livro institucional "A trajetória de um time de empreendedores. A contribuição de Bosch para desenvolvimento e introdução dos sistemas de injeção eletrônica no Brasil", ao qual UOL Carros teve acesso com ajuda do Miau (Museu da Imprensa Automotiva), há o relato de que o Omega flex teria rodado mais de 200 mil quilômetros em testes sem apresentar problemas.

Entretanto, a solução criada pela Bosch era muito cara para ser introduzida em veículos generalistas.

Aí entrou a Magneti Marelli. No fim dos anos 90, a empresa pertencente ao grupo Fiat criou um sistema, denominado SFS (Software Flexfuel Sensor, na sigla em inglês), que consistia na introdução de um dispositivo eletrônico não no tanque, mas sim na sonda lambda do veículo, que analisa os gases de escapamento.

Tal sensor conseguia analisar a uma velocidade razoável qual era a composição vigente, adequando assim o fluxo da mistura ar-combustível e também as curvas de ignição às diferentes misturas de gasolina com etanol. O melhor de tudo: a um custo muito mais acessível.

Ainda assim, a Fiat hesitou em investir na tecnologia por receio de que os consumidores não estivessem ainda preparados para assimilar a novidade.

VW dá o passo que todos aguardavam

Quis a ironia do destino, então, que a rival Volkswagen decidisse pagar para ver. Portanto, foi a marca alemã aquela que entrou para a história no lugar da italiana, mesmo usando uma tecnologia desenvolvida por uma subsidiária da própria Fiat. Aí não demorou para que a concorrência se mexesse: Chevrolet Corsa 1.8 FlexPower (junho de 2003), Fiat Palio 1.3 Fire flex (outubro de 2003) e Ford Fiesta Rocam 1.6 Flex (início de 2004) invadiram o mercado logo na sequência.

Para que o sistema funcionasse, as fabricantes tiveram de incluir centrais eletrônicas mais rápidas e eficientes em seus carros. Foram necessárias, ainda, modificações em componentes como válvulas, tubulações, bicos injetores, comandos de válvulas e coletores de admissão e escape. Tudo para que o motor pudesse trabalhar com gasolina ou álcool sem apresentar danos ou corrosões. Ah, e claro: os carros flex herdaram daqueles movidos só a etanol o famigerado tanquinho de partida a frio.

Mesmo com todo o esforço, os primeiros modelos bicombustíveis brasileiros apresentavam diferenças substanciais de desempenho quando abastecidos com um ou outro combustível, além de certa demora na detecção da mistura presente no tanque. Como o álcool hidratado possui poder calorífico e detonante diferentes da gasolina, muitas vezes a mistura inadequada de ar e combustível gerava sobreaquecimento e afetava momentaneamente o desempenho. Foram necessários anos até que esses detalhes fossem dirimidos.

Hoje, com o avanço da capacidade de processamento das centralinas e a introdução de sistema de preaquecimento do etanol (eliminado o famoso e polêmico tanquinho extra de gasolina), as disparidades estão cada vez mais imperceptíveis.

Modelos dotados de turbo e injeção direta bicombustíveis também representam uma pequena evolução, embora ainda sejam minoria no mercado. Ou seja: qualquer reclamação em relação ao rendimento de um automóvel flex atual não passa de má vontade ou preconceito.

Murilo Góes/UOL Murilo Góes/UOL

Futuro a álcool?

Pouco valorizado no Brasil, etanol tem potencial para bater elétricos

As primeiras décadas de convívio do brasileiro com o etanol foram um bocado turbulentas. Na era dos carros carburados, tentar ligar um veículo movido a álcool sob temperaturas baixas era um exercício hercúleo, que exigia muita paciência por parte dos motoristas e, ao mesmo tempo, uma quase sempre inexistente precisão no uso dos afogadores.

Mesmo com a chegada da injeção eletrônica e, depois, do motor flex, os engenheiros demoraram alguns anos até encontrar um padrão mínimo de utilização dos dois tipos de combustível sem que houvesse uma traumatizante discrepância de desempenho. É por esse motivo que tanta gente ainda torce o nariz para o etanol e a motorização flex.

Só que a realidade mudou. Os avanços tecnológicos dos últimos anos, especialmente em relação ao preaquecimento do álcool ou à injeção direta, tornaram muito mais linear o funcionamento de um motor flex quando abastecido com E93 (o etanol hidratado). Outra questão, a do consumo, também vem sendo fortemente trabalhada por engenheiros, a fim de tornar a autonomia cada vez menos distante daquela quando se usa gasolina. 

Assim, aquela famosa proporção de "7/10" vem se tornando aos poucos coisa do passado e, com as tecnologias atuais, já se consegue alcançar até 90% da eficiência em consumo com gasolina utilizando-se o etanol.

Além disso, o álcool pode ser considerado um combustível mais correto ecologicamente: emite cerca de 25% menos monóxido de carbono e 35% menos dióxido de nitrogênio na atmosfera em relação à mesma quantidade de gasolina, além de ser um combustível de fonte renovável e capaz de absorver quase 90% da emissão de dióxido de carbono através da fotossíntese no plantio da cana-de-açúcar.

É por isso que engenheiros da área automotiva defendem fortemente, antes mesmo que o Brasil mergulhe de vez na era dos elétricos, o investimento em estudos relacionados ao aprimoramento do combustível derivado da cana.

"O etanol é um elemento fundamental no desenvolvimento da indústria automotiva brasileira, mas os próprios brasileiros não dão valor a ele. Somos o único país do mundo com uma alternativa viável e consolidada ao petróleo sendo utilizada em larga escala. O Brasil precisa estimular uma evolução ainda maior do etanol antes de pensar em híbridos e elétricos", argumenta Robson Cotta, da FCA.

É verdade que falta força a nossos departamentos de P&D para evoluir o etanol -- especialmente após o fim do "Inovar-Auto" e sem uma definição a respeito do "Rota 2030" --, mas há quem esteja investindo em testes a respeito.

A Nissan, por exemplo, anunciou em 2016 que estava desenvolvendo um sistema de célula de combustível abastecido com etanol, capaz de gerar energia elétrica para uma mula da minivan nv200. Infelizmente, a pesquisa está sendo desenvolvida no Japão, com auxílio de testes locais, mas sem o envolvimento necessário para destacar o Brasil no processo.

Já a Toyota divulgou este ano que está testando um protótipo híbrido flex do Prius, com auxílio de empresas e universidades brasileiras. Quais serão os próximos passos? Ainda não sabemos, mas uma coisa é certa: ainda há muitos terrenos dentro do campo da motorização flexível a serem explorados.

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